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Igreja em Cabo Delgado, Moçambique Igreja em Cabo Delgado, Moçambique 

Missão em Moçambique: sonhadores e construtores da paz

Entrevista com o padre brasileiro Edegard Silva Júnior, Missionário Saletino que se encontra em Cabo Delgado, Moçambique: "Não falarei em números e estatísticas. Daqui da missão em Mieze, quero apenas relatar como temos vivido estes últimos tempos aqui na região”

Vatican News

De Moçambique onde se encontra em missão, o padre brasileiro Edegard Silva Júnior, missionário Saletino, responde a algumas perguntas sobre a situação da Guerra na Província de Cabo Delgado. “Não falarei em números e estatísticas. Desde a missão em Mieze, quero apenas relatar como temos vivido estes últimos tempos aqui na região”, afirma o missionário.

A guerra em Cabo Delgado continua?

Sim, ela continua. Costumo afirmar que vivemos aqui numa espécie de “caixa de surpresas”. A cada “capítulo” dessa guerra, somos tomados por um fato inesperado, que modifica nossa agenda e deixa toda a população atordoada. Para a comunidade atacada, a ação terrorista é algo inesperado. Para os terroristas, provavelmente uma ação planejada.

“No dia que, “oficialmente”, se declarar o fim desta guerra, as sequelas do “pós-guerra” irão se tornar um desafio e um processo lento na reconstrução (humana e física) das comunidades. E nesse processo entra nossa presença enquanto Igreja nestas terras. Seria exagero dizer que iremos “recomeçar do zero”, mas a retomada do processo de evangelização nessa região será desafiadora.”

A guerra apresenta novos cenários?

Ao longo deste tempo, vimos que essa guerra foi marcada por ações diferenciadas. Inicialmente, o uso de catanas (facões) para decapitar as pessoas; depois, ataques aos meios de transportes, queima de casas, raptos, até chegar ao uso de armas pesadas e de grosso calibre. Essas ações não são improvisadas. Pelo contrário, são ataques planejados, e, provavelmente, com orientações prévias das táticas e dos meios que deverão ser utilizados.

Não se fala muito da guerra de Cabo Delgado: As pessoas se acostumaram com a guerra?

A expressão “acostumar com a guerra” é muito cruel. Quem é movido por compaixão e humanidade não pode aceitar esta postura de passividade. Essa expressão não pode fazer parte do nosso vocabulário. Entretanto, essa guerra já dura cinco anos, o primeiro ataque ocorreu em outubro de 2017. O fato de ela acontecer no continente africano parece não gerar nenhum interesse por parte de muita gente, nem da grande mídia; por essa razão, corre-se o risco de cair no esquecimento. Isso me faz lembrar o texto da Marina Colasanti, intitulado “Eu sei mas não devia”, que diz:

"A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração".

“Não podemos nos acostumar com a guerra, nem com nenhuma barbárie que a humanidade e a criação possam sofrer! Nós, missionários e missionárias (os daqui desse país e os que vieram de outras partes do mundo), “respiramos” esse clima da guerra diariamente. As pessoas deslocadas estão por toda parte. Queiramos ou não, acompanhamos angustiados esta via crucis que parece não ter fim.”

Tem acontecido novos ataques? 

Na verdade, os ataques nunca deixaram de existir. Aqueles de maior intensidade ou impacto aconteceram num determinado momento e ficaram na memória da grande maioria das pessoas. O dia do ataque, a fuga para o mato, a destruição da aldeia, tudo isso cada pessoa tem gravado na sua história de vida. Muitas dessas comunidades atacadas já não têm nem mais o que destruir. Além disso, algumas aldeias do Norte, que não tinham sido atacadas, foram em seguida tomadas pelos terroristas.

A “novidade” destes últimos dias são os ataques na região Sul da Província, precisamente no distrito de Ancuabe, que teve algumas aldeias atacadas. Isso desencadeou um novo ciclo de fuga. Esses ataques se estenderam por mais algumas aldeias (além de Ancuabe), e a população local foi tomada por um clima de pânico que desestruturou toda a região.

Estas notícias se espalham muito rápido...

 Sim. Quase ninguém tem acesso ao rádio, à televisão ou à rede social. A população, em geral, tem aparelhos de telefone celular, muito simples, todos recarregáveis através de pequenas placas solares. Eles se comunicam de forma veloz através desses aparelhos. É uma espécie de “rede de comunicação”. Cada família tem parentes ou conhecidos por toda parte. Com isso, não se pode controlar as informações verdadeiras e as não verdadeiras, e as “notícias falsas” (fake news) acontecem descontroladamente nesse contexto de guerra.

Ao sair a notícia de um ataque, procuramos diversas fontes (as equipes missionárias, os animadores das comunidades ou alguma organização), pessoas que possam assegurar a veracidade dessas informações. Ataques aconteceram recentemente, mas também muitos boatos e desinformação. Um avisa ao outro numa grande velocidade. O resultado disso é a sensação de que as aldeias estão totalmente abandonadas. O medo se apodera das pessoas.

E a situação do povo?

Não temos deixado com muita frequência a área onde exercemos nossa missão. Milhares de famílias continuam morando em casas de parentes, nos assentamentos ou reassentamentos, vivendo em condições precárias. Nossa presença (dos missionários e missionárias) acontece em ações que estão ao nosso alcance. Temos pequenos projetos pontuais, sobretudo com nossos animadores que estão nessas áreas. As organizações humanitárias estão presentes. Mas é uma realidade desafiadora e muito gigantesca para nossos recursos humanos e financeiros.

Qual análise se faz da guerra?

Achei interessante um artigo do comandante de treino da União Europeia em Moçambique que foi publicado recentemente. Ele fala sobre as iniciativas que têm sido tomadas, mas afirma: “até a situação estar completamente controlada, ainda vai demorar muito tempo”. Há uma ação conjunta entre as Forças de Defesa e Segurança (FDS) de Moçambique e as Forças de Ruanda e a Missão da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral. Passos significativos foram dados. No entanto, não podemos esquecer que os insurgentes (terroristas) têm também suas táticas, com uma formação muito consolidada e, provavelmente, com financiamento.

As famílias estão retornando para suas comunidades?

Nós, Missionários Saletinos, a pedido do próprio Bispo da Diocese de Pemba, Dom Antonio Juliasse, continuamos a ser um “ponto de referência” para as comunidades de Muidumbe. Não tenho condições de falar de cada distrito. Os demais missionários que atuavam nessa região podem falar com mais propriedade da realidade na qual estavam inseridos. Sinto-me mais seguro em falar de Muidumbe porque o povo nos procura, liga para nós, e muitos animadores estão aqui por perto. Temos informação de que, em muitos distritos, começaram a fazer a limpeza da área, com retomada de algumas escolas etc. Isso desencadeou na população um desejo muito grande de retornar. Humanamente, até entendemos a saudade de casa, da comunidade, a história de cada; são muitos fatores. Mas creio que o mais forte é a vontade de voltar para sua terra. Certa vez, uma animadora me disse assim: “entre sofrer em minha terra ou sofrer onde estou, prefiro sofrer por lá”. Não é uma decisão comum a todos os deslocados. Em alguns casos, o homem vai primeiro para ver como está a situação, deixando por aqui a mulher e os filhos. Por conta das constantes notícias de novos ataques ou mesmo da presença dos terroristas, muitas famílias preferem dar um tempo para o retorno. Alguns falam em esperar até o mês de setembro.  Para se ter noção, o distrito de Muidumbe é formado por 26 aldeias. Destas, 13 já estão com pessoas que retornaram às suas casas (não a totalidade da população que compõe a aldeia). Estamos organizando uma ação junto à diocese de Pemba para enviar material para os animadores realizarem a Celebração da Palavra.

O que é ser missionário(a) neste contexto de guerra?

O missionário(a) é gente! É pessoa humana! Portadores de sentimentos, e cada um/a traz consigo posturas diferenciadas. Não somos super-homens, nem super-mulheres. Tampouco podemos negar que sentimos medo, que a estrutura física das casas onde vivemos, muitas vezes, nos preocupa, que temos que tratar de uma possível fuga. São situações que mexem conosco. O processo de discernimento diante da decisão “sai/fica” é muito difícil. No entanto, somos lideranças, pastores e pastoras das comunidades a nós confiadas. O povo espera uma palavra de confiança e de esperança. Temos uma responsabilidade e um compromisso neste momento. Saber o que falar. Ser prudente nas informações que são repassadas, isso é de suma importância. Lembrar que temos pessoas que nos acompanham em outras partes do mundo e devemos ser realistas, sem ser sensacionalistas.

O testemunho e a presença amorosa no meio do povo neste momento são muito importantes. Sempre se pediu que não nos cansemos de dobrar os joelhos e clamar pela Paz. Esta vigilância e constância de orar pela paz, não apenas de Moçambique, é um gesto significativo. Como seguidores de Jesus, deixemos que Ele entre onde quer que estejamos e nos diga: “A paz esteja convosco” (Jo 20), venha, junte-se a nós, sejamos sonhadores, fazedores e construtores da paz!

* Padre Edegard Silva Júnior, MS, missionário Saletino, brasileiro, em missão na Paróquia Nossa Senhora do Carmo, Mieze, Diocese de Pemba.

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04 julho 2022, 14:39