Quando o silêncio passa a ter voz
Rui Saraiva – Portugal
Quando o silêncio passa a ter voz, há um sobressalto que nos encontra. É como se, na tranquila escuridão da noite, um grito iluminasse o que não se via, não se conseguia ver ou talvez não se quisesse ver.
Em voz alta para podermos ouvir
Em Portugal, o silêncio das vítimas de abusos sexuais passou a ter voz a partir do passado dia 13 de fevereiro. Com a publicação do relatório realizado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, o hediondo sofrimento das vítimas passou a poder falar.
Após apenas dez meses de trabalho, a Comissão Independente recolheu testemunhos entre os meses de janeiro e outubro de 2022 e apresenta um relatório com 485 páginas, que validou o relato de 512 testemunhos de abusos sexuais, num total de 564 que foram recebidos.
Este estudo aponta para uma rede de vítimas num número mínimo de 4815 e refere-se a casos ocorridos entre 1950 e 2022.
“Dar voz ao silêncio” foi o tema, mas também a motivação de uma Comissão coordenada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht e que integrou o psiquiatra Daniel Sampaio, o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, a socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida, a assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos.
Precisamente, para “dar voz ao silêncio” foi opção da Comissão Independente ler alguns dos relatos durante a apresentação pública na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa. O sofrimento das vítimas passou a ser conhecido em voz alta na leitura dos seus testemunhos. Do silêncio fez-se palavra para todos podermos ouvir.
Relatos chocantes
Os relatos são chocantes. Ficamos bloqueados no silêncio da vergonha. “Não é possível quantificar o número de crimes praticados, mas sabemos que a maior parte das crianças foi abusada mais do que uma vez”, sublinhou Pedro Strecht na apresentação.
Os números revelam que as vítimas são, sobretudo, do sexo masculino, mas com um número significativo também do sexo feminino. O relatório assinala que, em média, os abusos acontecerem quando as vítimas tinham 11 anos e destaca os distritos de Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria.
Segundo o estudo, os abusos em Portugal tiveram lugar em “seminários, colégios internos, instituições de acolhimento, confessionários, sacristias e casas dos padres”.
Locais que deveriam ser de partilha comunitária da fé e da esperança, alimentados pela Palavra de Deus, são identificados neste relatório como espaços de abusos sexuais. E onde floresce uma cultura clerical tudo se torna mais fácil.
O clericalismo beneficia os abusos
Recordemos as palavras do Papa Francisco na sua Carta ao Povo de Deus, em agosto de 2018, a propósito da divulgação de um relatório de abusos sexuais na Pensilvânia nos Estados Unidos da América.
No seu documento, Francisco escreve que o clericalismo “gera uma rutura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo”, diz o Papa.
“É imperativo que nós, como Igreja, possamos reconhecer e condenar, com dor e vergonha, as atrocidades cometidas por pessoas consagradas, clérigos, e inclusive por todos aqueles que tinham a missão de assistir e cuidar dos mais vulneráveis”, escreve o Santo Padre.
Acordar e reconhecer
Precisamente, o Papa Francisco, em entrevista à agência Associated Press, em janeiro deste ano, respondendo a perguntas sobre o tema dos abusos sexuais na Igreja por parte de membros do clero, sintetizou com dois verbos a sua própria experiência pessoal no âmbito deste problema. Falou em acordar e reconhecer.
O Santo Padre assinalou nessa entrevista a dificuldade que teve em aceitar a realidade no Chile aquando da sua visita apostólica em janeiro de 2018.
“Eu não conseguia acreditar”, declarou o Papa. “Tive de acordar e reconhecer que havia encobrimento”, sublinhou. “Foi quando vi a corrupção de muitos bispos envolvidos nisso”, frisou Francisco.
Recordemos que foi na sequência da viagem ao Chile que o Papa Francisco decidiu mandar investigar em profundidade a situação dos abusos sexuais por parte do clero naquele país.
Foi nesse espírito de investigação e em atitude clarificadora que os bispos portugueses decidiram, em novembro de 2021, criar a Comissão de estudo que agora apresentou as suas conclusões.
No dia da apresentação do relatório, D. José Ornelas, bispo de Leiria-Fátima e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, em declarações aos jornalistas, salientou ser esta “uma trágica e dura realidade”.
Reafirmou a “tolerância zero para com os casos de abusos” e frisou que os dados agora revelados são “uma ferida aberta que nos dói e nos envergonha”. “Pedimos perdão a todas as vítimas”, declarou.
O episcopado português tem agendada para dia 3 de março uma assembleia plenária extraordinária para analisar o relatório agora apresentado.
Laudetur Iesus Christus
Obrigado por ter lido este artigo. Se quiser se manter atualizado, assine a nossa newsletter clicando aqui e se inscreva no nosso canal do WhatsApp acessando aqui