Aos cinquenta anos do assassinato de Amílcar Cabral
Ele foi dos principais teóricos da luta pela independência de Guiné Bissau e Cabo Verde, então colónias portuguesas, assassinado a 20 de janeiro de 1973. Ele está posicionado entre os grandes nomes da luta nacionalista africana e recentemente considerada por uma pesquisa da "BBC World Histories Magazine", em parceria com a Universidade de Oxford, como o segundo maior líder da História.
Nascido na Guiné-Bissau, em 1924, filho de pais cabo-verdianos, Cabral foi escritor e engenheiro agrónomo, com formação no Instituto Superior de Agronomia (ISA), em Lisboa, Portugal.
Líder do movimento de libertação anticolonial, tendo sido, em 1956, o principal fundador e doravante secretário-geral do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), teve enorme notoriedade mundial e conseguiu desencadear um bem-sucedido processo de luta armada de libertação nacional, em 1963, nas matas da então Guiné Portuguesa que culmina com cinco factos encadeados, nomeadamente o assassinato de Amílcar Cabral na cidade de Conacri em janeiro de 1973, a independência unilateral da República da Guiné-Bissau em setembro de 1973, a restauração do regime democrático em Portugal em abril de 1974, o reconhecimento da independência da República da Guiné-Bissau por Portugal em novembro de 1974 e a independência da República de Cabo Verde em 1975.
Entrementes, apesar de muitos estudos e pesquisas, assim como publicações, em torno da figura de Amílcar Cabral, realçando diversas facetas desse líder histórico, especialmente como teorizador, líder político, negociador internacional, agrónomo, ativista cultural e poeta, pressente-se faltar uma abordagem mais focada no seu papel que se reputa relevante como Homem de Cultura e portador de uma perspetiva pedagógica que terá sido determinante para o processo de libertação anticolonial e pós-colonial por ele desencadeado.
Amílcar Cabral elaborou uma obra valiosa que transcende o fim do colonialismo, fornecendo para os estudiosos instrumentos de análise, conceitos, valores e problemáticas que permanecem válidos no contexto pós-colonial contemporâneo. A obra de Cabral, nos vários domínios, sobressaindo a da Cultura, implicando revisitar não apenas em mergulho retrospetivo para se inferir a evolução da luta de libertação, o desencadear do processo democrático em Portugal e a consolidação das soberanias nos primeiros anos das independências da Guiné-Bissau e Cabo Verde, mas na busca de alternativas presentes ao desafio do desenvolvimento e da afirmação do Estado de Direito Democrático destes países, assim como a questão prospetiva de inventar um futuro, de produzir a História, de criar, como Amílcar Cabral dizia, “uma outra terra na nossa terra”, frase antes usada pelo poeta cabo-verdiano Aguinaldo Fonseca. Esta premissa permite que se perspetive a obra de Cabral maior abrangência e transcendência.
Efetivamente, o itinerário político e intelectual de Amílcar Cabral, que não se resume ao seu pensamento estruturado no questionamento do colonialismo português em África, à luta de libertação em prol das independências da Guiné Bissau e de Cabo Verde ou mesmo à pedagogia global da libertação dos povos, datado no século XX, sobrevive ao seu tempo histórico e desafia a fixá-lo no campo da História Universal como um dos grandes Pensadores e Líderes conhecidos.
Hoje, 50 anos sobre o seu assassinato, precisam ser estudados e analisados a sua vida e obra, com novas perspetivas que incidam olhares na transcendência que o seu legado, tanto na sua dimensão do passado como na sua ressonância válida ainda no presente, se mantêm com evidenciada dimensão do futuro.
Os estudos sobre Amílcar Cabral, levados a cabo em várias universidades e centros de saber ao redor do mundo, e por eminentes investigadores, ressaltam na sua complexa biografia não só os traços comuns dos ‘históricos e utópicos’ ou os traços distintivos de líder, de estratega, de pedagogo e de diplomata, numa significativa fatia do século XX, mas as suas estratégias políticas e culturais inovadoras e estruturantes para os afrontamentos políticos.
Amílcar Cabral deve ser visto, numa perceção mais justa, sobretudo como um Homem de Cultura e Humanista, além, muito além do criador e líder do PAIGC e do Pan-africanista que foi. Muito para além do líder que projetou e realizou a maior luta de libertação dos povos no século XX.
Homem de Cultura, porquanto olhava a luta emancipatória dos povos como um Ato de Cultura, exigindo dos oprimidos a tomada de consciência de si e do outro, e a avaliação crítica consequente sobre os mecanismos de dominação cultural como pilastras das dominações políticas sociais e económicas.
E Humanista, porquanto nunca ter assumido a libertação, mesmo em face do necessário enfrentamento armado contra o Colonialismo, como um ato de barbárie e de tragédia humana, mas como um processo de libertação tanto do oprimido, como do opressor, reconfigurando a visão de uma guerra que, na prática, conduziu à independência da Guiné-Bissau, de Cabo Verde e das demais colónias portuguesas em África, como desencadeou o 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos, que ditou o fim do regime fascista e colonial, restaurando as liberdades democráticas em Portugal.
De Cabral, esta premissa lapidar: “Os nossos povos, que fazem a distinção entre o governo colonial fascista e o povo de Portugal, não lutam nem querem lutar contra o povo português. Lutamos e lutaremos até a vitória final contra os colonialistas portugueses. No entanto, a situação objetiva das grandes massas populares de Portugal, oprimidas e exploradas pelas classes dirigentes de seu país deve lhes fazer compreender as grandes vantagens que, para elas, decorrerão da vitória dos povos africanos sobre o colonialismo português”. Um Humanismo que terá deixado sementes para a formulação nos países soberanos de afrontamentos doravante da democracia e do desenvolvimento.
Amílcar Cabral ressoa, 50 anos depois do seu desaparecimento, como uma figura inconformista e redentora, na qual residia toda a esperança de uma Humanidade mais partilhada e de um Mundo melhor possível para todos.
O legado de Amílcar Cabral interpela-nos aos desafios da ética contemporânea, como propôs o sociólogo cabo-verdiano Carlos Lopes, e à produção de novas inteligibilidades para a Humanidade, preconizada pelo historiador cabo-verdiano António Correia e Silva.
Filinto Elísio - Poeta, ensaísta, editor (Rosa de Porcelana Editora)
Lisboa 19-1-2023
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