Cardeal Odilo Scherer: Convertei-vos!
Cardeal Odilo Pedro Scherer - Arcebispo de São Paulo
Os católicos iniciaram o tempo da quaresma, preparando-se para a festa da Páscoa, a ser celebrada em meados do próximo mês de abril. De antiga tradição bíblica e cristã, a quaresma lembra os 40 dias de Jesus no deserto, em jejum e oração, preparando-se para o anúncio do Evangelho. Lembra, também, os 40 anos da travessia do deserto, do povo hebreu guiado por Moisés, em busca da terra prometida.
A quaresma iniciou com o chamado forte – “convertei-vos!” –, repercutindo o apelo de Jesus no início da pregação do Evangelho. É um convite incisivo a orientar a vida para Deus e seu reino, o bem supremo da existência humana. Pensando bem, a vida humana inteira neste mundo é marcada por esta busca ansiosa do encontro com Aquele que pode saciar plenamente o coração humano, conforme palavras de Santo Agostinho: “Tu nos fizeste para ti, Senhor, e nosso coração anda inquieto, até que não repousa novamente em ti” (Confissões).
Ao lado desse significado existencial (converter-se para), o chamado à conversão também tem uma dimensão moral (converter-se de) e implica a mudança de atitudes e vícios e práticas erradas, para outras, moralmente corretas e louváveis. A conversão moral nem sempre é fácil e demanda esforço e constância. É bem compreensível que o exercício da virtude requeira motivação mais forte e energias maiores do que a prática do mal. Mas também é certo que a virtude enobrece e traz paz ao coração, enquanto o vício perturba a consciência e avilta o ser humano.
Para favorecer o processo de conversão, a quaresma propõe vários exercícios, como o jejum, a penitência, a oração e o amor ao próximo. As práticas de penitência ajudam a discernir sobre o essencial e indispensável na vida, disciplinam e fortalecem a vontade no combate contra as tendências e inclinações para o mal. Conforme textos da liturgia católica deste período, pela penitência aprendemos a dominar nossos maus desejos, corrigir os vícios, elevar os sentimentos, fortificar-nos na prática do bem. Pela oração assídua e intensa, reconhecemos nossa fragilidade e finitude de criaturas e nos voltamos humildemente para Deus, buscando nele o socorro e o amparo em nosso desalento.
O amor ao próximo é indissociável da busca de Deus, uma vez que não é possível amar a Deus, a quem não se vê, sem amar o próximo, a quem se vê (cf. 1 Jo 4,19-20). Assim, não é de admirar que muitos apelos da quaresma estejam voltados às questões da justiça, da fraternidade e da ajuda aos pobres e necessitados. A Campanha da Fraternidade, promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) todos os anos na quaresma, é um exemplo disso: ela aborda sempre questões da convivência social, na qual há necessidade de conversão para uma fraternidade humana mais verdadeira e efetiva.
Essas e outras práticas quaresmais não são exclusivamente católicas ou cristãs, pois também são recorrentes em outras tradições religiosas, como no judaísmo, no islamismo e nas grandes tradições religiosas orientais, embora com motivações e impostações diversas. A questão de fundo, geralmente, é o reconhecimento da contingência humana, de sua insuficiência e finitude. Não nos bastamos a nós mesmos. A busca de superação de males e vícios revela que o farol a orientar a existência humana são a busca do bem e a prática da virtude, e não o contrário. Não existimos para a prática de maldades nem para nos deixar levar para a degradação da humana dignidade. Embora a perfeição não seja deste mundo, não nos resignamos diante do mal que pode nos envolver e não desistimos da prática do bem, ainda que isso nos custe.
Talvez alguém pergunte se o homem do século 21 ainda tem necessidade de fazer penitência, de se converter e de se exercitar na virtude. Parece-me oportuno deixar aberta essa questão, para que o próprio leitor a responda. No entanto, permito-me fazer algumas perguntas, partindo da realidade em que estamos mergulhados. Será que o convívio social e as relações econômicas e políticas estão uma completa maravilha, sem necessidade de mudanças e de superação de injustiças e maldades, incrustadas até na legislação e na cultura que nos envolve? Será que os gestos de desamor ao próximo, de prepotência e violência – os invisíveis e os destacados todos os dias nas manchetes da imprensa e nas mídias sociais – representam o non plus ultra da condição humana e da sua capacidade de viver com dignidade e respeito?
Assistimos, atônitos, a mais uma guerra na Europa, com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Precisava a humanidade de mais este espetáculo deprimente, depois de tanta gestão diplomática e após dois anos de pandemia, com tanto sofrimento e luto? E quando haverá solução para as outras tantas guerras acontecendo pelo mundo, das quais nem se fala, uma vez que envolvem populações esquecidas, que pouco ou nada contam para a economia e as vaidades do poder? Quanta tristeza e humilhação para o homem! Enfim, ainda se faz necessário responder se o homem do século 21 também precisa de conversão?
Publicado no jornal O ESTADO DE S. PAULO em 12 de março de 2022
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