Cristãos sírios rezam em igreja de Maaloula, 55 km de Damasco, em 15 de dezembro de 2024. Cristãos sírios rezam em igreja de Maaloula, 55 km de Damasco, em 15 de dezembro de 2024.  (ANSA)

Na Síria, a esperança de um futuro “plural”

O sacerdote jesuíta Vincent de Beaucoudrey, diretor do JRS, o Serviço Jesuíta para os Refugiados para a Síria, estabelecido no país há vários anos em Homs, depois em Damasco, é uma testemunha direta das mudanças que estão ocorrendo no país.

Entrevista conduzida por Jean-Charles Putzolu – Cidade do Vaticano

É para Damasco que vamos, poucos dias depois da queda do regime e da fuga do presidente Bashar El-Assad. Cenas de júbilo dão lugar gradualmente ao regresso à vida normal, à medida que as novas autoridades assumem o poder procuram tranquilizar em relação às suas intenções e sobre o futuro do país. Apesar de uma história intimamente ligada ao islamismo radical, Abu Mohammad al-Jolani, líder dos rebeldes do grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTC), e novo homem forte do país, afirma querer construir uma Síria "plural", em onde todas as comunidades terão o seu lugar.

Depois de passar vários anos em Homs, onde o Vatican News o conheceu durante uma reportagem em 2021, o padre jesuíta Vincent de Beaucoudrey está hoje na capital Damasco onde dirige a secção síria do JRS (Jesuit Refugee Service), o Serviço Jesuíta para os Refugiados. Ele testemunha as primeiras horas desta nova Síria que emerge, em meio a esperanças e incertezas.

Padre Vincent de Beaucoudrey, nos conhecemos há três anos em Homs, em um outro contexto. À luz dos recentes acontecimentos em toda a Síria e à sua presença agora em Damasco, quais diferenças  que o senhor percebe?

Existem muitas grandes diferenças. E também, no fundo, há muitos pontos em comum, obviamente. Politicamente, não tem nada a ver. As ansiedades não são as mesmas. Mas permanece o fato de que o país está no chão, de que a economia está no chão, de que muitas pessoas partiram. Sim, hoje estamos em uma grande incerteza. Isto é o que caracteriza a Síria de hoje: a incerteza, o fato de todos os dias sermos forçados a mudar o nosso programa, de não sabermos o que o amanhã nos reserva. Tudo mudou em dez dias. E assim, esta incerteza pode gerar esperanças; pode provocar uma certa alegria, porque há coisas que mudam e queríamos que mudassem; mas também provoca medos.

 

Ao seu redor, os sírios que encontras diariamente se expressaram com mais liberdade nos últimos dias?

Sim, existem assuntos sobre os quais as pessoas se expressam com mais liberdade. Agora podemos falar de Sednaya (centro prisional onde estavam encarcerados os presos políticos do regime, ndr). Podemos falar sobre recrutamento militar. Podemos rir, obviamente, mas rir mesmo assim, dos excessos policiais do regime que caiu. E há outras coisas que permanecem complicadas. Continua complicado falar sobre como ser tão diferentes e formar um povo junto. Continua complicado abordar as diferenças religiosas… Um pouco como antes.

Justamente, estas diferenças religiosas... Há muitas comunidades na Síria, os cristãso, obviamente, e muitos cristãos partiram. Alguns poderão tentar regressar, como muitos sírios têm feito nos últimos dias. Mas temos hoje a garantia, ou o início da garantia, de que os cristãos poderão, por exemplo, dentro de alguns dias, celebrar o Natal com serenidade?

Sim, estamos falando de pouco tempo, acho que podemos dizer que sim. O que as novas autoridades estão dizendo é que querem formar uma Síria com os cristãos e que cada um tenha o seu lugar. Em Aleppo, onde já estão empossados há dez dias, permitiram decorações de Natal nas igrejas, nas fachadas, etc. Então, em um curto prazo, sim. A ansiedade é em relação ao longo prazo, no rumo que o país tomará. Esta ansiedade existe porque o país ainda não está estabilizado. Mas sobre o fato de podermos celebrar o Natal, temos sinais que dizem que sim.

Hoje, na sua opinião, há mais motivos para ter esperança do que motivos para se preocupar?

Eu não tenho muita certeza. Mas somos cristãos e por isso o jogo é apostar na esperança. Se colocarmos tudo friamente diante de nós em um pedaço de papel, ainda não está ganho. Mas não é disso que se trata a esperança.

Padre Vincent, há três anos, quando nos conhecemos em Homs, o senhor me disse que quando os jovens iam vê-lo, não tinhas nada a oferecer-lhes para ficarem. Terias a mesma atitude hoje em relação a eles?

Nunca os aconselhei a irem embora, mas nunca lhes disse para não irem embora. Quem sou eu para decidir por eles? E estou fazendo a mesma coisa hoje. Espero que as mudanças que vimos nas últimas semanas possam fazer com que não queiram partir. Mas ainda é um pouco cedo para eles.

Um padre lidera uma missa na igreja em Maaloula, a cerca de 55 km de Damasco, Síria, 15 de dezembro de 2024. A cidade de Maaloula, onde o aramaico ainda é falado, é um dos primeiros centros do cristianismo no mundo. Os cristãos representam cerca de 10 por cento da população da Síria, com os muçulmanos sendo a vasta maioria. EPA/ANTONIO PEDRO SANTOS
Um padre lidera uma missa na igreja em Maaloula, a cerca de 55 km de Damasco, Síria, 15 de dezembro de 2024. A cidade de Maaloula, onde o aramaico ainda é falado, é um dos primeiros centros do cristianismo no mundo. Os cristãos representam cerca de 10 por cento da população da Síria, com os muçulmanos sendo a vasta maioria. EPA/ANTONIO PEDRO SANTOS

O senhor encontro pessoas que regressaram, refugiados que voltaram e regressaram a Damasco?

As equipes que cuido sim, mas são pessoas que não vêm de longe. Chegam do Líbano ou da Turquia, onde estavam muito mal instalados em campos. Estavam em situações em que, de fato, não podiam regressar por razões políticas, mas não tinham construído uma vida noutro lugar.

Hoje, podemos esperar que, se as sanções internacionais forem levantadas, o país possa começar a reconstruir? Ou é que esta reconstrução deve ser feita com este peso de punição da comunidade internacional?

A comunidade internacional entristece-me um pouco, porque anuncia que o regresso dos refugiados já não é um problema antes do levantamento das sanções e antes da criação de embaixadas na Síria. Se ela considera que o país é seguro, deve trazer de volta as suas embaixadas, criar laços, conhecer-se, levantar sanções e só então dizer que os refugiados podem ou devem regressar. Essa é a primeira coisa. A segunda é que o levantamento das sanções é, de fato, um passo de que temos necessidade. Precisamos também que as pessoas invistam, não só por meio da ajuda humanitária, mas também por investimentos comerciais, investimentos para relançar a indústria e o comércio sírios. Visto daqui, é chocante ver que os países estão erguendo muros antes de abrirem embaixadas e antes de removerem sanções.

Gostaria de voltar ao elevado preço pago pelos cristãos. Muitos caíram sob o domínio islâmico. O sacrifício dos cristãos foi em vão ou não?

Não. Ele é daqueles que dizem: “Estamos aqui e somos o sal da terra”, então não foi em vão. E não se trata de calcular se era melhor ficar ou partir. É uma vida doada. E isso, você vê, não vai desaparecer.

Qual é o seu sentimento pessoal hoje, depois de ter retornado a Damasco há alguns meses?

O meu sentimento pessoal é tentar acolher o medo e a preocupação de amanhã e vivê-los com as pessoas, por vezes aterrorizadas, inclusive pelos bombardeamentos israelenses que, até recentemente, eram muito pesados. Ao mesmo tempo, penso que devemos apostar que é possível, levando a sério os novos líderes, apesar da história e apesar da abordagem islâmica, que dizem querer viver numa Síria plural, que possamos fazê-lo juntos. Vamos levar isso a sério. Vamos tentar.

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16 dezembro 2024, 13:06