Frei Paolo: o coração arde pela missão, os pés se põem a caminho
Rosa Martins - Vatican News
Em mensagem enviada ao 5º Congresso Missionário que se realiza em Manaus, no Amazonas, o Papa Francisco enfatizou o desejo de que “as Igrejas do Brasil, com corações ardentes pela paixão de evangelizar, ponham os pés a caminho proclamando a todos o Cristo Ressuscitado”.
Neste contexto, o franciscano capuchinho, frei Paolo Braghini, concedeu entrevista ao Vatican News, na qual fala sobre a sua vocação, as alegrias e os desafios da missão. Nascido no norte da Itália, Frei Paolo aos 24 anos foi enviado como missionário para o Alto Solimões na Amazônia.
Frei Paolo como surgiu a sua vocação?
R. Tenho lembranças belíssimas da minha juventude, principalmente os últimos anos do Ensino Médio, período que estava caminhando rumo ao matrimônio, uma paixão intensa, muito bonita (risos) e varias paixões próprias dessa idade: motos, vôlei, esporte e aos poucos Deus foi tocando meu coração até que esse chamado se tornou mais forte do que tudo e não poder mais resistir. Senti o chamado durante uma peregrinação quando os pais da minha namorada nos ofereceram uma viagem a Lourdes porque no ano seguinte, terminando o Ensino Médio, nos casaríamos. Os doentes, aquele lugar de fé, tão extraordinário, tocaram o meu coração.
O momento exato do chamado, como foi?
R. No último dia senti um chamado fortíssimo que saiu do coração da noite. Fui sozinho à gruta, e quando me ajoelhei, olhando a imagem de Nossa Senhora, - talvez tenha sido ali a vez que mais chorei na minha vida -, senti no íntimo a voz de Jesus: “deixa tudo e segue-me”. Eu chorava e dizia o nome de Michela. Chorava porque sentia que naquele momento estava cedendo ao chamado de Deus. E Deus me levou por caminhos incríveis. Um dia, sem nenhum planejamento anterior, senti o desejo de ir para Assis. Nunca tinha visto um frade capuchinho antes. Encontrei um frei que há mais de 40 anos doava sua vida na Amazonia. Ao vê-lo, senti uma alegria tão profunda. Senti que Deus estava me chamando. Eu via radicalidade na vida, nas sandálias daquele homem. E senti claríssimo que a minha vocação era dar a vida totalmente pelos pobres como frade menor capuchinho.
A formação para a vida sacerdotal
R. Formei-me com os freis da Provincia de Assis, na Itália, os quais atuam como missionários no Alto Solimões, Amazonas, há muitos anos. Sempre dizia que queria ir para a missão. Assim que fui ordenado sacerdote, ainda jovem, aos 30 anos, me enviaram para Belém de Solimões e agradeço a Deus todos os dias.
Frei Paolo deixou seu país de origem. O que levou para o Brasil e que recebeu?
R. Eu levei o meu coração, a minha vida, todo o meu ser. Doei a minha vida, às vezes ao ponto de perder a saúde, por exagero de doação. Como italiano não tenho um físico predisposto à intensidade da floresta amazônica. Os indígenas são fortíssimos e sendo eu europeu não tenho toda essa forca, essa energia que eles têm como dom de Deus para viver a potência deste clima, desta floresta. Com certeza, recebi muito mais do que levei. Eu, como também os freis, percebemos que mais recebemos do que damos, como já afirmou Jesus que quem deixa tudo receberá cem vezes mais.
Pode citar alguns exemplos?
R. Primeiro recebemos uma família. Eles cuidam da gente, é algo de extraordinário. Outra coisa interessantíssima: nós viemos com o desejo de ensinar e mais que isso, de testemunhar o Evangelho e o jeito franciscano de vivê-lo, mas são eles que nos estão ajudando a sermos mais franciscanos. Acho que eles têm o DNA de São Francisco no coração. É uma ajuda diária reciproca. Evangelizamos e somos evangelizados. Estar aqui é uma graça de Deus. É muito difícil expressar isso em palavras. Nós não trabalhamos com eles, nós convivemos com eles.
Sua atuação é numa aldeia, certo?
R. Moramos numa aldeia que chamamos Alto Solimões, uma reserva indígena demarcada, denominada Eware (evare). Para os Ticuna, Eware é um lugar da mitologia da Criação onde o povo e todas as etnias foram criadas, um lugar sagrado.
A paróquia de Alto Solimões foi uma iniciativa do bispo dom Alberto Márcio, ao retornar do Concilio Vaticano II, por compreender que os indígenas precisavam de um cuidado diferenciado. É um modelo diferente das outras paróquias?
R. Sim. Dom Alberto entendeu que os indígenas não podiam ser atendidos por modelos de paróquias e pastorais da cidade. Criou, então, uma paroquia na aldeia, a única neste formato, que está fora da cidade, do município, justamente para um atendimento diferenciado.
Estes povos são de quais etnias e como se dá o trabalho pastoral?
R. Cerca de 95% são da etnia Ticuna que falam a língua mãe. Entre as 72 aldeias que visitamos por via fluvial, de canoa, - por não existirem estradas -, temos algumas poucas aldeias que têm etnias diferentes: Cocama, Cambeba e Canamari. Tentamos acompanhar de forma personalizada cada uma com sua cultura e língua. A grande força da nossa paróquia são os indígenas. Temos um conselho pastoral com mais de 40 membros entre mulheres, homens, idosos, cada um colaborando e assumindo a caminhada. Hoje temos uma Igreja viva, com rosto amazônico, comunidades vivas, catequese com milhares de crianças em todas as aldeias, na língua deles e a partir da cultura deles. Sempre nos sentimos João Batista: eles devem crescer e nós diminuirmos.
Frei, qual a metodologia que usaram e usam para terem este resultado tão positivo no processo missionário?
R. Levamos três anos para conhecer as 72 comunidades. Claramente entendemos que se quiséssemos assumir a pastoral sozinhos seria impossível, morreríamos. Entendemos a metodologia de Jesus: não nós, mas como Jesus deveríamos dar a responsabilidade, o protagonismo missionário a eles. São mais de 70 missionários que todos os meses visitam as comunidades, utilizando a língua deles, e os seus meios. E as comunidades estão crescendo. É bonito ver a alegria e doação destes idosos e jovens missionários Ticuna.
Como é encarnar-se, ser missionário numa realidade como Alto Solimões?
R. A vocação missionária inclui buscar mergulhar na cultura deles, sabendo que Deus já semeou o bem nestas culturas e nós devemos aprender com eles. Não é fácil, e preciso renunciar a si mesmo, ao seu jeito, modo de pensar, esquemas, e este talvez seja o processo mais difícil porque, queira ou não, carregamos uma forma de ser Igreja que e muito ocidental. Uma das dificuldades que estamos vendo em uma Igreja nova que está surgindo, é quando, às vezes, vamos à cidade, não somos aceitos por causa da diversidade, como se o modelo certo fosse o da Igreja romana, da cidade. Uma Igreja que tem um roso mais indígena é estranha. O Sínodo para a Amazônia nos deu um alivio, sentimos a certa altura que não estávamos errados e o Papa sempre nos anima a seguir adiante porque é este o caminho. Mas é um processo lento e difícil.
Que atividades são realizadas com os jovens?
R. Gostaria de evidenciar que na sociedade ocidental e até na Igreja divide-se muito a catequese das crianças, adolescentes, adultos. Entre os indígenas é difícil separar porque é um povo que vive a fraternidade comunitária em tudo. Quando se faz a catequese para as crianças as mães participam juntas. Nos encontros de jovens, pais e crianças participam. As atividades que fazemos com os jovens são atividades da comunidade. Nas visitas missionárias, as crianças acompanham, pois os jovens missionários aos 15 anos já são pais.
Quais são os maiores desafios encontrados no trabalho com a juventude?
R. Uma das dificuldades e desafios dos indígenas são a presença de alcoolismo, drogas, violências, que, infelizmente, aumentam nessa região de tríplice fronteira entre Peru, Colômbia e Brasil. O suicídio está aumentando entre os jovens.
Como compreender a evangelização neste contexto?
R. Entendemos que evangelizar não é só anunciar o amor de Deus, o Evangelho, mas fazer obras para este povo, escutando com atenção os seus desejos explícitos, implícitos, oferecendo promoção humana: música, violão, teclado, marcenaria, corte-costura, eletricista. Tudo que sentem que e importante procuramos oferecer a eles, como prevenção, na luta constante contra o álcool e as drogas. Tentamos formar novas lideranças, mas o grande desafio é lutar contra a globalização: energia elétrica, televisão, internet que estão entrando cada vez mais nas aldeias e fazem com que os jovens entrem em crise porque o mundo é ocidental. Eles se olham e entendem que por não estarem naquele mundo, estão errados. Parece que tudo o que vêm na internet, na TV está certo e eles estão errados. A globalização tenta apagar a diversidade cultural.
De que maneira a seca que assola a Amazônia tem afetado a missão?
R. Estou aqui há 17 anos, antes viajávamos, navegávamos tranquilamente de canoa, agora devemos nos cobrir como no deserto, deixando somente os olhos fora, porque o sol queima. A seca está atingindo, principalmente a vida do povo, porque se tornou mais difícil, está mais distante, é preciso andar quilômetros para tomar banho, lavar roupa. Muitas comunidades se tornam inacessíveis, isoladas e o trabalho pastoral fica difícil. O governo e a defesa civil têm tentado ajudar as comunidades transportando tudo via helicóptero, quando via fluvial, se torna mais demorado.
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