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Padre Anderson: A Imagem de Deus no Homem

A Memória, segundo Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino.

Padre Anderson Alves - Diocese de Petrópolis

Segundo Santo Agostinho a mente humana, o conhecimento que ela tem de si e o amor que surge do conhecimento são imagem da Trindade, ou seja, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Nas “Questões disputadas sobre a verdade”, questão décima, Santo Tomás de Aquino aprofunda a intuição agostiniana e trata a mente humana como imagem da Trindade. Já falamos do artigo primeiro daquela questão, em um texto anterior, que diz que a “mente” inclui a intelecto e vontade; a memória, por sua vez, faz parte do intelecto, e diz respeito a conhecimentos prévios que permanecem na alma mesmo quando não pensamos neles, através do hábito da ciência, como um músico conhece (habitualmente) uma música, mesmo quando não está pensando nela (atualmente).

No artigo segundo da questão décima, Tomás aprofunda a questão e se interroga se a memória se encontra na mente humana; no artigo terceiro ele investiga se a memória é distinta do intelecto, ou seja, se intelecto e memória são duas faculdades distintas da alma humana.

Pe. Anderson Alves - Diocese de Petrópolis
Pe. Anderson Alves - Diocese de Petrópolis

Em a. 2, ele diz que trata a memória em seu sentido comum, ou seja, o conhecimento que se refere a realidades passadas. Conhecer o passado enquanto passado é próprio da faculdade que conhece o presente enquanto presente, ou seja, do sentido (sensus), de acordo com Santo Tomás. O intelecto, de fato, conhece a realidade singular segundo alguma razão comum, independentemente do tempo. Quando conhecemos algo, fazemo-lo de modo absoluto e é totalmente indiferente saber quando foi que começamos a conhecer algo. A memória, portanto, está ligada ao passado e por isso, na sua acepção própria, diz respeito à parte da faculdade sensitiva do homem.

Entretanto, de modo derivado, o termo “memória” pode ser estendido a um conhecimento intelectual prévio. Nesse caso, o intelecto conhece o objeto do que antes tinha conhecimento enquanto sabe que antes o teve; dessa maneira todo conhecimento que não é recebido de novo pode ser chamado de memória.

E isso ocorre de dois modos: a) quando esse conhecimento não foi interrompido e é contínuo na nossa consciência; b) um conhecimento prévio também pode ser interrompido na nossa mente e podemos recordá-lo a partir de certo esforço. No último caso, esse conhecimento tem mais natureza de passado, ou seja, de “memória” do que no primeiro. Assim temos memória do que conhecemos de modo habitual, mas não atual. Temos o conhecimento, por exemplo, de diversas operações matemáticas, embora agora não estejamos realizando nenhuma delas. Esse tipo de conhecimento, chamado de habitual, que não é refletido em ato, é então chamado de “memória”. Nesse sentido, ela está na parte intelectiva da alma e é, segundo Santo Agostinho, imagem de Deus: ela diz respeito a tudo o que se conserva habitualmente na mente, de modo que não tenha se tornado um conhecimento atual.

Como explicar isso? A resposta de Santo Tomás é complexa. Ele diz que as espécies inteligíveis, que nos fazem conhecer determinada realidade, como uma equação matemática, por exemplo, permanecem-no intelecto possível depois da sua consideração atual (de um conhecimento atual daquela realidade) e a sua ordem é chamada de “hábito da ciência”. E a faculdade da nossa mente que conserva as espécies inteligíveis depois de uma consideração atual é chamada então de “memória”.

Depois, em ad 1, Tomás esclarece que a memória que possuímos e é semelhante a dos animais é a capacidade de conservar os conhecimentos particulares, apreendidos pelos nossos sentidos, que sempre se referem ao passado. Essa seria a chamada memória sensitiva. Há, porém, a memória intelectual, que reside na mente; nela só são conservadas as espécies inteligíveis, mediante o hábito da ciência. Na resposta à objeção quinta, Tomás esclarece que na mente está à imagem de Deus na medida em que pode ser dirigida a Deus e a si mesma. Ela está presente a si mesma e, da mesma maneira, Deus está presente nela antes que qualquer espécie, proveniente das realidades sensíveis, seja recebida.

Em De veritate, q. 10, a. 3, Santo Tomás se pergunta se a memória é parte da inteligência ou é uma faculdade superior do homem, distinta da inteligência. A pergunta é pertinente, pois Santo Agostinho afirmara, no Livro XIV de De Trinitate, que a alma foi feita à imagem de Deus na medida em que pode fazer uso da razão e do intelecto para compreender a Deus e contemplá-lo. A alma pode contemplar a Deus, portanto, de acordo com as suas faculdades. E a imagem de Deus na alma se encontra em três faculdades: na memória, na inteligência e na vontade, que seriam os três poderes distintos da alma, segundo Santo Agostinho.

Tomás de Aquino esclarece que a imagem da Trindade na alma pode ser considerada de duas maneiras; a) a primeira, segundo uma imitação perfeita da Trindade; b) e segundo uma imitação imperfeita. A alma imita perfeitamente a Trindade na medida em que se lembra, compreende em ato e quer em ato. Portanto, segundo esse modo de imitação perfeita, Santo Agostinho atribui a imagem a essas três realidades: memória, inteligência e vontade, na medida em que a memória implica um conhecimento habitual, enquanto a inteligência envolve conhecimento atual e a vontade carrega consigo um movimento real da vontade a partir do pensamento.

A imagem segundo uma imitação imperfeita ocorre de acordo com hábitos e faculdades, e assim Santo Agostinho, no nono livro de De Trinitate, delimita a imagem da Trindade na alma de acordo com a mente, o conhecimento e o amor. A mente designa uma faculdade, enquanto o conhecimento e o amor designam os hábitos da mente. Isso implica, pois, o conhecimento atual e o habitual. Agostinho dá exemplos do que seria um conhecimento habitual: o músico conhece certa música sem pensar atualmente nela; o mesmo ocorre com o geômetra, que conhece a geometria mesmo sem estar atualmente pensando nas operações daquela ciência.

Assim sendo, quando o conhecimento e o amor são tomados como hábitos, pertencem apenas à memória. Mas como os atos estão fundados radicalmente nas faculdades, como os efeitos estão nas suas causas, a imitação perfeita, que está de acordo com a memória, a inteligência atual e a vontade atual, pode ser encontrada originalmente nas faculdades segundo as quais a alma pode realmente lembrar, compreender e querer. 

Portanto, a imagem (da Trindade) deve ser buscada nas faculdades da mente. A memória, porém, não é uma faculdade distinta da inteligência humana. Pois as faculdades (ou potências) não se diversificam a partir da diversidade dos seus objetos, exceto quando a diversidade dos objetos procede daquilo que por si compete aos objetos, na medida em que são objetos de tais faculdades. Por isso, o calor e o frio, que estão numa realidade colorida, não diversificam como tal o poder da visão. É característico do poder da visão ver o que é colorido quente e frio, doce e amargo. É uma só potência (visual), que conhece objetos diversos e opostos (como o quente e o frio). Assim o intelecto conhece o presente, o passado e o futuro e a memória, que conhece o passado, faz parte do intelecto.   

Mesmo que a memória não seja uma faculdade distinta da inteligência, ainda assim a Trindade é encontrada na alma também ao considerar as suas faculdades, na medida em que uma faculdade, como o intelecto, está relacionada a várias coisas, isto é, pode ter conhecimento de algo habitualmente e atualmente. Portanto, a imagem da Trindade no homem está em duas potências distintas, a inteligência e a vontade; e a memória faz parte do intelecto, e diz respeito aos nossos conhecimentos passados e habituais.

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20 maio 2024, 11:46