A mulher no Vaticano à luz da nova Constituição da Cúria Romana
Dulce Araújo - Vaticannews
Em finais de 2008, Gudrun Sailer, jornalista do Programa Alemão da Rádio Vaticano, afirmava no seu livro, em alemão, “Mulheres no Vaticano, encontros, retratos, imagens” que as mulheres que trabalhavam no Vaticano eram cerca de 600 e representavam 16% do pessoal. E hoje, quase quinze anos depois, quantas são, que níveis ocupam e que novidades traz, em relação às mulheres, a nova Constituição da Cúria Romana “Predicate Evangelium” que entrará em vigor no dia 5 de junho de 2022, solenidade do Pentecostes? É de tudo isto que falamos com a Gudrun numa entrevista no âmbito da rubrica "África. Vozes Femininas" e que aqui apresentamos.
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- Gudrun, em 2008, falamos aqui nesta rubrica do teu livro, “Mulheres no Vaticano, encontros, retratos, imagens”, baseado em entrevistas que tinhas feito para a Rádio. Que evolução houve desde então até hoje?
“A nível estatístico, há um aumento notável do número de mulheres que trabalham no Vaticano. Atualmente, somos mais de mil a trabalhar para o Papa, tanto na Santa Sé como no Estado da Cidade do Vaticano, onde já atingimos os 22%. No entanto, se fizermos a divisão entre a Santa Sé e a Cidade do Vaticano, notamos que no que toca à Santa Sé, isto é, ao centro da Igreja universal, o número de mulheres cresceu mais, atingindo já mais de 24%. Por outras palavras: Um empregado em cada quatro que hoje ajuda o Papa na governação da Igreja universal é mulher.”
- Como é que se explica esta diferença entre a Santa Sé e o Estado da Cidade do Vaticano?
“Eu creio que nestes nove anos de pontificado, o Papa Francisco fez com que houvesse mais mulheres, digamos, a todos os níveis, mas também em lugares de particular relevo, de responsabilidade. E isto vê-se sobretudo em relação a posições de Subsecretária em Dicastérios da Cúria Romana, ou seja, no terceiro nível de responsabilidade: em primeiro lugar está o Prefeito ou o Presidente; no segundo, o Secretário, e no terceiro o Subsecretário. Hoje, temos cinco mulheres em posição de Subsecretário e uma é Secretária de um Dicastério – a Irmã Alessandra Smerilli [salesiana] – Secretária do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Ninguém imaginava esta evolução. Quando recolhi estes dados, não tinha ainda presente a reforma da Cúria. E nela vemos que o Papa Francisco tem realmente a intenção de reforçar a visão feminina na Igreja, no sentido de que com base nessa reforma, a mulher pode ser mesmo o número um de qualquer Dicastério. Quer dizer, teoricamente, uma mulher pode vir a ser Prefeito.”
O cristão batizado
- Com efeito, a Cúria Romana tem agora uma nova Constituição. Intitula-se “Predicate Evangelium” e é fruto da reforma que tem vindo a ser levada a cabo desde o início do Pontificado do Papa Francisco. Esta Constituição, tornada pública em março de 2022, entrará em vigor a 5 de junho, dia do Pentecostes. Trata-se de um conjunto de normas que regulam a vida da Cúria Romana, ou seja os Dicastérios, as Congregações e os Organismos ao serviço do Santo Padre na governação da Igreja católica universal. Nela sublinha-se a natureza da Igreja e a sua missão que é a de evangelizar e põe no centro dessa missão o cristão batizado, homem e mulher, como sujeitos que levam a fé aos outros. Isto constitui uma notável novidade em relação ao passado, não é, Gudrun?
“Muito notável porque desta vez, podemos ver a Santa Sé como modelo de uma partilha de participação, partilha de responsabilidades entre ministros ordenados (padres, bispos) e leigos (mulheres ou homens). Vemos também uma separação da responsabilidade da ordem sacerdotal na Igreja. Este é um pedido que vinha sendo feito desde há muito pelas igrejas locais que estão mais orientadas para uma reforma estrutural da Igreja. E ver a Santa Sé como modelo nisso é algo digno de nota. E parte precisamente deste projeto de reforma da Cúria Romana. Temos em muitas Igrejas locais, como por exemplo, na África do Sul, nas Filipinas e em alguns países do mundo ocidental mulheres em lugares de relevo como por ex. Secretária Geral da Conferência Episcopal, mas que isso possa partir, possa ser reforçado a partir do Vaticano é algo que, a meu ver, torna muito visível este empenho do Papa Francisco no sentido de pôr em relevo a dignidade de todos os batizados, homens ou mulheres que sejam.”
Da teoria à prática
- Antes quem podia ser chefe de um Dicastério era um Bispo ou um Cardeal, agora com a Constituição “Predicate Evangelium” qualquer cristão batizado (homem ou mulher) pode desempenhar esse cargo. Abre-se a porta à mulher, portanto. Esperemos agora que isto aconteça na prática!
Com efeito, não é dito que depois todos os Dicastérios possam ter leigos como prefeito, porque como nos explicaram na conferência de imprensa, é importante ter em conta que a nova Constituição da Cúria Romana não prejudique o Direito Canónico – isto é obvio! – por conseguinte, para alguns Dicastérios é muito mais provável que venham, no futuro, a ter um leigo à cabeça, do que outros, mas, em teoria, nenhuma dessas posições de per si é vedada à mulher. Este aspeto deixaram-no em aberto na nova Constituição. Parece-me interessante notar isto! No entanto, não se exclui que uma mulher possa ser Secretária de Estado. Na Constituição de antes – a “Pastor Bonus” que era de 1988, falava-se de Cardeal Secretário de Estado. Na nova Constituição, o termo Cardeal não aparece, fala-se simplesmente de Secretário de Estado. Veremos se um dia poderemos ter uma Secretária de Estado que é um lugar de relevo, pois é o número dois na Santa Sé (depois do Papa); veremos se esse lugar poderá ser ocupado por um leigo, por um batizado, mas sem ordenação sacerdotal. Ver-se-á! Mas, seria muito simples ter, por exemplo, [um leigo, mulher ou homem] como Secretário para as Relações políticas com os Estados, papel que, atualmente, é desempenhado pelo Arcebispo Paul Richard Gallagher. Este é um daqueles lugares – explicaram-me os peritos em Direito Canónico – que poderá ser ocupado, sem dúvida, por uma pessoa leiga.”
- E não se prevê nenhuma mudança no Direito Canónico no sentido de ir ao encontro das novidades trazidas pela nova Constituição, fica como é, o Direito canónico?
“A nova Constituição – é importante compreender isto – não incide sobre o Direito Canónico, mas vice-versa, o Direito Canónico determina até que ponto podem chegar os leigos na direção da Igreja católica universal.”
Esta é a hora da mulher
- De entre as mulheres que entrevistaste, Gudrun, em 2008 e que deu origem ao livro “Mulheres no Vaticano, encontros, retratos, imagens”, uma em particular, dizia que as mudanças no Vaticano relativamente ao espaço a dar à mulher, requeria muita paciência, pois não se pode mudar de um dia para outro, atitudes, mentalidades, modos de fazer que vêm de há milénios atrás. No entanto, as coisas, já aqui dissemos, aceleraram-se bastante nestes anos, graças sobretudo ao Papa Francisco. Mas aquelas primeiras mulheres que entraram a fazer parte da Cúria e do Estado da Cidade do Vaticano contribuíram de algum modo, a teu ver, para essa mudança bastante acelerada?
“Claramente, sim, acho; se penso nas mulheres que entrevistei naquele período, uma delas, a irmã Enrica Rosanna, a primeira Subsecretária mulher no Vaticano - ela fora nomeada pelo Papa João Paulo II no penúltimo ano do seu pontificado, em 2004 - recordo-me que ela me disse (não em entrevista, mas encontrando-nos duas ou três vezes, confidenciando-nos) que era realmente difícil para ela; que estava a passar por ataques dirigidas a ela pessoalmente, porque se encontrava – nomeada pelo Papa, claro – mas se encontrava num lugar para o qual não se previa certamente uma mulher. E lhe faziam sentir isso. Creio que essa irmã tenha vivido… bem, estou seguramente a exagerar (riso), mas as mulheres que tiveram determinadas posições, viram-se confrontadas com críticas ferozes que nem sempre vinham cá para fora, mas ficavam no interior… É algo a ver ao longo dos anos porque nós sabemos bem que – todos o sabemos – que esta é a hora da mulher, a roda, o tempo não voltam atrás e vemos que a Igreja não pode dar-se ao luxo de renunciar a estes talentos, a estas vocações das mulheres. Eis porque foi importante, ter, ver nestes anos cada vez mais mulheres a avançar mediante nomeações do Papa para posições de responsabilidade; caminhos que, com serenidade, tenacidade, energia e grande competência elas trilharam, contribuindo assim para este grande trabalho que se faz na Cúria Romana ao serviço da Igreja universal.”
Diversidade cultural deve reflectir-se nas nomeações
- A nova Constituição que regula a vida da Cúria Romana sublinha o caracter universal da Igreja e, portanto, a necessidade de que essa universalidade, essa grande diversidade cultural dos fiéis cristãos no mundo se reflita também nas pessoas que ocupam os cargos. Mas, as nomeações de mulheres de que falavas em 2008 eram, em grande parte, do mundo ocidental. Houve mudanças ao longo destes anos também neste aspeto?
“Gostaria, Dulce, de te poder dizer que já percorremos muito caminho neste sentido, mas, infelizmente, não é assim. Quer dizer, a diversidade de culturas deveria ser muito forte no Vaticano, porque é o centro da Igreja universal, mas isto não se reflete ainda muito, sobretudo no que tange a mulheres que aqui trabalham. Isto é, nas posições ocupadas por mulheres nos vértices ou mesmo de consultoras – porque ali as mulheres já percorreram muito caminho na Cúria Romana – não vejo ainda muito progresso. Há algumas religiosas que se tornaram membros de Congregações da Cúria, o que antes não era possível. Há uma brasileira, por exemplo, que é membro da Congregação para Evangelização dos Povos [a irmã Luzia Premiolo, comboniana nomeada em 2014]. Na época não era possível ser membro se não se era bispo, cardeal (riso], mas Francisco não quis respeitar essa regra, favorecendo assim a abertura da Igreja universal e nomeou essa superiora religiosa brasileira. Mas isto não tem sido um modelo muito comum até agora. Talvez seja devido a um aspeto prático, porque se o Papa nomeia uma mulher dos seus 45, 50 anos, com família, ela deverá, justamente, vir com a sua família e torna-se mais complicado. Portanto, o conselho que se poderia, talvez, dar, é que o Vaticano adote uma política de pessoal um pouco mais orientada. Se quer favorecer os leigos, como é justo que seja, deve fazer algo neste sentido.”
Perante esta evolução positiva, o que resta por fazer?
- Gudrun, atualmente está em curso a chamada sinodalidade, como caminho para o Sínodo, como momento de reflexão sobre a Igreja não só da parte dos bispos, mas de todo o povo de Deus. E pela primeira vez, há uma mulher, uma religiosa, como Subsecretária da Secretaria para o Sínodo dos Bispos, a irmã Nathalie Becquart, que terá direito a voto no Sínodo. Mas, perante esta evolução toda, o que resta, a teu ver (como estudiosa da questão da mulher no Vaticano) de importante, por fazer?
“Dulce, não sei como responder a esta pergunta; eu me considero uma observadora. Não sou uma pessoa que tem visões a levar para a frente; eu olho, observo, reúno os aspetos, estudo e falo das evoluções que vejo. Talvez a minha hesitação seja ligada ao facto de eu ser originária de um contexto em que a Igreja está num difícil processo de reforma e ali há muitas reflexões, mas também reclamações ou mesmo pressões da parte de católicos que se consideram muito reformistas e que pressionam em relação àquilo que, a seu ver, a Igreja deveria fazer. Eu não concordo com muitas dessas pressões, por conseguinte, não me atrevo muito a dizer aquilo que gostaria de ver na Igreja; além disso, quem sou eu para dizer que caminho deve empreender a Igreja católica para ter mais mulheres em posições de poder, porque no fundo é de poder que se trata conforme certas tendências de reforma da Igreja. A mim, agrada, simplesmente, observar aquilo que está a suceder devagar, devagar a nível estrutural, mas também a nível mais amplo, pois, o Papa Francisco diz muitas vezes que é importante ter mulheres em lugares de liderança na Igreja, mas não chega; devemos ter também uma visão mais ampla daquilo que é o espírito feminino na Igreja. Francisco diz muitas vezes que “a Igreja é mulher”. Mas, já compreendemos, por acaso, o que significa “a Igreja é mulher”? Nós vemos muitos sacerdotes, bispos, cardeais… basta ver as liturgias papais… em volta do Papa estão os cardeais, os bispos…, onde estão as mulheres?! Vejo isto e lanço isto como repto para a reflexão, o que podemos fazer para que o génio da mulher, o espírito feminino da Igreja possa dar ainda mais frutos no futuro? Devemos refletir juntos.”
Permanecer sempre em diálogo
- Hoje há muitos movimentos de mulheres que querem fazer ouvir a sua voz, alguns do teor daquilo que dizias antes, mas é claro que não se pode fazer de toda a erva um feixe. Organizações como “Catholick Women Speak”, “Voices of Faith”, D.VA, Associação das Mulheres do Vaticano, só para citarmos algumas, que papel achas que podem ter na Igreja hoje?
“Creio que o ponto central aqui é permanecer sempre em diálogo, não nos separarmos nunca, pois, há movimentos que se separam e que se tornam quase hostis em relação à Igreja católica, hoje. Como austríaca, posso compreender que muitas mulheres – quando vou à Áustria ou à Alemanha (falamos a mesma língua) – sinto, vejo da parte de muitas mulheres um profundo desejo de mudança, e muitas estão mesmo no limite, não aguentam mais, estão impacientes e acham que não está a acontecer nada [na Igreja]. Tenho muita pena de ver sofrer essas mulheres, mas tenho pena também de as ouvir fazer certas afirmações em relação à Igreja, afirmações que doem, porque não beneficiam em nada a causa da mulher. É sempre necessário permanecer em diálogo; é preciso ter sempre presente que podem ter a sua visão das coisas, os seus requisitos, as suas interrogações perante a Igreja, mas devemos permanecer filhas da Igreja.”
Aprofundar a reflexão
De salientar a propósito das novidades trazidas pela nova Constituição da Cúria Romana, que é ao Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida que é confiado o papel de “aprofundar a reflexão sobre a relação homem-mulher na respetiva especificidade, reciprocidade, complementaridade e igual dignidade.” Deste Dicastério espera-se também um “contributo à reflexão eclesial sobre a identidade e a missão da mulher e do homem na Igreja e na sociedade, promovendo a participação e valorizando as peculiaridades femininas e masculinas e também elaborando modelos de papeis guia para a mulher na Igreja.”
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E agradecemos à colega Gudrun Sailer pela partilha. Recordamos que ela é jornalista do Programa alemão da Rádio Vaticano e para além do citado livro de 2008, em alemão, “Mulheres no Vaticano, encontros, retratos, imagens” é também autora do livro “Monsignorina” sobre Herminia Speier, uma hebreia alemã, não católica. Foi admitida pelo próprio Papa Pio XI, em 1934 para trabalhar no arquivo fotográfico dos Museus do Vaticano. O livro saiu em 2011. Hermínia foi, praticamente, a primeira mulher a trabalhar de forma estável e com um contrato no Vaticano.
Aqui segue a entrevista apresentada na rubrica "África. Vozes Femininas" com a colaboração de Maria Ângela Jaguraba:
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