Lições de vida de um jovem autista
Ricardo Gomes – Jornalista
"O importante é vir com saúde! Depois que me tornei mãe e recebi o diagnóstico de autismo do meu filho, vi que tem uma frase ainda mais potente para falarmos para as mulheres grávidas. Então, troquei a frase O importante é vir com saúde pela frase O importante é vir com amor”. Simone Mendonça
Toda a história inicia com o nascimento de Davi Mendonça Cardoso diagnosticado com autismo leve. Para Simone inicia um desafio, mas revela o amor por um filho esperado. Davi começou seus estudos numa Escola Salesiana e concluiu o Ensino Médio em Portugal. De volta ao Brasil inicia uma nova etapa, aprovado para Faculdade de Psicologia.
"O autismo é um modo de estar e viver, é uma perspectiva diferente do mundo". Essa breve afirmação é do jovem Davi Mendonça Cardoso, de 18 anos. Escritor e estudante de Psicologia, Davi foi diagnosticado com autismo quando tinha 10 anos e hoje quer contribuir para o mundo combatendo o capacitismo, que é o preconceito contra as pessoas com deficiência.
"A minha fé me ajudou muito a superar a barreira da exclusão que vivi na sociedade e a deixar o meu estado de espírito melhor e com mais harmonia. Jesus curou o cego, fez andar o deficiente físico, tocou nos leprosos. Ele sempre atendia aos necessitados e levava esperança aos que eram excluídos pela sociedade." Davi Mendonça Cardoso.
A fé sempre foi sua companheira, desde muito cedo.
"Fui criado dentro da Igreja Católica. Meu pai é um homem de fé e minha mãe era integrante da Pastoral da Comunicação. Eu cresci vendo o trabalho dela no jornal e site paroquiais e na rádio católica da cidade. Gostava tanto do ambiente que quando pequeno, brincava de ser padre. Cresci participando das festividades de Santo Antônio, que é padroeiro do meu bairro, e recebendo a imagem peregrina de Nossa Senhora de Schoensttat na minha casa”, relata Davi.
Davi tem uma devoção muito forte por Nossa Senhora e conta um episódio emocionante
“Em todas as situações de decisão, eu e minha mãe costumamos falar 'Maria passa na frente'. Quando moramos em Portugal e fomos me matricular na escola, estávamos com receio de como seria minha vida escolar num país distante e desconhecido. Mas assim que entramos no portão da escola, começou a tocar a Ave Maria. A canção permaneceu no sistema interno de áudio durante todo o tempo em que estávamos fazendo a matrícula. Eu e minha mãe nos olhamos com a certeza de que era Maria abençoando minha estadia naquele lugar. E realmente foi um período muito enriquecedor para mim”, conta Davi.
O jovem também tem história com Santo Antônio, por quem se sente sempre acompanhado
“Minha casa fica em frente à Igreja de Santo Antônio. Por isso, todo dia 13 de junho, dia do santo eu participava da procissão. Nas primeiras, vestido de anjinho; e anos depois representando o próprio padroeiro. Quando nos mudamos para outra cidade, nossa casa também fazia parte da Paróquia de Santo Antônio. E quando moramos em Portugal, para a nossa surpresa, alugamos um apartamento ao lado do mosteiro de Santo Antônio. Ou seja, ele está sempre comigo”, revela.
Mesmo após o diagnóstico do autismo, Davi nunca frequentou o ensino especial, tendo estudado sempre em escolas regulares e inclusivas. Dois anos em uma escola salesiana, cuja pedagogia valoriza a presença do educador nos momentos de diversão das crianças. As outras escolas, embora não fossem salesianas, também valorizavam as atividades de "pátio”, assim como pedagogia de Dom Bosco, o que ajudou muito na socialização e na inclusão.
Sou a mãe, a jornalista Simone Mendonça, ressalto a importância desse espaço escolar no exercício da inclusão. É um ambiente propício para se propagar o anticacitismo. Ali, no convívio, as crianças podem aprender com as diferenças e, assim, minimizar ou acabar com os preconceitos”. Certa vez a escola lançou um concurso de marchinhas e Davi se inscreveu. Os participantes deviam criar uma versão usando um dos temas estudados em sala de aula. Davi escolheu cantar sobre a Guerra Fria e levou o primeiro lugar.
Teatro: um exercício para a socialização
O teatro também colaborou para o processo de socialização do Davi. O primeiro contato com essa arte foi quando cursava o 2º ano do Ensino Fundamental. Mais tarde, na escola salesiana, voltou a se interessar em atuar.
"Nessa época meu pai me apresentou o teatro clássico da Grécia antiga e suas peças – Prometeu Acorrentado, de Ésquilo; Alceste, de Eurípides; e Édipo Rei, de Sófocles", conta o jovem. “A aula de teatro contribuiu muito para eu superasse a timidez, que era algo frequente.”
Foi então, que depois de várias aulas, readaptação, conhecimento da rotina e meios da vida teatral e ensaios, Davi estreou no palco, encenando junto com o professor Rodrigo Dias a esquete "Atendimento ao consumidor" de Fábio Porchat. No ano seguinte, representou o Gru, o excêntrico e cômico protagonista da série cinematográfica Meu Malvado Favorito.
Vida Acadêmica
Em dezembro de 2019 o jovem foi morar em Portugal com a mãe que foi ao país cursar um mestrado. Lá, o jovem concluiu o ensino médio e se inscreveu no processo seletivo da Universidade da Beira Interior (UBI) no contingente de alunos estrangeiros. Foi aprovado na instituição em dois cursos: no de Ciências da Cultura e no de Ciências Políticas e Relações Internacionais. No entanto, por causa da falta de oportunidades de trabalho devido à pandemia, não foi possível permanecer no país e custear o curso universitário. "Chegamos a fazer uma vaquinha online, mas não conseguimos alcançar o necessário", explica o jovem.
Então mãe e filho retornaram ao Brasil em novembro de 2020.
Aqui chegando, o jovem ingressou no curso de Psicologia, pensando principalmente no bem-estar das pessoas atípicas. "É uma área que estuda o comportamento humano, que é algo que cada vez mais está sendo debatido, principalmente no tocante à conduta das pessoas atípicas, que tem evoluído bastante nos estudos e nas perspectivas. Mas ainda há um grande passo para evoluir a ponto de acabar com o preconceito. E por isso pretendo contribuir para a inclusão dessa minoria da qual faço parte e mostrar ao mundo como somos pessoas com dons típicos do homem como qualquer outro humano", diz Davi.
"Como estudante de Psicologia e católico fervoroso, vejo a alma como a chama da vida, que é uma parte do intelecto de Deus a qual nos é dada à sua imagem e semelhança, para cumprirmos o nosso papel aqui na Terra e, depois de termos vivido o tempo necessário, Ele a leva de volta para o Seu lado, mostrando a todos que ela é eterna e imortal", conclui o jovem.
Vida profissional
Recentemente Davi iniciou no seu primeiro emprego, integrando a turma de jovens aprendizes do projeto "Cidadão em Construção” da Prefeitura de Cabo Frio, sua cidade natal, localizada no estado do Rio de Janeiro, através da Secretaria da Criança e do Adolescente e do CIEE-RJ. O jovem atua em espaços culturais como a Biblioteca Municipal e o Museu e Casa de Cultura José de Dome – mais conhecido como Charitas –, em serviços internos. "Está sendo uma grande experiência e que está contribuindo muito para o meu desenvolvimento tanto profissional como pessoal, até mesmo para conhecer e ter melhor contato com a cultura e a história da cidade".
Futuramente deseja atuar na sua área de estudo, a Psicologia: “Atualmente, penso em trabalhar na Psicologia Clínica me capacitando cada vez para ajudar o desenvolvimento das pessoas atípicas e das pessoas que fazem parte de minorias”, conclui o jovem.
“Não somos heróis nem anjos”
Apesar de apresentar bom desenvolvimento dentro do espectro, Davi ressalta que enxergar os deficientes como anjos, heróis ou exemplos de superação é um gesto capacitista. "Esses rótulos nos desumanizam. Precisamos mostrar que somos pessoas, que têm direitos, deveres e necessidades, como todas as outras", explica.
Sua mãe chama a atenção para a importância de respeitar cada um dentro desse processo de desenvolvimento. "Cada autista tem seu próprio processo. Não é justo comparar as limitações e as potencialidades entre eles. Cada um tem sua unicidade e seu tempo, conclui o jovem.
- No autismo é importante a gente prestar atenção nas fases. Se a criança não apresentar um determinado desenvolvimento na respectiva fase, os pais devem ficar atentos. – disse Simone.
"O problema não está na deficiência, mas na sociedade"
Simone explica que os maiores desafios em relação ao autismo do filho não estão na deficiência em si, mas na sociedade. Segundo ela, uma dessas dificuldades é a carência de profissionais capacitados para o acompanhamento e definição do diagnóstico. "Percebemos os sinais desde muito cedo e logo procuramos atender ao que ele precisava, mas há 18 anos era ainda mais difícil encontrar profissionais", explica a mãe, alertando para a importância do diagnóstico precoce. "Quanto antes você descobrir e acompanhar, mais chance a criança tem de receber e responder aos estímulos", acrescenta. Apesar de ter acompanhamento psicológico desde os seis anos, o diagnóstico só foi possível aos 10, quando foi incluído na então utilizada classificação de Síndrome de Asperger.
No caso do Davi, nos primeiros anos de vida foram necessárias sessões com psicólogos, fisioterapeuta e fonoaudióloga, além de aulas de natação, para combater uma hipotonia muscular. "Essa estrutura tem custo alto. Fomos atentos, persistentes e recebemos ajuda familiar. Fico imaginando quantos autistas não desenvolvem por falta de condições financeiras para ter esse acompanhamento", ressalta a mãe, chamando atenção para outro desafio: a falta de políticas públicas em saúde e atenção básica para autistas.
Outro grande desafio é a exclusão social. Simone diz que ainda é comum escolas que dificultam a matrícula e a permanência de alunos com deficiência, apesar da existência da Lei Berenice Piana, que prevê punição para as instituições que recusarem alunos com deficiência. Além disso, a exclusão também se dá pela falta de acessibilidade nos ambientes, que geralmente são criados apenas para pessoas que não apresentam limitações físicas e/ou intelectuais.
"Não é fácil, mas não por causa da deficiência, e sim pelo que a sociedade nos impõe”.
Família: fonte de amor e de inspiração
Na família, Davi aprendeu sobre diversidade, empatia, respeito, amor e também sobre seus direitos e deveres. E aprendeu, sobretudo, a ter autoestima, com a consciência de que todos somos diferentes, e que essa diversidade é essencial para o mundo.
"Meus pais aos poucos me falaram sobre o diagnóstico. No começo, estranhei e fui aceitando aos poucos quem eu era de verdade. Eles me prepararam para enfrentar os olhares preconceituosos. Logo entendi que o problema está na pessoa que tem preconceito e não em mim". Davi também deixa uma mensagem de incentivo para quem se sente discriminado. "Se você teve um dia ruim porque se sentiu humilhado (seja por pessoas, seja pela própria vida), não se deixe abater. Todo dia tem uma nova hora para que nos lembremos que o momento ruim já passou: é uma página virada", conclui.
Artes e Filosofia
“Davi é exemplo de vida. De superação de preconceitos para ser responsável pela construção de uma nova sociedade. De um mundo sem excluídos pelo preconceito, pela violência e pela competição, mas pela solidariedade e pela paz.”
Ler é o que Davi mais gosta de fazer, especialmente na companhia do pai, o professor e músico José Vinícius Sampaio Cardoso. Eles se encontram pelo menos uma vez por semana para colocar a leitura em dia.
Para Davi, as Artes funcionam como uma “ponte para o conhecimento e uma maneira de nos fazer viajar e conhecer sem sair fisicamente do lugar”:
Outra paixão sua é a Filosofia que, na definição dele, trata-se da busca à Verdade realizada pelo homem, que apareceu no período em que eles tentavam desmistificar os pensamentos e “explicações”.
"Trata-se de um exercício para o cérebro com o fim de nos ensinar a ter uma perspectiva mais aberta e além de tudo aquilo que nos é mostrado e podemos ver e sentir. Deus não esconde a Verdade àqueles que a procuram, independente da fé e crença destes. Por isso, a Igreja Católica preservou os textos filosóficos de Platão e Aristóteles – como também o fizeram os judeus e muçulmanos –, que posteriormente influenciaram o pensamento cristão. Sempre gostei de questionar e, através da pergunta, alcançar junto com o raciocínio as respostas de uma maneira leve, divertida e diria que filosófica também, com o fim de colocar igualmente os outros para refletirem sobre como as coisas mais simples podem ser as que mais nos têm a ensinar”. Para ele, a Arte e a Filosofia são irmãs.
Lançamento de livros e presença digital
No ano passado, mãe e filho lançaram o livro "Pérolas - palavras e artimanhas de um menino autista". A obra reúne episódios divertidos protagonizados pelos dois em sua rotina diária de mãe e filho, do período em que Davi tinha dos 5 aos 12 anos. "Eu registrava nas redes sociais as coisas engraçadas e os questionamentos interessantes que ele fazia. O público amava as histórias e pedia para que eu transformasse em livro", conta Simone. A obra se encontra à venda no formato de e-book no perfil @paramaesatipicas no Instagram. O desejo dos dois é publicar o livro na forma física. Para isso estão procurando patrocinadores e editora.
Simone escreve sobre a maternidade atípica e pretende lançar seu primeiro livro solo ainda este ano sobre o tema. "Por causa dos meus textos, muitas mães me procuram para troca de experiências. Então percebi que muitas precisam passar pelo processo de auto-(re)conhecimento pelo qual eu também passei. Por isso criei um espaço virtual para disponibilizar nossos livros e uma vivência online para essas mães: www.paramaesatipicas.com.br.
Davi também criou o perfil @davi_mendonca_cardoso no Instagram. O objetivo é acolher, falar das suas perspectivas de vida, sobre autismo e inspirar. "Quero ajudar as pessoas a se aceitarem como são por natureza, do jeito que Deus as fez".
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