Christus vivit, curar essa ferida para sempre
Christus vivit
(parágrafos 95-102)
Acabar com todas as formas de abuso
95. Nos últimos tempos, temos sido fortemente instados a escutar o grito das vítimas dos vários tipos de abuso cometidos por alguns bispos, sacerdotes, religiosos e leigos. Estes pecados provocam nas suas vítimas «sofrimentos que podem durar a vida inteira e aos quais nenhum arrependimento é capaz de pôr remédio. Este fenómeno, muito difuso na sociedade, toca também a Igreja e representa um sério obstáculo à sua missão».[49]
96. É verdade que o «flagelo dos abusos sexuais contra menores é um fenómeno historicamente difuso, infelizmente, em todas as culturas e sociedades», especialmente dentro das próprias famílias e em várias instituições, cuja extensão foi ressaltada sobretudo «graças à mudança de sensibilidade da opinião pública». Mas, «a universalidade de tal flagelo, ao mesmo tempo que confirma a sua gravidade nas nossas sociedades, não diminui a sua monstruosidade dentro da Igreja» e, «na ira justificada das pessoas, a Igreja vê o reflexo da ira de Deus, traído e esbofeteado».[50]
97. «O Sínodo reitera o firme empenho na adoção de rigorosas medidas de prevenção que impeçam a sua repetição, começando pela seleção e formação daqueles a quem serão confiadas tarefas de responsabilidade e educativas».[51]Ao mesmo tempo, não mais deve ser abandonada a decisão de aplicar as necessárias «medidas e sanções».[52] Em tudo, contando com a graça de Cristo. Não se pode voltar atrás.
98. «Existem diferentes tipos de abuso: abusos de poder, económicos, de consciência, sexuais. Torna-se evidente a tarefa de erradicar as formas de exercício da autoridade nas quais se entroncam aqueles, e de contrastar a falta de responsabilidade e transparência com que foram geridos muitos casos. O desejo de dominação, a falta de diálogo e transparência, as formas de vida dupla, o vazio espiritual, bem como as fragilidades psicológicas constituem o terreno onde prospera a corrupção».[53]O clericalismo é uma tentação permanente dos sacerdotes, que interpretam «o ministério recebido mais como um poder a ser exercido do que como um serviço gratuito e generoso a oferecer; e isto leva a julgar que se pertence a um grupo que possui todas as respostas e já não precisa de escutar e aprender mais nada».[54] Sem dúvida, o clericalismo expõe as pessoas consagradas ao risco de perderem o respeito pelo valor sagrado e inalienável de cada pessoa e da sua liberdade.
99. Quero, juntamente com os Padres Sinodais, expressar com afeto a minha «gratidão a quantos têm a coragem de denunciar o mal sofrido: ajudam a Igreja a tomar consciência do que aconteceu e da necessidade de reagir com decisão».[55]Mas também merece um reconhecimento especial «o compromisso sincero de inumeráveis leigas e leigos, sacerdotes, consagrados, consagradas e bispos que diariamente se consomem, honesta e dedicadamente, ao serviço dos jovens. O seu trabalho é como uma floresta que cresce sem fazer barulho. Também muitos dos jovens presentes no Sínodo manifestaram gratidão àqueles que os têm acompanhado e reafirmaram a grande necessidade de modelos».[56]
100. Graças a Deus, os sacerdotes que caíram nestes crimes horríveis não constituem a maioria; esta mantém um ministério fiel e generoso. Peço aos jovens que se deixem estimular por esta maioria. Em todo o caso, quando virdes um sacerdote em risco, porque perdeu a alegria do seu ministério, porque busca compensações afetivas ou está a tomar um rumo errado, tende a ousadia de lhe lembrar o seu compromisso para com Deus e o seu povo, anunciai-lhe vós mesmos o Evangelho e animai-o a permanecer no caminho certo. Assim, prestareis uma ajuda inestimável num ponto fundamental: a prevenção que permite evitar a repetição destas atrocidades. Esta nuvem negra torna-se também um desafio para os jovens que amam Jesus Cristo e a sua Igreja, porque podem contribuir muito para curar esta ferida, se puserem em campo a sua capacidade de renovar, reclamar, exigir coerência e testemunho, voltar a sonhar e reinventar.
101. Este não é o único pecado dos membros da Igreja, cuja história apresenta muitas sombras. Os nossos pecados estão à vista de todos; refletem-se, impiedosamente, nas rugas do rosto milenário da nossa Mãe e Mestra. Com efeito, desde há dois mil anos que ela caminha compartilhando «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens».[57]E caminha como é, sem cirurgias estéticas. Não tem medo de mostrar os pecados dos seus membros, que às vezes alguns deles procuram esconder, perante a luz ardente da Palavra do Evangelho que limpa e purifica. E não cessa de repetir cada dia, envergonhada: «tem compaixão de mim, ó Deus, pela tua bondade; (...) tenho sempre diante de mim os meus pecados» (Sal 51/50, 3.5). Lembremo-nos, porém, que não se abandona a Mãe quando está ferida, mas acompanhamo-la para que tire fora de si mesma toda a sua força e capacidade de começar sempre de novo.
102. No meio deste drama que justamente nos fere a alma, «o Senhor Jesus, que nunca abandona a sua Igreja, dá-lhe a força e os instrumentos para um caminho novo».[58]Assim, este momento sombrio, com «a ajuda preciosa dos jovens, pode verdadeiramente ser uma oportunidade para uma reforma de alcance histórico»,[59] para se abrir a um novo Pentecostes e começar um período de purificação e mudança que dê à Igreja uma renovada juventude. Entretanto os jovens poderão ajudar muito mais, se de coração se sentirem parte do «santo e paciente Povo fiel de Deus, sustentado e vivificado pelo Espírito Santo», porque «será precisamente este santo Povo de Deus que nos libertará do flagelo do clericalismo, que é o terreno fértil para todos estes abomínios».[60]
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