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Arcebispo de Singapura, cardeal William Goh Seng Chye (Vatican Media) Arcebispo de Singapura, cardeal William Goh Seng Chye (Vatican Media)

Cardeal Goh: magnatas de Singapura também precisam da misericórdia de Cristo

A experiência da misericórdia de Cristo é o inesperado que pode ocorrer de muitas maneiras surpreendentes, mesmo na Cidade-Estado, na corrida para encarnar o sonho da perfeição tecnológica funcional e da coexistência harmoniosa. É o que conta o cardeal Willliam Goh Seng Chye, arcebispo de Singapura, em uma ampla entrevista publicada esta quarta-feira, 11 de setembro, no dia em que o Papa Francisco chegou à nação insular para a quarta e última etapa de sua 45ª viagem Apostólica Internacional

Vatican News

 

Mesmo em Singapura, que há muito tempo está no topo da lista das nações mais ricas do mundo, a proclamação da salvação confiada à Igreja não passa por “discursos de sabedoria humana” (Santo Inácio de Antioquia), mas pelo testemunho de corações pobres apaixonados por Cristo. E a experiência da misericórdia de Cristo é o inesperado que pode ocorrer de muitas maneiras surpreendentes, mesmo na Cidade-Estado, na corrida para encarnar o sonho da perfeição tecnológica funcional e da coexistência harmoniosa. É o que conta o cardeal Willliam Goh Seng Chye, arcebispo de Singapura, em uma ampla entrevista - concedida em inglês - que a agência missionária Fides traz nesta quarta-feira (11/09), no dia em que o Papa Francisco chegou à nação insular, para a quarta e última etapa de sua 45ª Viagem Apostólica Internacional: nessa longa viagem apostólica o bispo de Roma que já visitou a Indonésia, Papua Nova Guiné e Timor-Leste.

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Como a fé em Cristo pode ser comunicada hoje em Singapura? Há algum método especial para comunicar a fé em vossa sociedade?

A primeira coisa que sempre lembro ao nosso povo é que estamos construindo uma Igreja vibrante, evangelizadora e missionária, não uma Igreja de “conservação”. Queremos que os católicos e os agentes eclesiais estejam vivos em sua fé, que se expressa em seu zelo evangelizador e missionário. Mas sem uma fé pessoal em Cristo, se não estivermos apaixonados por Ele, não haverá missão. E como podemos cumprir essa missão? A dimensão mais importante da comunicação da fé em Singapura é levar as pessoas a um encontro pessoal e à conversão em Cristo. Isso se dá se elas experimentarem pessoalmente Seu amor e misericórdia divinos e a vida renovada pela obra do Espírito Santo. As pessoas podem ser levadas a esse encontro pessoal por meio de retiros, cultos vibrantes e celebrações eucarísticas cheias de fé, testemunhando a obra de Deus em suas vidas, compartilhando a Palavra de Deus e envolvendo mais pessoas no ministério em tempo integral na Igreja, sobretudo a geração mais jovem. Ao mesmo tempo, há a necessidade de aumentar o grupo de voluntários, mas não apenas de pessoas dispostas, mas de pessoas que encontraram o Senhor.
Depois, há um grupo importante de pessoas que chamo de “ministério de São Mateus” sobre o qual precisamos trabalhar...

A quem o senhor está se referindo?

Esse é um grupo específico de pessoas que pode ser de grande ajuda para apoiar a Igreja na realização de sua missão: são profissionais influentes, ricos e cheios de recursos. Mas precisamos converter esses “cobradores de impostos” (como era o apóstolo Mateus, ndr), ajudando-os a se apaixonarem por Cristo. Se eles encontrarem Cristo, suas vidas serão radicalmente transformadas e eles oferecerão livremente suas habilidades e recursos para ajudar a missão da Igreja. Sobretudo, depois de terem encontrado o Senhor, eles levarão também outros “cobradores de impostos” a Ele e teremos um grupo crescente de profissionais e amigos influentes que nos ajudarão a entrar em contato com o mundo e a levar o Evangelho a eles. A verdade é que Cristo não veio para os saudáveis, mas para os doentes. Entre os doentes estão também aqueles que são bem-sucedidos no mundo, mas sentem o vazio em suas vidas sem Deus. Eles também precisam ser salvos. Igualmente importante é a necessidade de promover o crescimento de pequenas comunidades cheias de fé, de modo que elas possam se reunir não apenas para fazer coisas pela Igreja, mas também para compartilhar sua fé, sobretudo orando juntas e compartilhando a Palavra de Deus. Devemos fazer de modo que cada membro da comunidade católica possa pertencer a uma pequena comunidade de fé. Dessa forma, ao pertencer a uma comunidade de fé, as pessoas não caminharão sozinhas, mas sempre com o apoio de seus companheiros. Isso é ainda mais importante quando se trata de ajudar nossos jovens a crescer na fé e a se engajar na Igreja. Muitos jovens deixam a Igreja após o sacramento da confirmação, porque não pertencem a nenhuma comunidade de fé na Igreja. É por isso que também devemos tornar a igreja um lugar acolhedor para todos e não colocar obstáculos no caminho daqueles que desejam vir à igreja. Não devemos erguer barreiras e regras que dificultem a ida das pessoas à igreja para adorar ou orar.

Singapura é um dos países mais ricos do mundo. Mas também há pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza....

Além da proclamação explícita da boa nova, nossa Igreja tem duas grandes organizações com mais de 45 grupos afiliados que atendem aos pobres e marginalizados em Singapura e no exterior. Vemos a obra de caridade como um componente importante e essencial do trabalho de evangelização. A Igreja respira com dois pulmões: a dimensão espiritual da fé e a obra de caridade. Se as pessoas não experimentarem concretamente a misericórdia de Deus em suas vidas, nossa proclamação do Evangelho apenas com palavras não poderá mudar vidas. Mas é igualmente importante que nossas organizações de caridade não sejam reduzidas a meras organizações humanitárias ou ONGs. Elas devem estar prontas para proclamar a Boa Nova e se tornar conhecidas como realidades animadas pelos discípulos de Cristo, que, portanto, dão vida às obras de caridade. Isso não significa que nos empenhamos num proselitismo agressivo, mas devemos encontrar oportunidades para compartilhar a Boa Nova de Jesus, e não apenas fornecer ajuda material e temporal aos necessitados, porque eles também precisam do Evangelho para encontrar a salvação para suas almas, e não apenas para seus corpos.

Em vossa cidade hipertecnológica, o trabalho da Igreja também faz uso amplo de novas tecnologias...

 

Embora o melhor meio de evangelização seja o testemunho pessoal de Cristo aos outros por meio de nossas palavras e vidas, também devemos aproveitar os instrumentos da mídia social para nos ajudar a divulgar a Palavra de Deus e compartilhar nossa fé com os outros. Na arquidiocese, a mídia digital da Igreja nos ajuda a nos comunicar com todos os católicos que baixam nosso aplicativo Catholic.sg. Temos o Escritório de Comunicação para comunicar o Evangelho a todos em plataformas impressas, radio-televisivas e digitais. Isso é particularmente importante para a geração mais jovem. Mas as ferramentas continuam sendo ferramentas. Se não tivermos pessoas movidas pela fé, as melhores ferramentas não levarão à verdadeira conversão nem tocarão o coração de ninguém. Precisamos de testemunhas apaixonadas de Cristo como nosso Senhor e Salvador. No trabalho de evangelização, devemos confiar acima de tudo nas orações e em Sua graça, não apenas em técnicas e estratégias ou no trabalho árduo.

Que experiências missionárias foram mais importantes para o nascimento da Igreja em Singapura?

A Igreja é o que é hoje graças a nossos antepassados e aos missionários que trouxeram a fé para Singapura. Temos uma dívida eterna com as Irmãs do Menino Jesus, os Irmãos de La Salle, os Irmãos Gabrielistas, as Irmãs Canossianas e as Missionárias Franciscanas de Maria por oferecerem educação e serviços sociais aos pobres. Também somos gratos à Divina Maternidade Franciscana de Maria, que fundou o primeiro hospital em Singapura. Acima de tudo, a Igreja é o que é hoje graças aos Padres das Missões Estrangeiras de Paris (MEP), que iniciaram a Igreja em Singapura em 1833 com o estabelecimento da primeira capela católica, que mais tarde se tornou a Catedral do Bom Pastor. Sem sua contribuição, seus sacrifícios, sua generosidade e, sobretudo, sua fé, a Igreja não seria o que é hoje. Todos nós somos beneficiários do trabalho dos missionários que nos antecederam, não apenas os católicos, mas todo o país. Foi graças a suas boas obras, seu amor por Cristo e pela salvação das almas, que mais e mais pessoas foram levadas a conhecer Cristo e a serem batizadas. É por isso que agora devemos continuar a fazer o mesmo em Singapura e apoiar aqueles que são chamados a proclamar Cristo também além das costas de Singapura, em gratidão aos nossos missionários estrangeiros.

A harmonia inter-religiosa é vigorosamente garantida e protegida pelas autoridades políticas. Como o senhor vê essa intervenção direta das autoridades políticas nas relações entre as diferentes comunidades religiosas?

Não me sinto confortável com a afirmação de que “a harmonia inter-religiosa é vigorosamente garantida e protegida pelas autoridades políticas”. É verdade que o governo desempenha um papel importante na promoção da harmonia inter-religiosa, mas sugerir que somos controlados ou manipulados pelo governo está longe da verdade. O governo garante que nenhuma religião difame as pessoas de outras religiões. Há liberdade de culto e religião em Singapura e o governo respeita as crenças de todas as religiões, desde que não causem desordens públicas. O governo vê as religiões como parceiras na promoção do bem comum de nosso país. Nós não somos uma ameaça para eles e eles não são uma ameaça para as religiões. Na verdade, o governo deixa claro que Singapura é um país multirracial e multirreligioso com um governo laico. Mas Singapura não é um estado laico! O governo valoriza o papel das religiões e somos gratos ao governo por confiar em nós. Trabalhamos em conjunto com o governo para o bem de nosso povo. A promoção da harmonia inter-religiosa é principalmente o trabalho da Organização inter-religiosa, um órgão privado que reconhece a importância do diálogo. Ela nem mesmo é um órgão estatal. Os líderes religiosos de Singapura são moderados e estão cientes da necessidade de respeitar e promover a harmonia e a compreensão mútua das crenças uns dos outros. Participamos das várias celebrações religiosas uns dos outros. Organizamos fóruns para compartilhar valores comuns e apreciar os credos uns dos outros.
Os líderes religiosos se tornaram amigos uns dos outros; eles se apoiam e se incentivam mutuamente e, às vezes, até se envolvem em trabalhos humanitários. Não consideramos a harmonia racial e religiosa como algo garantido, pois é sempre um trabalho em andamento.

Os conformismos do sistema de mídia global continuam a tratar o cristianismo como a religião do Ocidente. Como esse “estereótipo” é percebido em Singapura?

 

Os singapurianos são muito influenciados pelo Ocidente porque a maioria de nós foi educada em inglês e viveu no exterior em países anglófonos. A geração mais velha, que está passando, pode ter percebido o cristianismo como uma religião do Ocidente. Mas não tenho certeza de que essa seja a percepção geral hoje. O fato de 18,9% da população se identificar como protestante ou católica também revela uma aceitação geral pela maioria das pessoas em Singapura. De fato, os católicos têm feito muito pelo país em termos de educação, medicina e serviços humanitários. Entretanto, não aceitamos uma visão ultra-exclusivista das religiões, embora não neguemos a singularidade de cada religião.

O senhor disse que em Singapura tem problemas pastorais semelhantes aos de muitos países europeus. Quais são eles?

Singapura, sendo uma sociedade altamente instruída, socialmente conectada e sofisticada, rica e altamente influenciada pelo Ocidente, compartilha os problemas dos países de primeiro mundo. Temos que enfrentar os desafios da mídia social, das fake news e de todos os tipos de informações e desinformações que contaminam as mentes dos nossos jovens. A geração mais jovem é muito influenciada pelas opiniões ocidentais sobre relações entre pessoas do mesmo sexo e transgênero. O mesmo se aplica ao divórcio e ao casar-se novamente. Como em muitos países avançados, a geração mais jovem tende a ser mais individualista e egocêntrica, preocupada com sua própria felicidade em vez de com o bem comum mais amplo da sociedade. Eles querem desfrutar de todas as coisas boas da vida. Muitos estão tão concentrados em suas carreiras que não têm tempo para o casamento e, mesmo que se casem, não querem ter o peso de criar filhos. Com a prosperidade, há muita independência e as mulheres não precisam mais se casar para se realizarem na vida. Além disso, com o bem-estar e os altos níveis de instrução, muitos de nossos jovens, tão imersos no mundo da ciência e da tecnologia, experimentando todos os tipos de aventuras, tendem a ver as religiões como antiquadas e até supersticiosas. Tudo se baseia apenas na ciência e na razão. A perspectiva da fé é vista como ingênua. Eles são muito formados pelo mundo da Internet, que lhes fornece tantas informações que os deixa paralisados para assumir qualquer compromisso.

Às vezes, alguém descreve Singapura como uma sociedade “perfeita”, onde todos os problemas são resolvidos e todas as necessidades são atendidas. Mas será que é isso mesmo?

Certamente, não somos uma sociedade “perfeita”, mas tentamos fazer a coisa certa. Temos um governo bom, sensível e inclusivo. O governo é muito respeitado pela população e conquistou a confiança dos cidadãos para fazer a coisa certa e o melhor para Singapura. Ele tenta manter a sociedade unida, com os ricos ajudando as pessoas das classes mais baixas. Há leis rígidas que temos o prazer de cumprir, porque isso é para o bem, a segurança e o bem-estar de nosso povo. Mas, como todos no mundo, lutamos para encontrar a verdadeira felicidade, relacionamentos fortes e afetuosas e, acima de tudo, um significado. Portanto, embora tenhamos paz, harmonia, segurança e uma boa economia, isso não é tudo na vida. Nem só de pão vive o homem. O que nossos jovens buscam hoje não é apenas conforto e prazer, eles querem um significado e um propósito. E é aí que entra a religião. Quando desempenho meu ministério para eles, sempre sugiro uma esperança na vida, uma esperança que seja real, uma esperança que lhes dê a verdadeira felicidade por meio de um encontro com o amor de Deus que sacia seus corações; e então, por sua vez, eles dão suas vidas a serviço da comunidade e dos pobres. De fato, por sermos abastados, as pessoas são muito religiosas porque agora buscam Deus não porque querem favores materiais e temporais, mas porque buscam um significado duradouro, um propósito, um relacionamento, o amor e a alegria na vida. É por isso que Singapura é uma sociedade muito religiosa, com mais de 80% de adeptos de uma religião ou outra. Mesmo entre os 20% que afirmam ser agnósticos, essa definição não significa que sejam ateus, apenas que não pertencem a nenhuma religião ou denominação, embora no fundo de seus corações reconheçam a presença do Sagrado. É aí que temos a oportunidade de evangelizar, compartilhando com eles que Jesus é o Caminho, a Verdade e a Vida. Somente Jesus pode lhes dar a verdadeira segurança, um sentido e um propósito.

Quais são os acentos do magistério e da pregação do Papa Francisco que mais tocam o coração das pessoas em Singapura?

 

O Papa Francisco é altamente respeitado e considerado um homem de Deus por muitos singapurianos, mesmo entre os não católicos, por sua visão de promover a harmonia no mundo, entre as religiões e o respeito pela Criação por meio do diálogo. É a sua mensagem de misericórdia, compaixão e inclusão que conquista o coração de muitos, sejam eles pessoas com orientação homossexual, transgêneros, etc. Ele demonstra apreço pela contribuição das mulheres e dos idosos. Ele defende os marginalizados, os pobres, os que não têm voz, os migrantes e os que sofrem com as guerras. Ele se aproxima das comunidades religiosas não cristãs, promove o diálogo inter-religioso e o respeito mútuo. Ele mostra ao mundo que o catolicismo é realmente uma religião universal, porque abraça a todos e respeita a todos sem exceção, independentemente de raça, idioma, cultura ou religião. Dentro da Igreja, ele iniciou muitas reformas, transformando-a em uma verdadeira Igreja evangelizadora, com leigos e clérigos corresponsáveis pela missão. Ele uniu a Igreja, pedindo que ela fosse sinodal em todos os níveis da vida eclesial, caminhando juntos no Espírito, ouvindo e discernindo juntos como Igreja. Ele realmente representa o rosto de Cristo, compassivo e amoroso para com todos.

(Fides)

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11 setembro 2024, 15:00