O testemunho de um sacerdote em Mianmar, três anos após o golpe militar
Marie Duhamel - Cidade do Vaticano
Em Mianmar, passaram-se já três anos desde que a Junta tomou o poder pela força, em 1° de fevereiro de 2021, encerrando um intervalo democrático de 10 anos, personificado pela ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi. As eleições, mencionadas como garantia de credibilidade pelos militares, parecem distantes, uma vez que anunciaram a prorrogação do estado de emergência no país por 6 meses. É preciso dizer que a junta parece enfraquecida devido a uma ofensiva em grande escala em curso desde o final de outubro. Grupos étnicos rebeldes históricos uniram-se, acolhendo jovens urbanos determinados a lutar pela democracia. Entre combates terrestres e bombardeios, entrevistamos um sacerdote que fala francês e eserce seu ministério no país. Ele começa falando sobre a política adotada pelo exército nestes três anos:
Sim, é realmente um reinado de terror. O terror é a única coisa que permite aos militares permanecerem no poder, porque não têm outra legitimidade além desta. Eles têm o poder de aprisionar ou matar sem motivo. Eles estão adotaram uma política de terra arrasada e criaram um reinado de terror para mostrarem que são os líderes. Eles fazem o que querem, quando querem. De vez em quando organizam manifestações de apoio, pagando para as pessoas irem às ruas, mas ninguém acredita.
Concretamente, o exército é onipresente, visível em todas as esquinas?
Depende das zonas, das regiões, dos dias. Há dias em que vemos soldados por toda parte e outros em que não vemos nada. Isso varia, eu acho, dependendo de quão inseguros eles se sentem. Mas ainda assim, há uma pressão, mesmo que apenas pelos ruídos. Há cinco minutos, antes da sua chamada, podíamos ouvir os canhões. Não necessariamente os vemos, mas sabemos que eles estão lá. E então, nas estradas, tem muitos soldados. Na verdade, esse é o problema quando se viaja por estrada. Lá é bem visível: bloqueios estão instalados em todos os lugares e isso complica a vida de muita gente.
Em sua opinião, qual é a maior força dos militares atualmente?
Acho que são mais os meios técnicos deles do que os humanos, porque ainda há algumas perdas humanas. O fato, por exemplo, de terem aviões, helicópteros, canhões. Isto é muito mais do que a maioria dos grupos de oposição. Mesmo que alguns exércitos estejam bem equipados, em comparação com a junta, não é nada. E então, eles ainda têm tropas muito fortes e muito unidas. Acho que esse é um dos seus grandes pontos fortes. Conseguiram - sem dúvida por meio de táticas de pressão - manter as suas tropas à sua volta. O exército é realmente uma espécie de máfia. Todos moram juntos e não podem sair. A junta tem controle sobre todos os soldados, as bases simplesmente não têm liberdade. Por fim, a sua maior força continua a ser técnica e aérea, até porque no terreno, como vimos no leste do país, raramente vencem.
O senhor fala sobre táticas de pressão. Assistimos à detenção destes seis oficiais superiores que tinham perdido as suas posições em Laukkai, no norte, mas também de dois aviões que iam resgatar desertores na Índia manu militari. Sabemos que eles arriscam a pena de morte. A mensagem é clara…
Sim, ao fazer isso estão se expressando com muita clareza: “Se você depor as armas, é isso que o espera”. Porque na verdade ainda houve muitas deserções, especialmente no Estado de Shan, regimentos inteiros que se renderam. Portanto, penso que há um grande receio de que outros sigam este exemplo. E então eles pressionaram assim.
Houve perdas de posições, dezenas de deserções, rumores chegam a sugerir dissensões dentro do exército. Dá a parecer que nunca esteve tão enfraquecido. Essa é também a sua impressão?
Passsa essa impressão, de qualquer maneira. Devemos esperar que isso seja verdade. Penso que o que o enfraquece são antes os interesses da liderança, os interesses econômicos. Alguns querem voltar para algo mais estável, para que possam ganhar dinheiro. E dada a forma como as coisas estão a ser geridas neste momento, alguns dizem que é melhor mudar de líder. Mas é muito complicado, porque essa notícia não passa. São rumores que não sabemos se são verdadeiros ou não. E para além das divisões internas, o exército também está enfraquecido pela falta de pessoal. Simplesmente porque, casualmente, ninguém quer mais entrar. Eles têm dificuldade em recrutar. Isto parece uma possível fragilidade para eles.
Nunca falamos sobre esse ponto. O senhor sabe como o exército recruta seus soldados?
Existiram antes e ainda existem escolas militares. A maior, se bem me lembro, era a região de Sagaing, no centro do país... uma das regiões onde hoje há mais revoltas. Frequentemente, recrutam pessoas que só podem fazer isso. Alguns até dizem que recrutam criminosos nas prisões, presos de direito consuetudinário. Juntar-se ao exército seria uma forma de sair da prisão. Também ouvi alguns jovens dizer que vão para as aldeias e não lhes dão escolha. Eles recrutam assim. Uma espécie de recrutamento, mas forçado.
A democracia parece ter desaparecido três anos após o golpe o estado de emergência foi prorrogado por seis meses. Com que propósito, na sua opinião?
Acho que estão esperando que as forças da oposição caiam como uma explosão, já que não estão muito unidas. Infelizmente, acho que há um pouco disso. Estão à espera que ela entre em colapso para poderem continuar a governar o país durante o maior tempo possível. Nem tenho certeza se eles alguma vez pretenderam realizar eleições.
Na verdade, existem tantos críticos do exército quantos grupos étnicos no país, ou quase. Contudo, no outono, três deles uniram-se de uma forma bastante inédita para uma ofensiva em uma escala sem precedentes em diversas frentes e com resultados. Qual a sua percepção disso?
No início, até dezembro, parecia uma grande onda que iria varrer o país, para finalmente restaurar a calma. Mas agora tenho a impressão de que as coisas se acalmaram. Então isso é uma impressão devido à minha posição geográfica? Se foi porque certos grupos étnicos conseguiram o que queriam, não sei. A verdade é que conseguiram tomar cidades e agora controlam partes inteiras do território birmanês. Li em algum lugar que apenas o centro do país, a planície, era agora controlado pela junta. Praticamente todo o resto está nas mãos de grupos étnicos. Então ainda foi impressionante... especialmente ver que o exército poderia ser derrotado. Acho que fez uma grande diferença na cabeça de muitas pessoas o fato de o exército, em última análise, não ser todo-poderoso e poder perder.
O que pode ser dito em particular sobre a união destes três grupos étnicos armados dentro da “Aliança da Fraternidade”?
Ainda é um bom sinal. Isto significa que o país começa a pensar: sem unidade não haverá democracia, não haverá liberdade, não haverá mais nada. E a melhor maneira de voltar ao normal é nos unirmos. Reconheço que esta união e o fato de se ajudarem mutuamente - este efeito de unidade e, em última análise, de fraternidade - é bastante impressionante, porque uma das grandes fraquezas da Birmânia é o desencanto que reina entre os grupos étnicos. Não há ligação entre eles e todos estão em casa. O que está acontecendo é encorajador até mesmo para o futuro. Temos que torcer para que continue assim.
Após o golpe de Estado de 1° de fevereiro de 2021, milhares de jovens, especialmente jovens urbanos noutros locais, pegaram em armas para lutar contra o exército, criando a Força de Defesa Popular. Eles ainda estão operacionais hoje?
Ainda existem e desempenham um papel muito importante nos combates em certas regiões, especialmente em regiões de maioria birmanesa. São eles que mantém o controle, mas com o apoio, formação e ajuda material de grupos étnicos. No início eles não eram necessariamente muito bem treinados e andavam um pouco em todas as direções. Sinto que os grupos étnicos os ajudaram a se organizar. Mas sim, eles ainda são uma força muito importante. E acho que a nível de imagem, para as pessoas, representam algo importante. As pessoas estão apegadas a estes jovens que dão a vida pela pátria, sobretudo porque alguns são muito jovens e, muitas vezes, pagam o preço do seu compromisso, seja sendo presos ou simplesmente assassinados.
Que impacto tem este conflito nas famílias birmanesas?
Em geral, pelo que posso ver, a grande maioria das pessoas apoia realmente as forças democráticas e, portanto, unem-se, mas algumas famílias encontram-se divididas porque têm membros no exército e membros na rebelião. Mas quer tenham ou não alguém envolvido em combate, todas as famílias são afetadas em termos da educação dos seus filhos. Penso que a maior dificuldade para a maioria do povo birmanês é mais a vida quotidiana do que o conflito em si, a menos que se esteja no eEtado de Kayah, claro, já que 80% da população teve de fugir. Mas nas cidades a guerra é menos sentida, ao contrário das consequências práticas do conflito: a dificuldade de viajar, a disparada dos preços, coisas assim. E isso tem um enorme impacto sobre os civis e a Igreja.
Ouvimos falar de locais de culto ocupados, por vezes até arrasados. Como a Igreja está passando por esta guerra?
A Diocese de Laukkai, no norte do estado de Shan, está sofrendo muito. A maior parte das paróquias estão fechadas, quem sabe até mesmo todas. O bispo também esteve recentemente em um campo de refugiados. Mas, em outras áreas, a guerra tem impacto na dificuldade de deslocamento dos sacerdotes de um lugar para outro, muitas vezes chegando aos centros diocesanos. Ao mesmo tempo, a Igreja está se organizando para acolher os refugiados, para dar comida a quem não consegue se alimentar, esse tipo de coisa.
Existe também a preocupação de participar na educação para a paz e a fraternidade?
É verdade que esta é a grande força do cristianismo, mas também a grande dificuldade da pregação. “Amar vossos inimigos como a vós mesmos” nunca me chocou quando tive que pregar sobre isso na Europa, mas tornou-se muito mais complicado quando tive que fazê-lo aqui, pela primeira vez, depois do golpe de estado. Mas é preciso fazê-lo e, sobretudo, mostrar a Igreja como lugar de unidade, pois na Igreja estão representados todos os grupos étnicos. Devemos tentar mostrar que a Igreja pode ser este lugar de fraternidade, de reconciliação e sobretudo de promoção da paz, em vez de escalada de violência. Creio que os bispos estão tentando transmitir isso em certas mensagens que podem ter publicado. Mas é verdade que a mensagem por vezes tem dificuldade em chegar às gerações mais jovens, que vêem os seus amigos serem mortos ou que testemunham a destruição do país. Mas penso que é muito importante que permaneçamos nesta mensagem e que a Igreja não transmita uma mensagem política, por exemplo.
Este é obviamente um ponto mais específico. Mas há alguns meses o senhor falou-nos da consciência dos seminaristas que viram os seus amigos pegar em armas para defender a democracia. Qual a situação hoje?
Bem, este é menos o caso do que no início do conflito. Os seminários continuam a funcionar, as ordenações acontecem e as religiosas fazem os votos. O que se complica é entrar no seminário quando não se pode estudar fora, quando não se pode fazer o equivalente ao bacharelado ou mesmo ir para a universidade. As universidades estão fechadas desde 2020. Este é outro desafio que a Igreja enfrenta.
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