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03774_13042017 ok.jpg Rumo ao Sínodo

Uma reflexão sobre a sinodalidade à luz de Jo 17,20-23

"No seu protagonismo, Jesus, afirmando ser o Bom Pastor que dá a sua vida por suas ovelhas (Jo 10,1-18), revela que essa unidade é o grande sinal do advento e da realização do plano amoroso desejado por Deus Pai que não quer condenar o mundo, mas quer salvá-lo (Jo 3,16-17; Ez 18,23.32; 33,11), e que cada ser humano chegue ao conhecimento da verdade pela mediação de Jesus Cristo (1Tm 2,4-5)."

Por Pe. Leonardo Agostini Fernandes*

Subjaz à sinodalidade a graça eficaz de Deus que capacita a Igreja peregrinante de percorrer unida o mesmo caminho (syn + hodós), isto é, de se colocar no seguimento de Jesus de Nazaré, seu Senhor, confessado Cristo e Filho de Deus (Mc 1,1; 8,29; 15,39), aceitando-o como único caminho que, na verdade de seu Evangelho, conduz à fonte da vida (Jo 14,6). Pelo discipulado, então, cada fiel aprende a viver sob a luz e a condução do Espírito Santo, que, como Mestre Interior, recorda, ensina e dá testemunho da verdade que liberta (Jo 16,13-15).

Um olhar atento para o chamado dos discípulos (Mc 1,16-20; 2,12-14), para a eleição, dentre estes, de Doze como apóstolos (Mc 3,13-19), e para a experiência que, caminhando juntos, fizeram ao lado de Jesus, permite perceber uma clara intenção: promover a unidade na pluralidade. No seu protagonismo, Jesus, afirmando ser o Bom Pastor que dá a sua vida por suas ovelhas (Jo 10,1-18), revela que essa unidade é o grande sinal do advento e da realização do plano amoroso desejado por Deus Pai que não quer condenar o mundo, mas quer salvá-lo (Jo 3,16-17; Ez 18,23.32; 33,11), e que cada ser humano chegue ao conhecimento da verdade pela mediação de Jesus Cristo (1Tm 2,4-5).

Sabe-se que o Papa Francisco muito tem falado e se empenhado para a concretização da sinodalidade na Igreja. Basta verificar a clareza da reflexão teológica que fez no seu discurso, por ocasião do jubileu de ouro da instituição do Sínodo dos Bispos, no dia 17 de outubro de 2015. Já nas suas palavras iniciais lembrou que: “Desde o Concílio Vaticano II até à atual Assembleia, temos vindo a experimentar de forma cada vez mais intensa a necessidade e a beleza de ‘caminhar juntos’”. Quem deseja ler essa reflexão na íntegra, basta acessar o link: https://bit.ly/307t9lx.

Sob essas premissas, procurarei evidenciar o tema da sinodalidade à luz de Jo 17,20-23, percorrendo três tópicos: 1) O contexto da Última Ceia; 2) Um olhar para o texto; 3) A comunhão fraterna. A linha mestra que adoto encontra-se em Mt 12,25: “Conhecendo seus pensamentos, disse-lhes: ‘Todo reino dividido contra si mesmo arruína-se e toda cidade, ou casa, dividida contra si mesma não poderá permanecer de pé’”.

1)   O contexto da Última Ceia

Por um caminho diferente dos Sinóticos (Mt, Mc e Lc), o Quarto Evangelho não narra a instituição da Eucaristia. Admite-se que Jo 6,1-71 cubra essa lacuna com a narrativa da multiplicação dos cinco pães de cevada e dos dois peixinhos (Jo 6,1-15), o prelúdio da vitória sobre a morte (Jo 6,16-21) e o discurso na sinagoga de Cafarnaum (Jo 6,22-66), que culmina com a confissão de Pedro (Jo 6,67-71). Some-se a isso, os quatro momentos da Última Ceia narrada em Jo 13,1–17,26: O lava-pés (Jo 13,1-20), o anúncio da traição de Judas Iscariotes (Jo 13,21-30), o discurso de despedida (Jo 13,31–16,33), e a oração sacerdotal (Jo 17,1-26).

A Última Ceia possui centralidade no Quarto Evangelho, marcando um percurso antes (Jo 1,19–12,50) e outro depois dela (Jo 18,1–20,31), emoldurados por um prólogo (Jo 1,1-18) e um epílogo (Jo 21,1-25). É sinal da profunda intimidade entre Jesus e os Doze, através do exemplo pelo serviço e por profundas revelações: a traição de Judas em contraste com o tom de despedida de Jesus, focada no envio do Paráclito. Digno de nota, é a insistência na oração de petição, presente em Jo 15,16 e 16,23b-28, cuja dinâmica é clara: pedir ao Pai, em nome de Jesus, e dele receber o que foi pedido. Pode-se entrever que a petição de Jesus ao Pai, em Jo 17,20-23, sirva para motivar os apóstolos a fazer o mesmo, certos de que serão atendidos.

Critério indispensável, para a eficácia da oração, é permanecer em Jesus, cumprindo a sua vontade, como ele permanece no Pai e cumpre a sua vontade (Jo 15,1-11). Não é um simples critério de imitação, mas de conduta de vida pautada no conhecimento da verdade. É o significado, a exemplo de Jesus, de “permanecer no seu amor”, ligado ao “cumprir os seus mandamentos”, para os que ele livremente escolheu e designou de amigos (Jo 15,12-17).

Assim, a ênfase e a eficácia de Jo 15,16 recaem sobre o sentido da eleição e da missão que se desenvolvem na relação íntima e pessoal de Jesus com seus apóstolos. Parece que essa fala tem a ver tanto com a traição de Judas, como com as consequências, pois a amizade não esgota a vocação e tampouco reduz o que se espera da missão como expresso em Jo 17,20-23.

2)   Um olhar para o texto

Jo 17,1-26 pode ser visto como o lado revés de Jo 1,1-18. Enquanto este revela a glória do mistério da preexistência e da encarnação do Verbo Divino, aquele revela a glória do seu regresso ao Pai. Por isso, há em comum aos dois textos, a eternidade que se encontra além do tempo e do espaço. Em Jo 17,1-26 alterna-se o olhar para o que já aconteceu, dimensão do passado, e para o que ainda irá acontecer, dimensão do futuro, à luz da realização do projeto do Pai ao enviar o seu Unigênito Filho ao mundo, assinalado em Jo 1,1-18.

Se, por um lado, não houve preocupação do Verbo Eterno em “abandonar” o Pai, pela obediência, para estar no mundo entre os seres humanos; por outro lado, Jesus revela que não quer “abandonar” os apóstolos sem que o seu testemunho seja transformado pela glória que pede ao Pai para eles e para os que, pela fé, virão depois deles: a sua ressurreição e o dom do Espírito na unidade e sinodalidade presentes no significado da fração do pão e do lava-pés.

No centro da oração de Jesus ao Pai está o seu amor pelos apóstolos e a súplica pela unidade fruto da sinodalidade vivida com ele (Jo 17,11). Pela lógica da narrativa, deve-se, igualmente, pensar na dor que o Senhor sentiu, nesse momento, pela ausência de Judas Iscariotes, visto que decidiu fazer um caminho de divisão e de morte (Jo 13,30): “e nenhum deles se perdeu, a não ser o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura” (Jo 17,12).

Em Jo 17,20-23 há um dado singular: Jesus expande o seu pedido para além do grupo dos apóstolos, como consequência da missão que realizarão até o seu retorno glorioso. Novamente, suplica pela unidade e aponta para os critérios que a exemplificarão no mundo: “Eu lhes dei a glória que tu me deste, para que sejam um como nós” (Jo 17,22). A glória dada ao Pai e a glorificação de Jesus pelo Pai abriram a oração e nela prosseguiram. Como o Pai foi glorificado por Jesus, assim Jesus quer ser glorificado na vida de seus apóstolos (v. 1.4.5.10.24), isto é, de sua Igreja.

A abrangência da oração de Jesus, em função da unidade perfeita, para além do grupo apostólico, fundamenta a razão e a necessidade do caminhar juntos, a fim de que a missão, sendo eficaz no mundo, resulte na comunhão da vida eterna pelo conhecimento da verdade e pela sua concretização no amor (Jo 17,24-26).

Assim, a totalidade da obra se expressa pelo vínculo do amor, pois é o elemento mais sensível, visível e forte da união entre os apóstolos, com Jesus e com os que, por eles, também se tornarão discípulos. O amor, sem dúvida, constitui o testamento do Senhor Jesus para os seus apóstolos. A fonte da sua vida, pela geração eterna, aparece doada e entregue, porque se torna herança dada aos seus como prova da sua irrevogável união com eles e entre eles.

Resulta que a união de Jesus, com os apóstolos e com os que virão depois destes, se torna um critério indispensável para o conhecimento de Deus e do seu plano de amor. Isto aparece como um efeito da pregação e, de certa forma, revela o êxito do ministério público de Jesus, enquanto aponta para o que ainda está por vir. A unidade do Filho com o Pai (Jo 17,11) é o fundamento da unidade do Filho com os apóstolos e com os novos discípulos (Jo 17,21).

Como Jesus deu a conhecer a Deus e revelou a sua glória (Jo 17,1-8), agora delega a mesma missão aos seus apóstolos em relação a ele (Jo 17,20-26). Nota-se mais uma sutil diferença entre o Quarto Evangelho e os Sinóticos, pois não houve, apesar de um aceno em Jo 4,35-38, o envio em missão como aparece em Mt 10,1–11,1; Mc 6,6b-13; Lc 9,1-6; 10,1-16.

Visto que o Pai está no Filho, de igual modo o Filho pede que o Pai esteja nos fiéis que, no mundo, testemunharão a união entre o Pai e o Filho, crendo no envio do Filho pelo Pai para a salvação do mundo. Nesse sentido, a glória que o Filho pede ao Pai não diz respeito apenas ao antes da sua Encarnação, mas tem a ver com as consequências dela, para muito além da união perdida pelos progenitores com a desobediência original e a perda do Jardim do Éden.

Por meio da novidade dessa união, vislumbra-se a eficácia da inabitação divina no ser humano pela redenção e pelo dom do Espírito Santo. Assim, a união tem a sua razão de ser na revelação, porque Deus se fez conhecer pelo Filho e este conhecimento se expandirá pelo envio e missão do Espírito na vida dos apóstolos e da Igreja.

3)   A comunhão fraterna

Como a vocação e a missão de Jesus constituíram o núcleo apostólico, de igual modo, a vocação e a missão dos apóstolos alargarão os efeitos, gerando um estado de dignidade fraterna. Como os apóstolos são os frutos que Jesus apresenta ao Pai, por permanecer no seu amor, de igual modo, permanecendo em Jesus e no seu amor, o Pai será por eles glorificado, pois produzirão muitos frutos pela eficácia da sua palavra e pelo testemunho do seu amor incondicional. A unidade, centrada na fala sobre a videira, lança as bases para o caminhar juntos no seu amor. É isto que faz a humanidade mudar de direção, pois o amor recebido exige ser comunicado como sinal de vida.

A unidade desejada por Jesus é uma obra, consequência do efeito da comunhão de vida com Pai, isto é, fruto do caminho percorrido com ele e junto a ele. O sentido e a força dessa comunhão se encontram na fração do pão, sinal de unidade, na qual todos se reconhecem fratelli tutti.

O exercício e a preservação da comunhão fraterna são sinais eloquentes de que a sinodalidade é o caminho indispensável em todos os níveis da vida eclesial e para além de qualquer forma de expressão meramente hierárquica, pois diz respeito a todos os batizados. Isto parece fácil dizer, mas a sua concretização exige diversos tipos de renúncias, em particular do gosto pelo poder que precisa ser subjugado à autoridade do amor e do serviço a exemplo de Jesus que não veio para ser servido e, sim, para servir e dar a sua vida em resgate de muitos (Mt 20,28; Jo 13,12-17).

Portanto, o amor recíproco do Pai e do Filho, vislumbrado na comunhão de vida entre Jesus e os seus apóstolos, tornar-se-á a credencial necessária para que a missão alcance o seu êxito, se a unidade e sinodalidade forem inseparáveis pela obediência da fé transformada em caridade, fonte de vida, de comunhão e de correção fraterna. Ficam em evidência o significado da existência cristã e as exigências do amor fraterno por Cristo, com Cristo e em Cristo, norma essencial frente a todas as formas de hostilidades e de possíveis rupturas dentro e fora do âmbito eclesial. Se a comunhão fraterna não elimina as diferenças, também não as prioriza, pois as relativiza à força do amor.

Considerações finais

A preocupação com uma evangelização eficaz é, sem dúvida, legítima quando se reconhece que a autoridade de Jesus foi outorgada para ser testemunhada e praticada pelo dom do serviço. No centro está a Santíssima Trindade, máxima revelação de Deus para a fé cristã e fonte absoluta das intenções, projetos, opções e decisões da Igreja nas suas diferentes formas de colegiado. Por este, as instâncias hierárquicas da Igreja podem e devem manifestar a força da unidade e da sinodalidade, sem as quais a credibilidade das suas ações ficarão comprometidas.

Sobre essa dinâmica, as palavras do Papa Francisco, no final da sua introdução, por ocasião da comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos, são pertinentes e proféticas: “O mundo, em que vivemos e que somos chamados a amar e servir mesmo nas suas contradições, exige da Igreja o reforço das sinergias em todas as áreas da sua missão. O caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio”.

A sinodalidade, então, não foi uma invenção do Concílio do Vaticano II e, tampouco, uma brilhante ideia do Papa Francisco, mas uma necessidade de se retornar às fontes e ao modelo de convivência inaugurado pelo próprio Jesus com os seus apóstolos. Assim sendo, o horizonte da sinodalidade vai muito além das experiências visíveis e das competências dessas instâncias, pois é sinal do mistério de comunhão irrevogável de Deus, Uno e Trino, com toda a Humanidade.

Que o reinado de Deus, inaugurado e concretizado em Jesus por suas palavras e ações inflamadas de amor, se revele em cada fiel, membro do Povo de Deus, pela obediência da fé na prática do bem, da justiça e da verdade em todos níveis: familiar, social e eclesial. Que saibamos pedir ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo, essa graça que, além de ser um antídoto contra o mal das divisões, restaura, como um bálsamo, a unidade que o Senhor pediu para o seu rebanho.

* Padre Leonardo Agostini Fernandes é sacerdote da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, prof. de Sagrada Escritura do Dep. de Teologia da PUC- Rio; Capelão da Igreja do Divino Espírito Santo do Estácio de Sá/RJ

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12 outubro 2021, 10:12