Fiéis católicos timorenses recebem as cinzas em Díli. Fiéis católicos timorenses recebem as cinzas em Díli.  (ANSA)

Fé e cultura, fé e história indissociavelmente ligados a Timor-Leste

"Se pensarmos que hoje a população timorense é composta por mais de 95% de católicos batizados, pode-se compreender como, nos anos críticos de opressão, o elemento da fé foi um baluarte, 'refúgio e fortaleza'". Neste caminho, "pude perceber a mão providencial de Deus que se fez presente na história do povo timorense... Podemos dizer que a fé em Cristo foi um dos componentes essenciais daquele tempo, na nossa história e na nossa cultura, e o é até hoje", disse o vigário geral Díli

por Paolo Affatato

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“Que a vossa fé seja a vossa cultura”, é o lema da visita do Papa Francisco a Timor-Leste de 9 a 11 de setembro, terceira etapa da sua viagem ao Oriente que, entre 2 e 13 de setembro, passará pela Indonésia, Papua Nova Guiné, Timor-Leste e Singapura.

“É uma exortação para viver a fé em harmonia com a cultura”, observa o vigário geral da Arquidiocese de Díli, dom Graciano Santos Barros. Na nação mais jovem da Ásia (a independência foi escolhida em 1999 e proclamada em 2002), com uma grande maioria católica, a Igreja local prepara-se para todos os momentos da visita: o encontro com sacerdotes e religiosos na Catedral de Maria Imaculada em Díli, onde estão em curso obras de restauração; o encontro com os jovens no Centro de Congressos, que poderá acolher mais de 4.000 jovens de diversas realidades, associações e paróquias; a celebração da Eucaristia na Esplanada de Tasi Tolu, na periferia oeste da capital, onde está sendo montado o grande palco com altar, e onde são esperados mais de 700 mil fiéis de todo o Timor-Leste e também da Indonésia e de outros países da região.

 

"A preparação não é somente material, mas também espiritual. A Conferência Episcopal preparou materiais para um ciclo de catequese - em curso nas três Dioceses timorenses, Díli, Maliana e Baucau - sobre a biografia do Papa, sobre o conhecimento de algumas encíclicas, sobre sua missão de Pontífice e sucessor de Pedro, como sobre o tema central da visita, “Que a vossa fé se torne a vossa cultura”, informa à Agência Fides Pe. Bento Pereira, responsável nacional das comunicações e mídias na Conferência Episcopal de Timor-Leste. Para acompanhar os fiéis, foi criada também uma oração, que é recitada todos os dias nas igrejas, comunidades religiosas e escolas de todo o país.

“A reflexão sobre a relação entre fé e cultura – argumenta o vigário Pe. Santos Barros – para nós está ligada à reflexão sobre a relação entre fé e história. A história da nação, a história do sofrimento e da libertação de Timor-Leste, está indissociavelmente marcada e acompanhada pela fé. Hoje, 25 anos depois do referendo pela independência, podemos olhar para a nossa história com um coração reconciliado, reconhecendo a obra de Deus que iluminou as mentes e os corações dos homens em tantas passagens cruciais”, explica à Agência Fides, enquanto mostra um complexo da Igreja local que inclui a “Casa dos Padres”, uma moradia para  o clero, incluindo sacerdotes idosos ou doentes em Díli; o Instituto Superior de Filosofia e Teologia; o Seminário Maior interdiocesano, repleto com 250 seminaristas.

Em 1975, quando a Indonésia ocupou militarmente Timor-Leste, tornando-o uma província sua, Barros era criança e recorda dos pais engajados no movimento de resistência, "lembro-me da destruição provocada pelos indonésios, lembro-me do choro e do luto das famílias”.

No início dos anos 80, o movimento de resistência começou a organizar-se com o líder Xanana Gusmão (atual primeiro-ministro de Timor-Leste, ndr.), em três frentes diferentes: a clandestina, com os ativistas que viviam nas montanhas, distantes das cidades; a da formação de uma ala militar; a diplomática-política para buscar alianças no exterior, “dado que a comunidade internacional desconhecia o que acontecia em nossa pequena ilha”, destaca.

Como tantas outras famílias, a de Pe. Graciano conheceu a clandestinidade e o sofrimento, o cansaço do sustento “sempre vividos” na confiança em Deus, na certeza de que o Senhor acompanharia os nossos passos e o caminho para a liberdade”, caminho que, por opção política, não recorreu a métodos terroristas, mas foi sempre conduzido com formas de luta não violenta.

“Naquele tempo, religiosas, sacerdotes, catequistas, religiosos eram os nossos anjos da guarda. Estavam sempre próximos de nós, compartilhavam a nossa sorte. Rezava-se tanto, cada acontecimento era precedido e acompanhado pela oração, ou seja, era um caminho espiritual, colocavam as nossas ações nas mãos de Deus”, recorda. “A fé acompanhou cada passo nosso, no nosso trabalho e na nossa esperança”.

Como observam analistas e historiadores, a população de Timor-Leste em 1975, na altura da ocupação indonésia, era aproximadamente 30% católica. Tal como consta do Anuário Estatístico da Igreja Católica, na edição de 1972, Timor-Leste tinha 680 mil habitantes, dos quais 188 mil eram batizados (29,8% da população), um número significativo do ponto de vista histórico e "da história de salvação neste canto do mundo", observa o vigário.

"Se pensarmos que hoje a população timorense é composta por mais de 95% de católicos batizados (de 1,4 milhões de habitantes, mais de 1,3 milhões são católicos), pode-se compreender como, nos anos críticos de opressão, o elemento da fé foi um baluarte, “refúgio e fortaleza”, como diz o salmo. As pessoas simples de Timor-Leste, pessoas de coração aberto, compreenderam facilmente e perceberam intimamente que o Evangelho era o único caminho, a única salvação. Clamaram ao Senhor, confiaram e acreditaram n'Ele nas dificuldades e o Senhor ouviu a nossa oração. No tempo da prova, no tempo do deserto em que viveu o povo timorense como o povo de Israel, o Senhor não nos abandonou e nos conduziu à nossa terra prometida", recorda, relendo em chave salvífica os 25 anos nos quais a população lutou pela liberdade e independência.

Visita ao Timor Leste de dom Edgar Peña Parra, substituto para assuntos gerais da Secretaria de Estado da Santa Sé, em 19/9/2022
Visita ao Timor Leste de dom Edgar Peña Parra, substituto para assuntos gerais da Secretaria de Estado da Santa Sé, em 19/9/2022

O vigário recorda um momento de reviravolta, o dia 25 de novembro de 1991, quando ocorreu o conhecido “massacre de Santa Cruz”, que teve como efeito chamar a atenção da comunidade internacional para Timor-Leste: “Os militares indonésios haviam matado um jovem timorense, Sebastião. Houve grande indignação e comoção. No dia 12 de novembro, depois de participarem da Missa na Igreja de Santo Antônio, na área de Motael, os jovens timorenses organizaram uma manifestação pacífica no centro de Díli, até ao cemitério de Santa Cruz, uma peregrinação ao túmulo de Sebastião. Era uma manifestação em que se levantava forte a voz contra o opressor. Ali ocorreu a tragédia: o exército indonésio abriu fogo contra a multidão indefesa e 200 jovens foram mortos. Aquele acontecimento - graças à corajosa presença do jornalista holandês Max Stahl e a seu vídeo -, chegou aos noticiários internacionais e provocou consternação. Algo mudou na comunidade internacional e nas Nações Unidas, e a frente pró-independência encontrou apoio em nível diplomático". Depois daquele momento de luto e sacrifício, o caminho rumo à independência prosseguiu com maior convicção e rapidez.

Na Igreja timorense, destacavam-se naquele período figuras que permanecem na história e no coração do povo: uma delas foi a de padre Alberto Ricardo da Silva (que mais tarde, em 2004, será nomeado bispo de Díli, ndr.) que, nos tempos da luta de resistência em Timor Leste “procurou proteger muitos jovens, acolhendo-os na sua paróquia de Santo Antônio, em Motael. Era pároco na época do massacre de Santa Cruz, em novembro de 1991. Era um pastor que tinha no coração a justiça e a paz e como pastor procurou sempre proteger e cuidar da vida do seu rebanho”, recorda hoje o vigário.

Depois havia Carlos Felipe Ximenes Belo, bispo salesiano que “falava aos jovens de liberdade, dignidade, direitos humanos e que se tornou uma referência para a população, insistindo na liberdade e na paz para o povo de Timor-Leste".

Quando, em 1996, foi galardoado com o Prêmio Nobel da Paz juntamente com o líder político timorense José Ramos-Horta (atualmente presidente do país, ndr.), estava já na última etapa do caminho e três anos depois, em 1999, a ONU organizou o referendo pela independência que sancionou, com 73% de consenso, o início da nova história nacional de Timor-Leste.

“Nos anos precedentes – acrescenta – não se pode esquecer de padre Martino Da Costa Lopes, que em 1977 foi nomeado vigário apostólico de Díli, diretamente dependente da Santa Sé”. Ele várias vezes denunciou  abertamente as atrocidades cometidas pelo exército indonésio, mesmo em conversações com o ditador Suharto, então no poder na Indonésia. “Pe. Martino foi uma presença importante para mostrar, desde o início, a proximidade da Igreja com a população e o seu foi um papel crucial: na conversa com a então estrela ascendente da resistência e da guerrilha, o líder Xanana Gusmão, Pe. Martino disse profeticamente que, para ter sucesso, o movimento de independência teria que abandonar a ideologia marxista."

Aquela voz ecoou na mente e no coração de Gusmão, que quis ouvi-la: em 1988 Gusmão apresentou um documento político intitulado “Reajuste estrutural da resistência e plano de paz”, com o qual instituía o “Conselho Nacional da Resistência Timorense”, era delineado um futuro de unidade nacional, delineado o rosto de um movimento de resistência unitário e não de parte, era sancionada a dissolução do partido marxista-leninista e a renúncia explícita à ideologia marxista. “Este passo foi decisivo, pois, tendo abandonado o caminho da ideologia, a única referência ideal para a população que lutava pela liberdade era a fé católica”, recorda padre Graciano.

O vigário geral de Díli assim conclui: “Os valores evangélicos que nortearam estes 25 anos, representando a bússola para todos nós, eram: o respeito pela vida que é inviolável e, portanto, a dignidade inalienável de cada pessoa feita à imagem e semelhança de Deus; liberdade da opressão, com a esperança da autodeterminação, na qual sempre acreditamos, com o desejo de construir a nossa história, a nossa pátria, o nosso futuro. Neste caminho pude perceber para mim mesmo, para minha família, para muitas famílias de Timor-Leste, a mão providencial de Deus que se fez presente na história do povo timorense, como na do povo de Israel. Podemos dizer que a fé em Cristo foi um dos componentes essenciais daquele tempo, na nossa história e na nossa cultura, e o é até hoje".

*Agência Fides

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31 julho 2024, 12:56