Genocídio do Ruanda e literatura como compromisso de memória
Dulce Araújo - Vatican News
O programa semanal da Rádio Vaticano, "África em Clave Cultural: personagens e eventos" não podia deixar encerrar o ano de 2024 sem recordar um dos mais tristes acontecimentos que marcaram o continente africano neste século. Foi há trinta anos. Tudo começou num 7 de abril e prosseguiu enchendo o rio de pessoas sem vida. Foi assustador. E prosseguiu por três meses. Incrível! Onde estava o mundo, os que o podiam ter parado logo de início, ou impedido que se desencadeasse? São algumas das perguntas que inquietaram muitas mentes e corações e que continuam a perguntar-se como pode o ser humano chegar a tamanha criminalidade e violação do principal direito humano: o direito à vida.
A literatura e a memória do genocídio
A literatura procurou, com a sua linguagem, fazer o dever de memória. Muito se escreveu, talvez não tanto quanto seria necessário. Mas, há obras interessantes, fruto, entre outros, do projeto panafricano " Ruanda: escrever por dever de memória" que levou ao país, em 1998, uma dezena de escritores africanos para "uma residência literária" com o objetivo de manifestar solidariedade para com o povo ruandês, tomar o pulso da realidade do que tinha acontecido e publicar obras significativas sobre o assunto. Dois anos depois vinham a público as primeiras obras e em 2014, uma outra. O louvável projeto resultou da iniciativa do escritor e promotor cultural chadiano, Nocky Djedanoum, que nos anos 90 havia criado, em França, o Festival das Letras da África "Fest'Africa". Foi um projeto ímpar, de grande valor.
De algumas dessas obras e de várias outras, nos dá conta, na sua crónica, o intelectual, Filinto Elísio, da Rosa de Porcelana Editora. Depois de lembrar o triste caminho que levou a esse genocídio, ele recorda a "responsabilidade da literatura de promover, diante da tragédia humana, um novo Humanismo."
Um novo Humanismo - "o ser humano é sagrado"
Um novo Humanismo que passa pela assunção, por todos, de que "o ser humano é sagrado" - frisa o Embaixador, na reforma, Manuel Amante, cabo-verdiano, segundo o qual se não se tiver isso presente, de nada serve a educação ou a visita aos Memoriais. E a realidade - recorda - é que a humanidade está impassível perante um outro genocídio que está a ter lugar na Faixa de Gaza. Há ainda muito caminho a percorrer neste mundo em termos de respeito dos direitos humanos - concorda.
Duma visita, não há muito tempo, ao Ruanda, o antigo Embaixador recorda como ficou marcado pelo que viu nos vários Memoriais dessa tragédia e da pergunta que vem a qualquer pessoa: como foi possível isso ter acontecido? Mas, o que é surpreendente e louvável, a seu ver, é como o Ruanda ultrapassou esse trágico acontecimento e enveredou pelo caminho do desenvolvimento, passando a ser aquilo a que ele chama de "a África do possível", graças, considera, a um bom governo. A lição a tirar é que "tudo depende das lideranças". Infelizmente, diz, a "África não tem tido boas lideranças, capazes e orientadoras e devotadas ao desenvolvimento e crescimento."
Confira aqui a entrevista do Embaixador:
Leia a crónica do ensaista, poeta e editor (Rosa de Porcelana Editora), Filinto Elísio
Crónica
"Durante cem dias, entre abril e julho de 1994, o confronto entre Hutus e Tutsis, no Ruanda, resultou num trágico saldo de 1.074.017 mortos, 13% da população total do país na altura. Estima-se também dezenas de milhares de feridos, mais de duzentas mil mulheres estupradas e milhões de deslocados.
Esse genocídio, sim, porque se tratou de um genocídio, foi induzido e desencadeado por problemas estruturais internos e que transcendem a rivalidade histórica entre a maioria Hutu e a minoria Tutsi, acentuada durante a era colonial.
Na região onde é hoje o Ruanda, instalaram-se os Hutus, povo banto, vindos do Sul e do Oeste, e em seguida os Tutsis, povo nilótico, vindos do Norte e do Leste. O Colonialismo belga, e mais tarde o hegemonismo francês na região, dividiam para reinar, colocando a minoria Tutsi como detentores dos poderes e dos privilégios, em crescente tensão com a maioria Hutu.
Em 1959, os Hutus rebelaram-se contra os belgas e a elite Tutsi, forçando 150 mil tutsis a migrarem para o Burundi. Desse período aos anos 1990, houve o exacerbar das identidades étnicas e a frequência dos incidentes entre esses dois povos ruandeses, de tal modo que exilados tutsis criaram a Frente Patriótica Ruandesa, que invadiu o Ruanda em 1990 e lutou continuamente até que um acordo de paz tenha sido estabelecido em 1993.
Um ano depois, em 1994, acontece o genocídio que espanta o mundo, e marca definitivamente a história da África. Essa tragédia do Ruanda foi pródiga em reportagens mediáticas e narrativas cinematográficas e literárias.
Um dos escritos mais emblemáticos é de Scholastique Mukasonga, autora que perdeu dezenas de familiares naquele fatídico ano. Ela publicou Nossa Senhora do Nilo, seu primeiro romance, vencedor dos prémios Ahmadou Kourouma e o Renaudot, e A mulher dos pés descalços, obra autobiográfica, é uma homenagem a sua mãe, Stefania, e ganhou o prémio Seligmann contra o racismo. O seu livro Baratas aborda o drama das mães tutsis, que sabiam que seus filhos recém-nascidos seriam alvo de violações e abusos.
Outro autor é o jornalista canadiano Gil Courtemanche, com o romance Tensão em Ruanda, adaptado ao cinema, uma história de amor em plena carnificina humana. Importante foi a obra ensaística, baseado em entrevistas, do jornalista americano Philip Gourevitch, que durante três anos pesquisou os fatores culturais, políticos e étnicos por trás do massacre, intitulada Gostaríamos de informá-lo que amanhã seremos mortos com os nossos familiares.
Uma temporada de facões: relatos do genocídio em Ruanda, do jornalista Jean Hatzfeld descreve os genocidas que, diariamente, saíam às ruas em grupos para linchar tutsis. A obra expõe pessoas comuns, a princípio sem históricos de crimes e violências, a se engajaram na matança de cem dias.
A jovem Immaculée Ilibagiza depôs ao jornalista Steve Erwin, sobre como conseguiu sobreviver física e emocionalmente durante o genocídio, na obra. Sobrevivi para contar. Como não falar do livro Ruanda Um Genocídio na Consciência, de Michel Sitbon? Do Pequeno país, do rapper Gaël Faye, romance sobre a infância e o genocídio? Ou da pesquisadora portuguesa,Teresa Nogueira Pinto, com Um Genocídio de Proximidade: Justiça, Poder e Sobrevivência no Ruanda?
Murambi, o livro das ossadas, do escritor senegalês Boubacar Boris Diop é um assombroso relato polifónico sobre os 100 dias, de 1994, que abalaram o mundo.
Em todas essas obras e muitas outras não citadas, patente o dever de não apagar a memória e da literatura ter a responsabilidade de promover, diante da tragédia humana, um novo Humanismo."
Aqui a emissão "África em Clave Cultural: personagens e eventos" do dia 12-12-24
A respeito de visitas de africanos ao Ruanda e aos seus Mausuleus, de salientar que, em 2023, no âmbito das viagens de integração africana para jovens, a Congregação dos Agostininianos Assuncionistas levou a Kigali um grupo de jovens que, durante dias, refletiram em volta do tema geral: "A juventude dos mundos africanos" .
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