O arcebispo-mor da Igreja Greco-Católica, Sviatoslav Shevchuk O arcebispo-mor da Igreja Greco-Católica, Sviatoslav Shevchuk 

Shevchuk: uma guerra absurda e sacrílega, mas agora não nos sentimos abandonados

O chefe da Igreja Greco-Católica Ucraniana em videoconferência com um grupo de jornalistas, poucos dias antes do primeiro aniversário do conflito: “Uma guerra cega, absurda, sacrílega. Roubou a infância às crianças”. A esperança de que “o mundo não feche os olhos ao sofrimento do nosso povo e que a Ucrânia saia dos jornais, como em 2014 com o Donbass. A indiferença mata!

Salvatore Cernuzio – Cidade do Vaticano

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Fala de uma "tragédia" para a Ucrânia e para o mundo, de uma "população traumatizada" por estes doze meses de uma guerra "cega, absurda, sacrílega" e da "impotência" de alcançar a paz. Depois lança um apelo aos políticos, aos meios de comunicação, a quem tem voz e responsabilidade em nível internacional: “Não nos deixem sozinhos… A mentira e a indiferença matam”.

O arcebispo-mor de Kiev-Halyč, Sviatoslav Shevchuk, conversa via Zoom com um pequeno grupo de jornalistas, poucos dias antes do primeiro aniversário da invasão russa em 24 de fevereiro de 2022.

O presidente dos EUA Joe Biden (C-L) caminha com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky (C-R) na Catedral de Cúpula Dourada de São Miguel durante uma visita não anunciada, em Kiev, em 20 de fevereiro de 2023. Foto de Evan Vucci / POOL / AFP)
O presidente dos EUA Joe Biden (C-L) caminha com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky (C-R) na Catedral de Cúpula Dourada de São Miguel durante uma visita não anunciada, em Kiev, em 20 de fevereiro de 2023. Foto de Evan Vucci / POOL / AFP)

Visita de líderes a Kyiv é uma consolação

 

O chefe da Igreja greco-católica ucraniana fala do arcebispado, sua residência em Kiev, de cuja janela, com vista para o rio Dnipro, viu nos meses passados a explosão de "fogo" no céu. Na capital ucraniana, enquanto decorria a entrevista, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, chegava de surpresa para uma visita. Shevchuk sorri: “Há um ano, neste momento – diz ele – todos nos abandonavam. Depois de 24 de fevereiro, restavam apenas dois representantes diplomáticos: o núncio apostólico, Visvaldas Kulbokas, e o embaixador polonês. Muitos se mudaram para Lviv, oeste da Ucrânia ou Polônia. Depois de um ano todos voltaram, vêm nos visitar aqui. A nível político, militar, os frutos dessas visitas serão revelados pelos especialistas.

Mas falando em nome das pessoas simples, isso nos faz sentir que não fomos esquecidos, não fomos abandonados, que podemos contar com a solidariedade da Europa, da Itália e do mundo”. “É um grande consolo - diz o arcebispo - o exército russo nos condenou à morte. A solidariedade nos dá esperança de que esta sentença não será executada, que seremos capazes de sobreviver, de nos defender e construir um país livre e democrático”.

Uma vista aérea mostra edifícios residenciais danificados durante o conflito Ucrânia-Rússia na cidade portuária de Mariupol, no sul da Ucrânia, em 3 de abril de 2022. Foto tirada em 3 de abril de 2022. Foto tirada com um drone. REUTERS/Pavel Klimov
Uma vista aérea mostra edifícios residenciais danificados durante o conflito Ucrânia-Rússia na cidade portuária de Mariupol, no sul da Ucrânia, em 3 de abril de 2022. Foto tirada em 3 de abril de 2022. Foto tirada com um drone. REUTERS/Pavel Klimov

Impotente diante de uma guerra sacrílega

 

“Esperança” é uma palavra que Shevchuk costuma repetir durante a entrevista. Junto a ela, também "gratidão". Gratidão “ao Senhor porque conseguimos sobreviver e servir o nosso povo fazendo o que podíamos”; gratidão "pela imensa solidariedade universal".

A gratidão, porém, vem acompanhada de uma "sensação de impotência": em impedir a guerra e agora, depois de um ano, em detê-la. "No final de 2021, já se previam os fantasmas da guerra que se aproximava… De minha parte, tentei sensibilizar muitas instituições para esse perigo, mas infelizmente nem os mecanismos do direito internacional nem os instrumentos diplomáticos foram capazes de impedir a tragédia. O mundo inteiro se sente impotente diante de um cega, absurda, sacrílega guerra".

 

O que mais lamento, confidencia Shevchuk, é que não conseguimos salvar vidas humanas: “Lembro-me de Mariupol: quantas vezes tentamos levar comida e água, mas tanta gente morreu ali de fome e sede”. E muitas pessoas morreram torturadas e assassinadas ou atingidas por mísseis. “Talvez este ano pela primeira vez – disse o arcebispo-mor – vi como as armas modernas são capazes de destruir tudo: vidas humanas, cidades, ecologia”.

Uso das armas

 

O tema das armas agora é central. “Fala-se de um uso proporcional”, observa Sviatoslav Shevchuk, em resposta a uma pergunta sobre o recente apelo da UE para fornecer armas à Ucrânia. “Não me sinto à vontade para falar sobre isso”, afirma o arcebispo, “mas no momento a capacidade da Ucrânia de se defender não é proporcional à capacidade da Rússia de nos atacar. Somos um país muito menor. É um milagre estarmos vivos."

O Conselho Pan-Ucraniano de Igrejas, em recente visita a Roma, dirigiu uma carta aberta à comunidade internacional pedindo o envio de instrumentos antimísseis. “Por que as Igrejas pedem o fornecimento de certos tipos de armas? Porque se derrubarmos um míssil ninguém morre, mas se atinge o alvo causa muitas mortes. No momento, o Conselho Pan-Ucraniano considera moralmente aceitável enviar armas à Ucrânia para aumentar a capacidade de defesa”, diz Shevchuk.

Vista panorâmica do complexo ortodoxo Pechersk Lavra, em Kiev, fiel a Moscou. REUTERS/Gleb Garanich
Vista panorâmica do complexo ortodoxo Pechersk Lavra, em Kiev, fiel a Moscou. REUTERS/Gleb Garanich

Diálogo com os ortodoxos

 

A questão é espinhosa, como a do diálogo com as Igrejas ortodoxas ucranianas ligadas a Moscou. Em dezembro, o presidente Volodymyr Zelensky, após investigações e buscas realizadas pelos serviços de segurança interna, assinou um decreto para impor restrições à atividade da Igreja Ortodoxa em comunhão com o Patriarcado de Moscou.

“Esta Igreja vive agora um momento de confronto aberto com a sociedade ucraniana”, comenta Shevchuk. “Antes da guerra as pessoas clamavam unidade, agora há uma forte demanda para banir esta Igreja. Quase um ódio... Não é cristão, mas é o sentimento das pessoas feridas”.

O problema, adverte o prelado, é que “quando uma Igreja se choca com a opinião pública, mais cedo ou mais tarde aparecerá um político que explorará esse sentimento e o transformará em lei”. Enquanto isso, no Parlamento ucraniano, relata Shevchuk, está sendo estudado um projeto legislativo para o qual “o Estado será obrigado a fazer tudo para que nenhuma Igreja ou sociedade religiosa seja explorada por um país externo para seus próprios fins políticos”.

O diálogo com os jornalistas pelo zoom
O diálogo com os jornalistas pelo zoom

Todos feridos

 

sempre com o olhar voltado para a população, o líder greco-católico afirma: “Somos um povo traumatizado. Graças a Deus, com a ajuda internacional, conseguimos evitar uma tragédia humanitária." A Igreja, por seu lado, numa fase inicial concentrou-se na ajuda material: “Onde foi possível nos territórios ocupados, todos foram acolhidos e servidos. Estamos falando de 15 milhões de pessoas”. Agora o Sínodo Greco-Católico aprovou um plano pastoral sobre o tema "curar as feridas". “Vemos que 80% da população precisa de reabilitação. Todos fomos feridos, eu também… Lembro-me de uma visita a Zaporizhzhia em novembro, eu estava fazendo uma homilia em uma igreja de madeira e 7 mísseis russos passaram sobre nossas cabeças. Olhava nos olhos das pessoas que tremiam e se ouviam as explosões. Eu pensei: 'Senhor, quando eu vacilar, deixarei de pregar e essas pessoas estão morrendo de medo'. Conseguimos sobreviver a esses momentos, mas deixam cicatrizes”.

Savelli, 10 anos, no túmulo de seu pai Ihor, de 47, no cemitério de Irpin, região de Kiev. REUTERS/Zohra Bensemra
Savelli, 10 anos, no túmulo de seu pai Ihor, de 47, no cemitério de Irpin, região de Kiev. REUTERS/Zohra Bensemra

Infância roubada

 

Os primeiros a sofrer são as crianças. Aqueles cujo sorriso a guerra "roubou", como disse recentemente o Papa, "perdem a infância", diz Shevchuk, que conta a história de uma família de Kramators'k, atingida por um ataque de míssil na estação ferroviária. “A filha mais velha foi morta, a mãe perdeu as pernas. O menino de 11 anos foi forçado a cuidar de sua mãe ferida e organizar o funeral de sua irmã. Conversando com ele, vi que em um instante ele perdeu a infância. Ele falava como um homem maduro com os voluntários e médicos, tinha uma atitude de proteção em relação a sua mãe…”. “Nós realmente tentamos fazer uma pastoral específica para as crianças e os mais vulneráveis -  acrescenta -, mesmo que ainda não saibamos o número exato de pessoas que precisam de acompanhamento”.

Sacerdote abençoa sepulturas de civis não-identificados em cemitério de Bucha, região de Kiev. (Sergei SUPINSKY/AFP)
Sacerdote abençoa sepulturas de civis não-identificados em cemitério de Bucha, região de Kiev. (Sergei SUPINSKY/AFP)

A árdua missão dos bispos e sacerdotes

 

Não se sabe quando “esse absurdo” terminará na Ucrânia. “A dor das pessoas aumenta a cada dia”, desabafa Shevchuk, dizendo-se “orgulhoso” dos tantos bispos, sacerdotes, freiras, monges que “puderam ver Cristo nas pessoas feridas pela guerra. Pessoas famintas, sem nada, que confiavam plenamente em nós.”

"Fico comovido", diz ele, com voz embargada. Esses mesmos bispos e sacerdotes estão agora "desmoralizados": "Todos os dias eles têm que celebrar os funerais de vítimas, soldados e civis. 'Funerais sem fim... não sabemos mais o que dizer', dizia-me um bispo".

“Hoje – conclui Shevchuk – fala-se de tantas propostas de paz. Nosso governo tem sua própria fórmula de paz: o primeiro ponto é que a Ucrânia liberte todos os territórios ocupados. Outras propostas falam de um pacto, de uma negociação, de ceder algum território, etc. Mas quando ouço essas discussões, estremeço. Para a Igreja, não se trata de territórios, mas das pessoas que ali vivem. Temos que libertar o povo, nossos fiéis!”.

Os "heróicos" redentoristas

 

Em todas as regiões ocupadas - "17% do país" - não resta um só sacerdote: "Nem greco-católico, nem latino... Alguns foram expulsos, outros presos", diz o arcebispo, recordando os dois "heróicos" sacerdotes redentoristas, Ivan Levytskyi e padre Bohdan Heleta, presos em 16 de novembro em Berdyansk e "submertidos a torturas diárias por cem dias". "Nenhuma negociação, nenhuma diplomacia foi capaz de aliviar as dores desses sacerdotes".

Na estação de Lviv, mãe abraça sua filha vinda de Kharkiv, atacada pelos russos. REUTERS/Kal Pfaffenbach
Na estação de Lviv, mãe abraça sua filha vinda de Kharkiv, atacada pelos russos. REUTERS/Kal Pfaffenbach

Não fechar os olhos

 

“Rezemos – é o apelo final do chefe da Igreja Greco-Católica – para que o Senhor ouça o sangue que clama da terra ucraniana ao céu. Pedimos que o mundo não feche os olhos para as feridas e sofrimentos das pessoas, que não se canse dessa questão. Muitas vezes a dor ucraniana desaparece dos jornais, não é mais notícia, como em 2014 com a invasão no Donbass. A verdade, como diz também o Papa, sempre é vítima da guerra. Uma guerra de desinformação. A mentira e a indiferença matam, matam muitos".

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21 fevereiro 2023, 08:43