“D. Manuel fez-me nascer de novo” – Eugénio da Fonseca recorda D. Manuel Martins
Rui Saraiva - Porto
No dia em que completaria 91 anos de idade, sábado 20 de janeiro, D. Manuel Martins foi homenageado na cidade do Porto numa iniciativa da Fundação Spes, instituição da qual D. Manuel foi Presidente. Na Paróquia de Cedofeita, comunidade onde D. Manuel foi pároco entre 1960 e 1969, foram ouvidos testemunhos que fizeram memória da personalidade e da ação pastoral do bispo de Setúbal que faleceu no dia 24 de setembro de 2017.
Uma das pessoas presentes nesta homenagem era Eugénio da Fonseca, Presidente da Cáritas Portuguesa, um grande amigo de D. Manuel Martins. Falou aos órgãos de comunicação social e começou por recordar os sentimentos que o ligavam a D. Manuel Martins:
“A morte não mata a ternura, o afeto, a amizade, o amor. Ela, isso, jamais conseguirá matar. Há pessoas que ficam na lembrança e há outras que ficam na lembrança e no coração e D. Manuel é um desses. Eu costumo dizer, a propósito de D. Manuel e da minha relação com ele, aquele poema de um cantor português que diz: ‘há gente que fica na história, na história da vida da gente’. E entre mim e ele aconteceu isso.”
O Presidente da Cáritas Portuguesa destacou o livro que foi lançado nesse mesmo dia no âmbito da homenagem a D. Manuel Martins. “Nascemos Livres” é o título da obra que recolhe textos de D. Manuel Martins publicados entre setembro de 2016 e setembro de 2017 no ‘Jornal de Matosinhos’. Uma edição da Fundação Spes com prefácio de Eugénio da Fonseca:
“Espero que não seja o último livro. Muitas vezes se dizia ao senhor D. Manuel que era importante ele cuidar dos seus bens pessoais, sobretudo do seu pensamento. Nunca se incomodou muito e dizia-me sempre: ‘olha deixa-te disso, não te preocupes com isso porque depois de morrermos ao funeral vão todos, à missa de sétimo dia vão alguns e à de trigésimo dia só vão os que nos querem bem’. Dizia isto com muita graça! E eu insistia com ele porque ele dava muito o que lhe ofereciam e dispersava o que lhe davam e também aquilo que ele construía. Mas mesmo assim espero que ainda se possa vir a encontrar outros escritos. Se não for com escritos dele será com escritos sobre ele. E eu penso que é será essa a missão da Fundação agora criada pela diocese de Setúbal, de atualizar o pensamento de D. Manuel de acordo com os sinais dos tempos. Por que é esse um dos legados que ele nos deixa: a capacidade de ir à frente e não a reboque.”
Eugénio da Fonseca revelou como conheceu o bispo de Setúbal, contou um episódio intenso vivido numa noite de Natal no contacto com os sem-abrigo e declarou que D. Manuel Martins fê-lo nascer de novo:
“D. Manuel fez-me nascer de novo. A primeira vez que eu vi o bispo depois da sua ordenação foi numa das ruas estreitinhas de Setúbal, ia eu para o grupo de jovens da minha paróquia e vejo um homem e percebi que era o bispo de disse timidamente: ‘ah é o senhor bispo’. E ele disse-me: ‘quem és tu rapaz?’. E quis saber quem eu era e para onde ia. E ele andava a ler as toponímias para conhecer o nome das ruas. E fez-me nascer de novo porquê? Porque com ele fui aprendendo… Ele convidou-me para ir ajudar para a Cúria na pastoral juvenil, no ensino da Igreja nas escolas públicas…”. (…)
“… há uma grande diferença entre ser cristão e ser católico. Não se pode ser católico sem ser cristão. Mas há cristãos que o são, sem o saber, não sendo católicos. E D. Manuel ensinou-me que o ser cristão é seguir alguém e não ter apenas a preocupação de cumprir ritos.” (…)
“Um dia ele telefona-me e disse-me: ‘Olha lá, o que é que tu achas, e se na noite de Natal fossemos por aí pelos tugúrios dar uma ceia de Natal aos que vivem na rua?’. Nunca tal tinha acontecido em Setúbal. Eu já estava na Cáritas. Já ele tinha confiado em mim, eu sou um dos frutos da confiança dele. Quando me convida para a Cáritas eu disse-lhe que não sabia nada disso e ele disse-me: ‘É por não saberes que eu quero que vás, porque quem sabe faz sempre o mesmo e quem não sabe ousa fazer coisas diferentes’. E Setúbal estava a viver uma crise profunda como é amplamente conhecido. E então fomos para a rua na noite de natal. E eu nunca mais esquecerei que entramos numa fábrica que estava totalmente destruída e lá dentro estava uma mulher com uma criança e estava um homem que estava a utilizá-la para o seu prazer próprio. E a criancinha estava sentada numa caixa de fruta. O homem ficou muito aflito e fugiu. A mulher chorou. O senhor D. Manuel não lhe fez uma referência sequer ao que tinha visto. Onde o menino estava sentado montou-se a mesa. Pusemo-nos de joelhos e sentados a comer e quando saímos ainda na escuridão da fábrica destruída ele disse-me: ‘olha rapaz, isto para ser verdade tem que ser todos os dias’. E foi assim que nasceu o centro de acolhimento temporário às pessoas sem-abrigo. Era esta coerência de vida, era esta compaixão verdadeira, não gasosa, mas verdadeira… eu sentia que ele sofria com as pessoas…Naquele dia em que o acompanhei no encerramento de uma fábrica e que quando ele não conseguiu demover os sujeitos que em nome de uma empresa de leasing foram fazer esse encerramento, ele veio pelo caminho em silêncio. Chegamos a casa e ele disse-me: ‘A partir de amanhã vais saber quem são aqueles homens e aquelas mulheres, que nós vimos agarrados às máquinas a gritar e a GNR com os cães a querer que eles se desapegassem das máquinas para poderem fechar a fábrica, vais saber quem são eles porque eu quero que nenhum deles passe fome’. Eram estes exemplos de vida que me marcaram e que me fizeram mais cristão."
Os últimos momentos da vida de D. Manuel Martins foram de doença. Eugénio da Fonseca revelou as últimas palavras que D. Manuel lhe dirigiu, poucas horas antes de falecer:
“ Três dias antes de falecer visitei-o e ele ficou admirado com a minha presença e eu disse-lhe: ‘parece que está aborrecido de eu estar aqui consigo. Já não venho cá. Enquanto estiver doente não venho cá’. E ele disse algo que me fica como lema de vida: ‘faz aquilo que o teu coração te mandar’. E a última palavra que me disse horas antes de falecer foi: ‘força, filho’. E eu sei que é essa força, mesmo não estando nesta dimensão está noutra muito mais intensa, a permitir que eu, com as minhas fragilidades, possa continuar, assim Deus me ajude, a manter o legado que ele deixou.”
D. Manuel Martins, foi bispo de Setúbal de 1975 a 1998. Nasceu a 20 de janeiro de 1927, em Leça do Balio, concelho de Matosinhos tendo sido ordenado sacerdote em 1951. Após a sua formação nos Seminários do Porto rumou a Roma para estudar Direito Canónico na Universidade Gregoriana. Foi pároco de Cedofeita entre 1960 e 1969, na sua diocese do Porto, onde também foi vigário geral. Com a resignação oficial do serviço pastoral na diocese de Setúbal, em abril de 1998, pode dedicar os últimos anos da sua vida à Fundação Spes da qual foi presidente. D. Manuel Martins faleceu no dia 24 de setembro de 2017 com 90 anos.
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