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Vista da  Escola de Equitação Esportiva para Crianças e Jovens, destruída por ataques de mísseis russos, no vilarejo de Mala Danylivka, nos arredores de Kharkiv, 30 de maio de 2024. REUTERS/Valentyn Ogirenk Vista da Escola de Equitação Esportiva para Crianças e Jovens, destruída por ataques de mísseis russos, no vilarejo de Mala Danylivka, nos arredores de Kharkiv, 30 de maio de 2024. REUTERS/Valentyn Ogirenk  (ANSA)

Bispo de Kharkiv: queremos viver em um país livre e independente, não como escravos

"A situação é muito difícil, também há muito cansaço, mas tentamos resistir, ninguém pretende desistir, até porque sabemos que se levantarmos a mão seremos destruídos. Basta ver o que está acontecendo nos territórios ocupados pelos russos (...). Queremos viver em um país livre e independente, não como escravos. Defendemos a nossa pátria com muita perseverança e estamos muito gratos a todos os que nos apoiam nisso."

Svitlana Dukhovych - Cidade do Vaticano

Kharkiv vive uma situação dramática. As notícias de ataques russos são ouvidas todos os dias e drones, foguetes e bombas destroem a cidade, causando mortes e feridos também entre os civis. No ataque contra o supermercado “Epitsentr”, às 16h00 do passado sábado, 25 de maio, num horário e dia habitualmente mais movimentado, 19 pessoas morreram e 54 ficaram feridas. Na noite de 31 de maio, um foguete russo atingiu um prédio de apartamentos de cinco andares, matando três pessoas e ferindo 23, incluindo um paramédico, porque os russos mais uma vez usaram uma "tática de golpe duplo": atacaram pela segunda vez, enquanto médicos, equipes de resgate e policiais já trabalhavam no local do primeiro ataque.

Na cidade, que antes da invasão russa tinha dois milhões de habitantes, agora resta metade deles, contando as cerca de 500 mil pessoas que fugiram para Kharkiv provenientes das cidades e povoados mais próximos do front.

 

Mas como é viver em Kharkiv nesse contexto dramático? Os habitantes estão indo embora? Como se consegue viver a própria fé em meio a esta terrível situação? Estas perguntas são respondidas na entrevista à Rádio Vaticano-Vaticano por dom Pavlo Honcharuk, bispo de Kharkiv-Zaporizhzhia dos Latinos. Na última quarta-feira, durante a Audiência Geral, o prelado teve a oportunidade de saudar o Papa Francisco, agradecendo-lhe as suas orações e o apoio ao povo ucraniano.

Como responsável pelos capelães militares da Igreja Católica Romana na Ucrânia, ele presenteou o Pontífice com a insígnia de capelão. “Houve um momento de grande calor. O rosto do Papa mostrou uma expressão de envolvimento. Ficou claro que a Ucrânia está no seu coração”, confidencia o bispo.

“Em Kharkiv a situação está se tornando muito crítica”, conta ele, “porque no início da invasão russa, os habitantes não pensaram muito em deixar ou não a cidade, muitos simplesmente partiram porque viram o perigo que certamente, então, era muito maior do que agora: as tropas russas já estavam no anel viário de Kharkiv e havia um grande risco de que em algumas horas a cidade pudesse ser cercada. É por isso que as pessoas estavam indo embora. Quando o exército ucraniano expulsou os russos de Kharkiv, as pessoas começaram a regressar dos locais para onde tinham fugido e a vida começou a fluir novamente. Lojas, restaurantes, cafés, pizzarias, cabeleireiros, salões de beleza voltaram a funcionar e as pessoas regressavam, porque na realidade o mais difícil não é a saída, mas é o estar longe de casa, não ter perspectivas, não entender o que espera, depender de alguém e morando no apartamento de outra pessoa. Também aqueles que estiveram no exterior tiveram dificuldade em se habituar a uma realidade diferente, quando regressaram disseram: ‘Aconteça o que acontecer, vamos ficar aqui’, ou seja, apesar de tudo, ‘a casa continua a ser a casa’.

"Queremos viver em um país livre e independente, não como escravos"

 

É por isso que, como explica dom Honcharuk, a decisão de partir novamente é tão dolorosa para os habitantes. Há mulheres que não querem sair da cidade porque os seus maridos estão combatendo no front perto de Kharkhiv. “Mais uma vez a família sofre e me parece que este é um dos momentos mais dolorosos desta guerra – observa o bispo – a situação é muito crítica, porque a nossa cidade está sendo bombardeada com bombas teleguiadas. Algumas pesam duzentos e cinquenta quilos, outras quinhentos, outras ainda uma tonelada e meia. Quando cai uma bomba de uma tonelada e meia, deixa uma cratera com oito metros de profundidade e trinta metros de diâmetro, dependendo se se trata de uma área construída ou de terra. É por isso que as ruínas são assustadoras. E a última tragédia é muito forte: foi um grande supermercado, onde muitas pessoas morreram. Muitos deles provavelmente não serão encontrados, porque houve um grande incêndio, tudo queimou. Assim, Kharkiv vive todos os dias esses terríveis momentos de choque. A situação é muito difícil, também há muito cansaço, mas tentamos resistir, ninguém pretende desistir, até porque sabemos que se levantarmos a mão seremos destruídos. Basta ver o que está acontecendo nos territórios ocupados pelos russos. Por isso resistimos e agradecemos a todas as pessoas que continuam a apoiar a Ucrânia, que se lembram de nós. Naturalmente, existem indivíduos, grupos ou políticos que tentam nos convencer a ceder, a nos render. Não queremos a guerra e isso é inequívoco. Até os nossos militares dizem: não queremos matar ninguém, queremos proteger o nosso povo e queremos viver, porque é nosso direito viver. Queremos viver em um país livre e independente, não como escravos. Defendemos a nossa pátria com muita perseverança e estamos muito gratos a todos os que nos apoiam nisso. Porque isto demonstra que é compreendido o significado da liberdade, que se compreende o que é a dignidade humana, o que é a justiça, o que é a verdade. E de fato a verdadeira liberdade está apenas na verdade."

Em Kharkiv, como afirma o jovem bispo, não restam muitos católicos, mesmo assim decidiu permanecer na cidade. “No que diz respeito aos nossos paroquianos, se tiverem a oportunidade de ir a algum lugar, encorajo-os a partir caso se tornar muito perigoso. Os sacerdotes também foram informados de que cada um deve tomar a decisão por si próprio, dependendo da situação. Ficarei em Kharkiv enquanto nossa gente estiver por lá, porque a minha presença também é necessária para ajudá-los a resistir. A nossa presença também é útil para os voluntários, para quem ajuda. Se eu tiver que sair da cidade, sairei com o último grupo.”

A realidade interior revelada pela guerra

 

É o terceiro ano da guerra. Na cidade que parece uma ferida aberta, no meio da dor e da tristeza, a fé, que nos ajuda a sobreviver, muda e torna mais sólida. “Desde o início da guerra - conta dom Pavlo - compreendi claramente que tudo o que existe tem um fim e que a minha vida aqui na terra também tem um fim. Só no amor uma pessoa sabe quem realmente é, encontra a sua dignidade, encontra a si mesma. O amor tem sua força e seu significado exclusivamente em Deus, no relacionamento com Ele e no relacionamento íntimo com Ele. Sei quem sou, e é por isso que não preciso ir atrás de algum título, alguma afirmação de fora. Por outro lado, vejo quanta tragédia trazem os corações ímpios, os corações vazios que não conseguem se tranquilizar: são infelizes, querem sentir-se importantes. Esses corações são movidos pelo medo, são manipulados, fogem da verdade. Aqui, a guerra revela esta realidade".

"Desejo que todos experimentem Deus e se encontrem Nele, porque isso os fortalece"

 

Ao concluir, dom Pavlo Honcharuk agradece pelo dom da fé:

"E neste momento agradeço a Deus por ter me dado o dom da fé, porque a Sua presença, ou seja, a experiência de Deus, me dá forças para resistir, para entender quem sou, para onde vou e qual é o meu objetivo, dá-me forças para seguir em frente, para não ficar calado. E assim, mesmo quando às vezes é difícil conversar com pessoas que vivem tanta dor, quando surge o sentimento de impotência, de fraqueza, de não poder fazer nada, a fé me dá força, um alicerce. Por isso, desejo que todos experimentem Deus e se encontrem Nele, porque isso os fortalece. Porque se quisermos que o nosso mundo seja humano, devemos ter certeza de que nossos corações são humanos, e o serão, somente quando houver o amor de Deus neles”.

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31 maio 2024, 10:58