Celebração dos mártires coptas: Roma e Alexandria reafirmam ecumenismo de sangue
Delphine Allaire - Cidade do Vaticano
É uma celebração rara que aquela realizada na Basílica de São Pedro na tarde de quinta-feira, 15 de fevereiro. Tratou-se da primeira celebração conjunta da memória dos 21 mártires coptas, assassinados na praia de Sirte, Líbia, pelo autoproclamado Estado Islâmico, em 15 de fevereiro de 2015.
Nove anos mais tarde, a Igreja Católica e a Igreja Copta Ortodoxa, a maioria entre os cristãos do Egito, presta a eles uma homenagem conjunta durante a cerimônia presidida pelo cardeal Kurt Koch, prefeito do Dicastério para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Oferecidas pelo Patriarca de Alexandria Tawadros II em 11 de maio de 2023 ao Papa Francisco, as relíquias dos mártires foram expostas para a veneração dos fiéis. Presente precioso dada a grande importância dos mártires na fé copta.
Este passo é também significativo para a unidade dos cristãos e para a amizade entre coptas e católicos, reforçada pelos estreitos laços mantidos pelo Bispo de Roma e pelo Patriarca de Alexandria, como evidenciado pelo seu encontro na Praça em frente à Basílica de São Pedro no dia 11 de maio para a Audiência Geral.
No contexto desta celebração, entrevistamos o egiptólogo e orientalista belga Christian Cannuyer, diretor da Solidarité-Orient com sede em Bruxelas.
Que significado tem esta primeira e rara celebração conjunta na Basílica de São Pedro em memória dos 21 mártires coptas ortodoxos?
Devemos vê-la como um sinal dos tempos, uma iniciativa profética. Pela primeira vez, a Igreja Católica inclui no martirológio romano santos pertencentes a uma Igreja que já não está em comunhão histórica com Roma. São mártires que são ao mesmo tempo irmãos separados. Isto corresponde ao ecumenismo de sangue, termo cunhado pelo Papa Francisco. Para além do diálogo teológico institucional, por vezes decepcionante pela sua lentidão, existe esta comunhão no sofrimento e na perseguição partilhada, particularmente no Médio Oriente, face ao fanatismo, por católicos, protestantes e ortodoxos. Este modelo precisa ser mais explorado. Rezo ao Céu para que em breve em todas as Igrejas separadas seja reconhecida a santidade dos mártires que, desde os tempos da separação marcaram a história das Igrejas com as quais infelizmente já não estamos em comunhão.
Suas relíquias foram expostas para veneração. Quão importante é a devoção a estes 21 mártires na Líbia no mundo copta há nove anos?
Os coptas têm uma sensibilidade muito aguçada em relação ao fenômeno do martírio. A era copta não começa com o nascimento de Nosso Senhor, mas no ano 284 dC, com o reinado de Diocleciano, que foi o imperador dos últimos cristãos perseguidos. É chamada de era dos mártires. As igrejas coptas estão repletas de ícones que representam antigos mártires, muitas vezes representados a cavalo, um símbolo do bem superando o mal. Hoje, desde a ascensão do Islamismo e dos problemas enfrentados pelo Egipto, há mártires cristãos regularmente. No Egpto, os coptas têm uma atitude exemplar para com estes santos perseguidos na nossa contemporaneidade.
Muitos dos meus amigos cristãos do Oriente, da Palestina, da Síria, do Iraque, ficam sempre surpreendidos com a reação das famílias coptas na televisão, quando uma delas acaba de perder um dos seus membros num ataque. Há tristeza, revolta, mas também este imenso orgulho de ter na família um santo mártir, um intercessor, um amigo privilegiado de Deus, testemunha por excelência da fé.
Além disso, aos mártires de fevereiro de 2015, foi construída com financiamento estatal uma grande basílica, um martyrium. É um lugar extraordinário onde estão expostos os mártires, há relíquias e estátuas; um lugar onde as famílias vão com as crianças e as crianças brincam entre as testemunhas. Longe de ser um lugar de desespero, é um lugar de fé, oração, comunhão e esperança no futuro da Igreja do Egito.
Como o senhor vê a criação, no verão passado pelo Papa, de uma Comissão para os novos mártires-testemunhas da fé, de todas as confissões cristãs?
Esta é uma intuição promissora. Um dia as Igrejas separadas deverão reconhecer a santidade destas testemunhas da fé que marcaram a história destas Igrejas desde a sua separação. Sempre fico surpreso, quando vou à Etiópia, por exemplo, ao ver a devoção que muitos cristãos ortodoxos têm pela pequena Teresinha do Menino Jesus. Da mesma forma, muitos cristãos católicos sentem grande admiração pela espiritualidade de São Serafim de Sarov. No Egito, a tão popular Virgem das aparições de Zeitoun em 1968, é na verdade a imagem da Virgem da rue du Bac que apareceu a Catherine Labouré. Estes capilares de santidade afectam as nossas Igrejas, apesar das separações históricas e teológicas que lhes se opõem.
Como evoluíram recentemente as relações entre Roma e Alexandria? Tawadros II e Francisco criaram um vínculo especial?
Em 1973, Shenouda III e Paulo VI assinaram uma declaração cristológica conjunta, reconhecendo que confessamos o mesmo Senhor Jesus Cristo, apesar das divisões da história. Tawadros II e Francisco decidiram comemorar todos os anos este acordo e torná-lo um dia de amizade e fraternidade entre a Igreja Copta e a Igreja de Roma. Eles são muito próximos e compartilham a mesma perspectiva ecumênica. Tawadros II desempenhou assim um papel nos laços estabelecidos pelo Papa Francisco com o Grão Imã de Al-Azhar Ahmed al-Tayeb, nomeadamente durante a assinatura da Declaração sobre a Fraternidade Humana em Abu Dhabi.
Tawadros II sucedeu a Shenouda III, que não era muito aberto ao ecumenismo e a uma certa modernidade teológica. Tawadros II quebrou essas amarras e comprometeu-se fortemente com o caminho ecumênico. Por exemplo, ele participou da consagração do Patriarca copta-católico Ibrahim Isaac Sidrak. Foi um primeiro gesto inesperado.
Um dos pontos em comum com Francisco é que Tawadros II encontra oposição sobre este assunto por parte de um segmento muito cauteloso da sua Igreja e do seu episcopado, tal como o Papa também encontra resistência. Atrevo-me a acrescentar que o mesmo se aplica ao Grão Imã de Al-Azhar. As relações do reitor da mesquita-universidade de Al-Azhar com Roma são desaprovadas por toda uma secção de ulemás, doutores da fé e do Islã egípcio.
Todos os três estão unidos por esta convicção de que a fraternidade humana deve sempre ter precedência sobre o exclusivismo teológico ou a solidariedade da capela. Todos os três estão convencidos de que Deus não permite que as pessoas se matem e se oponham umas às outras em seu nome. Todos os três encontram oposição nesta questão por parte daqueles que mantêm uma visão muito exclusivista, até mesmo “de guerra”, da religião.
Num Oriente cristão com um horizonte obscurecido pelas guerras, qual pode ser o testemunho desta amizade entre coptas ortodoxos e católicos?
Esta é a prova de que as divisões da história e os mal-entendidos teológicos que não podem ser resolvidos em um instante – existem e devemos aceitá-los – não são um obstáculo à fraternidade. Isto aplica-se obviamente a nível ecumênico, entre Igrejas cristãs que partilham a mesma fé no mesmo Senhor e a mesma esperança escatológica, mas aplica-se também entre religiões abraâmicas ancoradas na mesma fonte, a fé do profeta e patriarca Abraão.
É uma ilustração da possibilidade de superar o ódio histórico, as divisões, os mal-entendidos, para reconstruir um tecido humano, fraterno e unido, e para garantir que o peso de Deus não pese demasiado sobre o homem deste Oriente que muitas vezes se distingue por uma dinamismo espiritual em todas as comunidades, longe do lado mais "desbotado" da vida espiritual no Ocidente. A contrapartida é que às vezes Deus é pesado demais e esmaga o homem. O que Francisco e Tawadros II estão fazendo é um exemplo que tem valor universal.
Qual é a atual vitalidade espiritual e pastoral da Igreja Copta Ortodoxa?
Desde a década de 1950, a Igreja Copta Ortodoxa tem experimentado uma extraordinária renovação espiritual que se reflete em particular na renovação da vida monástica. No início da década de 1950, os mosteiros no Egito eram o que são no Ocidente, na sua maior parte habitados por monges de cabelos grisalhos, frágeis e em pequeno número.
E houve um renascimento extraordinário sob a égide do Patriarca Copta Ortodoxo Cirilo VI, então figuras como Matta El Meskin. É uma renovação impulsionada por um fenômeno iniciado no início do século XX no Egipto copta, o das escolas dominicais, ou seja, este esforço de educação cristã que a Igreja iniciou no serviço aos leigos no final da Missa dominical: o estudo da exegese, da liturgia, de grandes figuras espirituais. Neste berço nasceram todas as grandes figuras reformadoras do atual monaquismo egípcio. Quando visitamos o Egipto, não podemos deixar de ficar impressionados com o fervor da população cristã do Egito. Às vezes, esta atitude espiritual faz-nos pensar na piedade dos nossos avós, na fé do carvoeiro, que nem sempre coloca muitas questões filosófico-teológicas elevadas; mas o dinamismo da Igreja do Egito, marcado nomeadamente pela frequência aos serviços religiosos e pelo respeito pelos jejuns, é bastante admirável.
No atual contexto regional, como se posiciona a Igreja Copta Ortodoxa no Egipto em relação à guerra que assola as suas fronteiras, nomeadamente o sul da Faixa de Gaza?
Os coptas ortodoxos são árabes. Eles partilham todas as esperanças e ideais do Arabismo desde o início do século XX. A maioria dos cristãos no Egito são solidários com o povo palestino, e não apenas os cristãos em Gaza ou os cristãos na Cisjordânia que hoje atravessam tempos difíceis. Não é uma questão para os cristãos do Egito, nem para os egípcios, sancionarem o que aconteceu em 7 de outubro. Como disse o arcebispo de Argel, dom Jean-Paul Vesco, o drama do 7 de outubro é indesculpável, mas não é sem causa. O sofrimento do povo palestiniano e dos cristãos da Palestina afeta naturalmente os cristãos do Egipto. Durante muito tempo, o papado copta impediu-os de visitar Jerusalém, porque a cidade santa estava sob ocupação israelense. Tawadros II suspendeu a proibição em 7 de janeiro de 2022.
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