Bento XVI marcou a história da Igreja. Obrigado por estar conosco!
Mons. André Sampaio, Vigário Episcopal para as Irmandades e Prior da Ordem do Santo Sepulcro de Jerusalém – Rio de Janeiro
“Deus está morto! E nós o matamos!” – Catedral de Turim, 2 de maio de 2010. Somente um Papa da estatura espiritual e cultural de Bento XVI poderia permanecer de joelhos por cinco minutos diante do Sudário, o “ícone do Sábado Santo”, mal movendo os lábios em oração silenciosa, e depois citar as palavras de Nietzsche em A Gaia Ciência.
Agora que Joseph Ratzinger alcançou a meta e o cumprimento de toda a sua vida – as palavras do Salmo 27 colocadas como epígrafe ao seu Jesus de Nazaré: “A vossa face, Senhor, eu procuro. Não me escondais a vossa face” –, temos de voltar ao início, Marktl am Inn, aldeia da Alta Baviera onde nasceu a 16 de abril de 1927. O pai era gendarme, filho de camponeses; a mãe trabalhava como doméstica. Era um sábado santo. E ter vindo ao mundo naquele dia significou para Ratzinger “uma vocação, um programa de vida”. O grande teólogo que se tornou pontífice mediu-se face ao “abismo do silêncio” daquela “terra de ninguém” entre a crucificação na sexta-feira e a ressurreição no domingo, o tempo do “esconder-se de Deus”, o drama do nosso tempo, “o mundo que jaz em pedaços”.
Há aqueles que já nascem póstumos, escreveu Nietzsche. Ratzinger também estava “ultrapassado”: “se um Papa recebesse apenas aplausos, teria de se perguntar se estava a fazer alguma coisa errada”, e não teve medo de remar contra a maré: até a “renúncia” do pontificado, a mais inédita das reformas. A última “renúncia” de um Papa datava de 4 de julho de 1415, feita por Gregório XII, e, graças a Dante, todos sabem da “grande recusa” de Celestino V em 13 de dezembro de 1294. Mas o gesto de Bento XVI não teve precedente real em dois mil anos, porque foi feito “em total liberdade”, sem influências externas. Com todo o respeito aos teóricos da conspiração que falam sobre estratagemas, ele também repetiu em seu “O Último Testamento”, série de entrevistas com Peter Seewald: “Tais especulações são todas absurdas. Ninguém tentou me chantagear. Eu nem teria permitido isso”. O Papa Wojtyla agora estava morrendo e, em 25 de março de 2005, menos de um mês antes da eleição de 19 de abril, o cardeal Ratzinger havia denunciado a “sujeira na Igreja” nos textos escritos para a Via Crucis no Coliseu.
Na missa de abertura de seu pontificado, no dia 24 de abril, resumiu na Praça de São Pedro aos fiéis maravilhados: “Rezem por mim, para que eu não fuja, por medo, diante dos lobos”. Bento XVI não fugiu, pelo contrário. O comentário imediato do padre Lombardi, em 11 de fevereiro de 2013, continua sendo o mais lúcido: “É um grande ato de governo da Igreja”. Naquele dia, às 11h41, diante dos atônitos cardeais, ressoam na Sala do Consistório as palavras inéditas “declaro me ministerio renuntiare”, a renúncia ao ministério petrino a partir das 20h do dia 28 de fevereiro. Bento XVI explica que “para conduzir a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, são necessárias também as forças do corpo e da alma” que faltaram “nos últimos meses”. Nada é deixado ao acaso, o Papa lê a Declaratio na véspera das Cinzas, início do período penitencial. Durante a audiência quaresmal, coloca as cinzas sobre as cabeças dos cardeais enfileirados e fala das tentações diabólicas que se podem resumir na pretensão de “usar Deus”, “colocar-se no seu lugar” ou “usá-lo para os seus próprios interesses”, das “divisões eclesiais” que “desfiguram” o rosto da Igreja.
Sim , depois de ter ensinado nas faculdades teológicas mais prestigiosas da Alemanha, em 25 de março de 1977, São Paulo VI o nomeou arcebispo de Munique e Freising. Ratzinger recebeu a ordenação no dia 28 de maio seguinte e depois de apenas um mês, em 27 de junho, Montini impôs-lhe o barrete vermelho. São João Paulo II o quis em Roma e, em 25 de novembro de 1981, nomeou-o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. O futuro Papa foi durante quase um quarto de século um dos principais colaboradores de Wojtyla. Em 30 de novembro de 2002, ele também se tornou cardeal decano e, nessa qualidade, liderou a Sé Vacante de 2005 após a morte do Papa polonês, a quem sucedeu assumindo o governo da Igreja Católica.
Um legado muito pesado, aquele recebido de seu “predecessor amado”, que para Ratzinger chegou quando acabava de completar 78 anos. Ele foi forçado a carregar muitas cruzes em seu pontificado: desde o escândalo da pedofilia do clero, até os diálogos muito difícies com os lefebvrianos, frustrados também pela negação do Holocausto de alguns deles, pelos desentendimentos com o mundo islâmico pela famosa citação por Manuel II Paleólogo sobre Maomé na palestra de Regensburg, até o escândalo Vatileaks 1 com a infidelidade de seu mordomo, Paolo Gabriele, que passou documentos confidenciais do Papa alemão à imprensa. Nada menos que 24 viagens ao exterior e 29 visitas pastorais à Itália. No entanto, o pontificado de Bento XVI não foi apenas crivado de espinhos, muitas vezes causados pela incapacidade de seus colaboradores mais próximos, mas também por um magistério muito denso condensado em oito anos. Da trilogia sobre Jesus de Nazaré, ao livro de entrevistas “Luz do Mundo”, o terceiro de quatro escritos com seu biógrafo Peter Seewald, às três encíclicas, Deus caritas est, Spe salvi e Caritas in veritate, sem contar a escrita em conjunto com Francisco, Lumen fidei.
Em 28 de abril de 2009, na cidade de Áquila devastada pelo terremoto, esperava-se apenas uma homenagem, mas Bento XVI semeou o pânico ao cruzar a porta sagrada da Basílica em ruínas de Collemaggio para colocar seu pálio sobre a sepultura de Celestino V. Depois da viagem a Cuba, de onde voltou exausto no final de março de 2012, já havia se decidido. Nesse ínterim, estourou o escândalo dos Vatileaks, a história do mordomo “corvo” Paolo Gabriele que roubou documentos confidenciais de seu escritório, e Ratzinger esperou até que tudo acabasse, para que o julgamento fosse concluído. Em 2015, o padre jesuíta Silvano Fausti, grande estudioso da Bíblia, amigo e confessor do cardeal Carlo Maria Martini, contou antes de morrer que o então arcebispo de Milão, no Conclave de 2005, fez convergir seus votos para Ratzinger, impedindo uma manobra que visava a derrubar tanto Martini como Ratzinger – os dois principais candidatos – em benefício de “um candidato da Cúria muito insidioso, mas que não conseguiu ser eleito”. Era uma questão de limpeza: “Martini tinha dito a Ratzinger: aceite-o, você que está na Cúria há trinta anos e é inteligente e honesto. Se conseguir reformar a Cúria, muito bem; se não, você vai embora”. A renúncia, após quase oito anos de pontificado, reconfigura a Cúria e prepara o terreno para o sucessor.
Como Papa Emérito, Bento XVI decidiu viver no Vaticano, no Mosteiro Mater Ecclesiae, porque “aquele que assume o ministério petrino não têm mais privacidade. Pertence sempre e totalmente a todos”. Ratzinger também permanece na história como aquele que, como cardeal, denunciou “quanta sujeira há na Igreja, e precisamente também entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer totalmente a Ele” e que ainda antes havia sublinhado que “os motivos para não estar mais na Igreja hoje seriam muitos e diferentes uns dos outros”, mas que, no final, “apesar de todas as suas fragilidades humanas, é a Igreja que nos dá Jesus Cristo e só graças a ela podemos recebê-lo como uma realidade viva e poderosa que me desafia e enriquece aqui e agora”.
Bento XVI também ficará na história pela convivência inédita no Vaticano com seu sucessor. Uma escolha que, se no início suscitou muitas perplexidades, viu os dois papas também participarem juntos de algumas celebrações públicas até Ratzinger ter forças físicas. Bento XVI, despojado de seu “guarda-roupa papal”, retribuiu o afeto sincero que Francisco sempre lhe demonstrou. Não se sabe quem Ratzinger imaginou como sucessor. No entanto, Bento XVI prometeu “reverência e obediência incondicional” a qualquer um que emergisse como Papa da Capela Sistina no último dia de seu pontificado.
Com Bergoglio, além da diversidade de personagens, modos de governo e estilos de vida, a centelha foi acesa desde o primeiro abraço em Castel Gandolfo, dez dias após o Habemus Papam. Que não havia amizade de fachada entre os dois é evidenciado pelos muitos encontros privados e pelas palavras inequívocas de ambos. “Sou grato – Ratzinger escreveu ao teólogo suíço Hans Küng – por poder estar ligado por uma grande identidade de pontos de vista e por uma amizade sincera com o Papa Francisco. Hoje vejo como minha única e última tarefa sustentar o seu pontificado na oração”. “Bento – disse Bergoglio – agora vive no Vaticano, e alguns me dizem: mas como isso pode ser feito? Dois papas no Vaticano! Mas ele não o sobrecarrega? Mas ele não faz a revolução contra você? Todas essas coisas que eles dizem, certo? Achei uma frase para dizer isso: é como ter um avô em casa, mas um avô sábio”.
Joseph Ratzinger, grande teólogo e cardeal, então Bispo de Roma com o nome de Bento XVI por sete anos, dez meses e nove dias (de 19 de abril de 2005 a 28 de fevereiro de 2013) e finalmente Papa Emérito, chegou à casa do Pai, após o período passado “no monte” orando pela Igreja (assim ele havia anunciado seu ministério inédito, após sua “renúncia”). Ele será lembrado (talvez acima de tudo) como aquele que fez o gesto revolucionário (e impensável até um minuto antes do sensacional anúncio em latim de 11 de fevereiro de 2013) de renúncia.
Obrigado, Papa Bento XVI, pelo que foi e continuará sendo do céu. Obrigado pelos seus maravilhosos colóquios quando estive na Pontifícia Academia Eclesiástica, escola diplomática da Santa Sé, onde pude beber das fontes do seu conhecimento e do seu amor à Eclesiologia e à Cristologia. Pelos seus magníficos escritos que nos deixam um legado de grande riqueza. Obrigado por me enviar em serviço para a Nunciatura Apostólica da Lituânia, Letônia e Estônia, e depois para a Colômbia. Obrigado pelas magníficas cerimônias e liturgias celebradas com zelo e amor. Aprendi o significado do versículo no Salmo 69, 9: “o zelo da vossa casa me devorou”. E assim aprendi a amar e a zelar pela liturgia. São tantos obrigados, principalmente por ter contribuído para me fazer o sacerdote que sou hoje.
Requiem aeternam dona ei, Domine, et lux perpetua luceat ei. Requiescat in pace. Amen.
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