Cooperativismo jesuítico-guarani, uma semente de fraternidade
Jackson Erpen – Cidade do Vaticano
“Eles eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações. Apossava-se de todos o temor, e pelos apóstolos realizavam-se numerosos prodígios e sinais. Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e possuíam tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um. Perseverantes e bem unidos, frequentavam diariamente o templo, partiam o pão pelas casas e tomavam a refeição com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e eram estimados por todo o povo. E, cada dia, o Senhor acrescentava a seu número mais pessoas que eram salvas.” (Atos 2, 42-47)
A vivência das primeiras comunidades cristãs é referência até os dias de hoje para a vida na Igreja, em particular para as Ordens religiosas, Congregações e novas comunidades, mas também foi fonte de inspiração para outras experiências ao longo da história.
De fato, não faltaram na humanidade experiências, não propriamente religiosas, que almejavam uma sociedade, se não ideal, ao menos com relações mais fraternas em todos os níveis entre seus membros. Algo do gênero foi expresso por exemplo, na obra “Utopia” de Tomas Morus ou “A Nova Atlântida” de Francis Bacon.
No mesmo sentido o Cooperativismo, surgido oficialmente em 1844 em Manchester, Inglaterra, com a criação da Rochdale Society of Equitable Pioneers (Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale), com uma proposta diferenciada especialmente para as relações de trabalho. O contexto era o da Revolução Industrial, que foi responsável por grandes transformações no processo produtivo e nas relações de trabalho, promovendo o surgimento da indústria e consolidando o processo da formação do capitalismo.
Cada vez mais autores, no entanto, a exemplo de George Holyoake, defendem que a experiência cooperativista é bem anterior, tendo sido praticada já nas Reduções Jesuítico-guaranis da América do Sul nos séculos XVII e XVIII, tese esta corroborada pelo estudioso gaúcho José Roberto de Oliveira*, que a define como “Cooperativismo cristão”.
Na entrevista ao Vatican News, o historiador e pesquisador santo-angelense fala da organização nas Reduções e das relações de trabalho, sempre marcadas pela “colaboração e cooperação”, aonde todos trabalhavam para um projeto, uma ideia, uma produção comum. Era uma organização inspirada na fé e marcada pela ideia da união e integração entre os membros da comunidade - e entre as comunidades - e a ajuda recíproca.
Essa organização cooperativada do trabalho e das relações nas Reduções era baseada na essência do mundo guarani - que “é uma essência de união dentro de suas aldeias”, que “funcionavam em um modelo extremamente coletivo” - unida à experiência dos jesuítas levada da Europa ao Novo Mundo. O resultado foi um grande desenvolvimento daquelas comunidades. Basta recordar a primeira fundição de aço da América do Sul na Redução de São João Batista, a exportação de produtos agrícolas, manufaturados e instrumentos musicais para todo o continente e para a Europa.
Mas não só o trabalho e a produção marcavam a vida dessas comunidades, mas também o conhecimento, a educação. "Desde os meninos, os jovens", todos tinham que estudar, exatamente "porque era fundamental o processo de desenvolvimento Reducional", pontua José Roberto.
Questionado, o pesquisador foi enfático em defender o trabalho dos jesuítas e o sistema de Reduções como “uma via possível” aos indígenas “de não serem escravizados no modelo bandeirante (luso-brasileiro) ou das encomendas (espanhol)”.
Ao final de sua entrevista, o convite para que seja conhecida essa “experiência cristã, fundamental para o mundo que se construiu e que temos hoje, e que se Deus quiser, teremos no futuro um mundo mais irmão, mais fraterno, mais igualitário”:
Quando escrevi o livro “Pedido de perdão, triunfo da humanidade”, que é um livro sobre as Missões, um dos temas abordados foi exatamente esse do comparativismo que ocorreu nas Missões entre os anos 1600 e anos 1700. Dentro da herança social e econômica que ocorreu aqui nas Missões, é fundamental a gente estudar e aprofundar essa relação. Nós tivemos alguns textos agora no início do anos 2000, especialmente o Vergílio Périus, que é presidente das Cooperativas do Estado do Rio Grande do Sul - tem uma organização importante atrás - ele defende as ideias do estudioso jesuíta Rafael Carbonell de Masy e que é chegada a hora de contar a verdadeira história do início do cooperativismo no mundo. E ele defende, então, com bastante clareza, essas ideias de que no início da formação do período jesuítico-guarani – cerca de 1626-27 - se dá o início do processo de formação do cooperativismo no mundo.
Era um trabalho coletivo dos povos missioneiros, aonde jesuítas e indígenas guaranis, através do seu centro da formação histórica e cultural dos guaranis, aonde há união, fraternidade, a ideia da ajuda mútua – que talvez não se use em muitos outros lugares essa expressão, mas é o “mutirão” exatamente a ajuda mútua - é a ideia que passou para esse mundo nativo e depois para a América Latina, a ideia do mutirão, aonde todos colaboram para um projeto comum, para uma ideia comum, para uma produção comum. Daí então, lá daquele período, inicia esse processo importante que é a ideia da cooperação e da integração. E veja que essa ideia fundamental de cristãos colaborando para projetos comuns, vem muito do centro da ideia do cristianismo, que é essa ideia de todos colaborarem para que tenhamos um processo comum, um projeto andando como sociedade, como família também, também como indivíduos, e num mundo com tantas necessidades como nós temos hoje, é uma saída bastante importante, distante da ideia digamos, de um capitalismo, ou lá de outro lado de um socialismo, exatamente no meio disso, ocupando o que tem de bom dos dois lados, a ideia da cooperação, a ideia do cooperativismo, então buscando aquelas ideias que uniram todo aquele processo da chegada do jesuítas - a partir especialmente de 1585, aqui nessa macrorregião, construindo naquele início, a partir de 1609 as Reduções – então vem o centro dessa ideia de que aqueles 159 anos da presença e da união entre jesuítas e guaranis, ali se forma uma ideia inicial e bastante abrangente do que foi aquele cooperativismo cristão na América.
Como era a organização social e como se davam as relações de produção de trabalho nas Reduções Jesuíticas e se essa experiência cooperativista nas Reduções era mais devida à própria organização dos guaranis ou foi preponderantemente ligada à experiência de fé levada pelos jesuítas?
Veja que o processo de cooperação que ocorreu naquele período, é um processo ligado à vários setores da formação das comunidades jesuítico-guaranis, desde os princípios básicos de como todo o processo da produção, ele era organizado e contabilizado. Começa dessas ideias da organização do processo, de como se estabeleciam, por exemplo, a formação das lavouras, do momento onde toda aquela produção era guardada nos armazéns comunais, então todo o método sempre é um método de colaboração e cooperação. As próprias atividades, por exemplo, de infraestrutura, de criação, de grandes meios de produção, e toda infraestrutura, desde as casas, o processo de construção de igrejas, de colégios, ou seja, o conjunto todo sempre tem a ideia fundamental da cooperação.
Tem uma frase fundamental, digamos, daquele período: “Dê cada um de acordo com as suas capacidades, para cada um segundo suas necessidades”. Essa frase, ela coloca muito, digamos, o centro da ideia que fazia com que aquela máquina toda funcionasse perfeitamente. Então cada grupo familiar, cada cidadão, dentro daquele conjunto, colaborava com a capacidade que ele tinha. Uns eram especialistas na área da pecuária, outros da agricultura, outros por exemplo na indústria, fundidores, e tantos outros produtores de instrumentos musicais, cada um de acordo com a sua índole, de acordo com a sua capacidade. E depois, no retorno para as famílias, para cada um segundo as suas necessidades. Havia famílias maiores, menores. Então isso tudo se estabelecia de acordo com aquela estrutura existente e com as necessidades de cada um. Por exemplo, essas atividades todas de consumo. Então imagina, por exemplo, a distribuição diária da produção que se dava por toda a Redução. Desde, por exemplo, a organização dos serviços de transporte, o conjunto da organização dos trabalhos. Imagina por exemplo uma Redução maior, como São Miguel, que tinha entre sete e oito mil pessoas, como organizar diariamente toda essa produção, de homens, mulheres, jovens, cada um dentro do seu setor.
Porque a gente não pode nunca esquecer o que foram as Missões. Então, foram um grande processo de exportação, de produção e de exportação, por exemplo a produção de mate, fumo, algodão, açúcar, tecidos de algodão, bordados, rendas, objetos, por exemplo, de torno, mesas, baús, madeiras, preciosas, né, que eram então feitas as esculturas e todo tipo de produção a partir disso. Na outra área peles, curtumes, arreios de couro, rosários, escapulários, frutas de todo o tipo, a produção por exemplo, animal/pecuária: cavalos, mulas, carneiros, e excedentes também de várias indústrias que tinham em cada Redução. Como a indústria, por exemplo, de instrumentos musicais, que muitos instrumentos as orquestras europeias trocaram com os instrumentos aqui das Missões, ali nos anos 1700, especialmente. Tudo era vendido para a Europa, Buenos Aires, Corrientes, Santa Fé, Lima, ou seja, era um grande estado de produção também. E veja, que todo esse processo era um processo de organização cooperativada, Cooper, onde todos cooperavam para todos esses processos. Os próprios serviços sociais, o cuidar das pessoas.
Por exemplo, quando você pensa em um local como “cotiguaçu”, que está dentro de cada Redução Jesuítica, dentro das 30 Reduções havia um local chamado “cotiguaçu”, que é o quê? [Era o local] aonde toda a comunidade cuidava das viúvas, dos órfãos, daqueles que tinham necessidade, havia todo um processo de produção. O Tupambaé, que é a produção de Deus, aonde toda a comunidade produzia e obviamente resolvia suas questões internas, colaborava com as suas questões sociais. Então havia um grande modelo de cooperação geral. Os próprios serviços educacionais, por exemplo, também a mesma questão, o mesmo modelo, sempre de cooperação, aonde desde os meninos, os jovens, então todos tinham que estudar, exatamente porque era fundamental o processo de desenvolvimento Reducional, através do conhecimento.
Os serviços habitacionais, da mesma forma, as construções das casas, não se davam a casa de João, do Pedro, do Antônio, não era um processo individual, era um processo coletivo, aonde todos colaboravam com o todo, e aquele todo, então, ele ia multiplicando aqueles serviços, por exemplo, o serviço habitacional. E assim, então, a produção industrial, a agropecuária, o conjunto todo, sempre se dava no modelo de ajuda mútua, nesse modelo de mutirão, aonde todos cuidavam do conjunto, para que esse conjunto crescesse, se desenvolvesse e produzisse os bens de serviços. A gente nunca pode esquecer, que toda a produção era orientada para a satisfação das necessidades de todo. As pessoas, então, tinham suas necessidades internas, mas obviamente tinham também essa questão da visão do mercado, o que que estava se consumindo, né? Então, por exemplo, tem textos lindos, por exemplo, aqui em Santo Ângelo, a Redução de San Ángel Custodio, a produção aqui foi o grande produtor de erva-mate daquele momento do mundo, porque os grandes ervais estavam muito próximos da Redução de Santo Ângelo Custódio, então a erva-mate produzida aqui, então ela era - muitos dos nossos nativos colhiam essa erva, traziam para o processo industrial aqui e ela era vendida para vários lugares. Tem um texto que mostra, por exemplo, 70-80 carretas levando erva-mate até Lima, no Peru. Imagina, entre ida e vinda, uma viagem praticamente de um ano. Então, toda a circunstância, tudo era num processo de união, de integração. Por exemplo, a questão da propriedade, todo solo pertencia ao conjunto da comunidade, não havia um processo individualista, onde um era dono de um pedaço de terra. O conjunto todo trabalhava nesse processo de colaboração mútua, isso é muito importante e que mostra a essência do cooperativismo, a essência da cooperação como elemento fundamental de produção, distribuição e de organização do sistema.
O que poderia nos levar a pensar que não haveria então um salário, uma remuneração por um trabalho, mas todos trabalhariam de uma forma comum e aquilo que fosse vendido, ou não sei se havia um sistema de troca também seria para o sustento da comunidade, é isso?
Perfeitamente, exatamente isso. E aí vem a tua segunda pergunta. Como era o mundo, afinal de contas, como é que isso conseguiu subsistir ou existir naquele período. A êssencia do mundo guarani é uma essência de união dentro de suas aldeias. As aldeias funcionam em um modelo extremamente coletivo, os guaranis têm como essência a colaboração, a ajuda mútua entre os seus seres. Por exemplo, aqueles que são caçadores, outros são pescadores, os outros são produtores, agricultores. Claro, é uma agricultura de pequeno porte, digamos, no mundo nativo, mas que todos trabalham para que o conjunto todo funcione. Por exemplo, ainda hoje nas aldeias. Por exemplo, se alguém vai pescar e pega muitos peixes, ou o que ele consegue pegar de peixe, ele volta e divide entre as famílias da sua aldeia, isso ainda hoje. Por quê? Porque eles não têm essa ideia do guardar, de que eu tenho que ficar guardando muita coisa para depois, ou essa ideia nossa bem eurocêntrica de que temos que poupar, e ter, digamos, o nosso bem, essa coisa do dinheiro. Então no mundo nativo, daquele período dos anos 1600, isso estava muito presente dentro do processo. Então como isso tudo pode funcionar do jeito que funcionou?
Vamos pegar um exemplo: o Antônio Sepp von Rechegg. Quem é esse jesuíta? Ele é um príncipe, na verdade, ele é o filho do rei do Condado de Kaltern, onde era a Áustria. Então esse jesuíta, foi menino cantor de Viena, o pai dele era um industrial dessa região aí da Europa, era um produtor de fundidos, conhecia tudo sobre fundição, sobre produção de instrumentos musicais, ele foi um Menino Cantor de Viena, aí na Áustria. Então ele foi um grande maestro, um grande conhecedor de todos os processos que Europa trazia para aquele tempo de 1680-70-90, que é o período que ele chega aqui. Então ele traz todo aquele conhecimento das principais universidades europeias para cá, e traz um processo obviamente de industrialização, de musicalidade, de produção de instrumentos, de fundição, tanto que aqui em São João Batista, que é a Redução que ele fundou, é a primeira fundição de aço da América. Então veja, como pode então, porque isso é muito importante essa tua pergunta, como pode então um mundo do neolítico em pouquíssimo tempo se transformar em que tinha de melhor no barroco e na produção europeia daquele período, através de um processo de compreensão, de união, de integração e da palavra completa de “cooperação”, que é isso, que é a ideia central do que hoje nós estamos levantando, que o cooperativismo inicia lá naquele período, nessa união entre o mundo muito coaborativo dos guaranis – que milenarmente o faziam - com esse mundo novo que chega da Europa, através dos jesuítas, e que por um milagre ocorre esse processo de união entre essas duas culturas e que conseguiu durante 159 anos, se manter muito forte, muito ativo, exportativo, um estado de produção muito importante.
Uma outra coisa importante, que a gente normalmente não diz, é sempre importante pensar, que por exemplo, quando ocorreu a finalização do projeto, que é através da expulsão dos jesuítas, muitos daquelas famílias dos guaranis já estavam com 159, com – os que menos tinham tempo de cristãos - 130 anos de cristãos, aquelas famílias. Então aquela ideia que nós ainda hoje - eu vejo em muitas pessoas, em muitos textos do mundo, ou às vezes até em desenhos, e que estavam os índios ali sem roupa, de arco e flecha somente. Não! Veja que uma comunidade que já tinha quase sempre 160 anos de cristãos, já estava num estágio muito mais adiantado de, entre aspas, vamos dizer assim “civilidade” e não uma ideia de um mundo nativo, ainda de mato, com gente caçando. Então esses tantos anos de produção e de organização, de sistema cooperativo, já estava no mundo muito mais adiantado, tanto que, depois da expulsão dos jesuítas, essas mesmas famílias, esses mesmos guaranis, vão se mesclar com a comunidade nova que começava a chegar, do mundo luso-brasileiro, português aqui, ali na Argentina o mundo espanhol, argentino, e mesma coisa no Paraguai, e esses guaranis vão rapidamente se mesclando com aquelas novas etnias que foram chegando, e vão se transformando nesse povo da América Latina que nós temos hoje.
Aqui do lado brasileiro, um pouco mais luso, mas ali na Argentina, um pouco mais espanholado, como no Paraguai, mas sempre guardando os rostos, esse modelo de mutirão, de cooperação, e que está tão vivo ainda nessas regiões missioneiras dos 30 Povos, Brasil Argentina e Paraguai. Tanto que esses turistas que nos visitam hoje, um dos elementos que eles mais falam, é desse jeito da sociedade daqui, como ela trata as pessoas, como ela é cooperadora com as pessoas. Nós temos caminhadas de 30 dias, que unem esse conjunto todo dos 30 Povos, então quando esses turistas estão passando por aqui, todos dizem isso. Ontem mesmo, havia uma caminhada, e as pessoas estavam entregando bergamotas para as pessoas que estavam caminhando, levavam até o local aonde as pessoas estavam na estrada, onde elas passam, demonstrando que esse modelo de cooperação, de união, aonde isso ainda tá vivo nos dias de hoje! Porque obviamente essas milenaridades do passado, se a gente pensar em 8.000, 10.000 anos atrás, isso não morre por causa de 300 e 400 anos. Então esse modelo ainda está muito vivo na sociedade atual e nessa região da América, o que é muito interessante para estudar, a antropologia ainda viva, reflexo daquele processo, daquele período.
Nós somos gerações e gerações pós-Revolução Industrial que teve início na Inglaterra na segunda metade do século XVIII. O cooperativismo entre nós envolve uma gama de atividades. Como se poderia fazer um gancho do modelo atual com esse cooperativismo que era praticado nas Missões jesuíticas?
Para você ter ideia desse movimento todo, então a gente tem todo aquele reconhecimento de 1844, Rochdale, na Inglaterra, aonde se diz como o início, esse reconhecido especialmente pelo mundo ocidental, europeu. E essa visão que agora que vários estudiosos estão trabalhando, de que a ideia seja lá 1626-1627 o início do processo, agora aparece um estudioso, muito interessante, que é Holyoake, que tem uma obra sobre Rochdale, e que diz que os documentos iniciais na Inglaterra, a base disso, usava um termo chamado “colônias indígenas” para aquele processo do início do processo do cooperativismo na Inglaterra. O que significa dizer, que no mínimo eles tinham noção da experiência sul-americana lá de 1626-1627. Então veja como é importante. E obviamente que aquele processo então, ele vem se integrando, e quanto mais o capital social que é esse caldo de união existente nas comunidades, mais esse processo todo do cooperativismo, ele se faz na humanidade.
Nós aqui na América Latina, temos grandes experiências. Por exemplo no Paraguai - nós aqui estamos muito pertinho, de onde Santo Ângelo, em linha reta, 80 km, já chegamos no Rio Uruguai, mais 80 km passamos a Argentina, ali em Missiones, aí estamos no Paraguai, ou seja, os 30 Povos aqui é tudo muito pertinho. Então as experiências nossas do lado de cá, com relação, por exemplo, ao trigo – que foram as cooperativas que iniciaram, as Cooperativas Tritícolas, então iniciaram aqui nessa região, na Argentina todas as ligadas especialmente à produção de erva-mate, que ali continua muito forte, no Paraguai, um conjunto importante de cooperativas ligadas a todos os setores, como nós no Brasil todo, na área de serviços, desde essa questão toda relacionada ao meio ambiente e tudo mais. Então esse processo todo do cooperativismo, ele traz a chance, especialmente às famílias de menos condições econômicas, importantes, ele traz essa condição de que une esse conjunto de famílias ou pessoas e consegue constituir daí um capital econômico, às vezes de mão-de-obra, que pode transformar a vida tanto local como a vida daquelas famílias.
Então é para determinados lugares, é uma receita fundamental, tanto que hoje tem vários trabalhos, por exemplo de gente da América, trabalhando por exemplo na África, e em outros lugares do mundo, na tentativa de erguer o maior número de cooperativas possíveis, porquê? Porque ali é o momento de unir toda aquela comunidade, tem toda essa relação da educação que o cooperativismo sempre trabalhou também, e veja que a educação não é só das letras, é dos fazeres também. E nas Missões, se a gente voltar para trás, a educação dos fazeres. Imagina, por exemplo, você tirar alguém do Neolítico, da Idade da Pedra Polida, e colocar ele em algum tempo muito rápido, por exemplo de ser um fundidor de sinos, de ser um fundidor para a produção de materiais de aço, por exemplo, para a marcenaria, para todo tipo de produto necessário, digamos, em processos industriais. Então veja que que é um salto magnífico e exatamente essa união, ainda hoje pode ser repetida.
Eu escrevi um artigo científico que fala das experiências utópicas no território fronteiriço do Mercosul. E esse artigo mostra exatamente isso, que há um conhecimento ensinamento, há um caldo importante de união ainda presente nessas comunidades da América Latina. E se você pensar no conjunto da América Latina, essa possibilidade está dada, porque a essência nativa é uma essência de colaboração, de união, de ajuda mútua. Então isso é fundamental para o processo e para qualquer ideia de cooperativismo. Claro, tem coisas mais modernas hoje, por exemplo ligadas a essa questão de internet, essas questões digamos mais hodiernas. Então o cooperativismo ele pode ser usado, utilizado para o desenvolvimento da sociedade. Então para o desenvolvimento econômico e social. Não há dúvida de que o cooperativismo pode ser uma base sustentável e fundamental no desenvolvimento da sociedade nova que nós sonhamos, com união e integração.
Essa “experiência” vivida no sul da América do Sul, das Reduções jesuítico-guaranis, foi um sonho que acabou sendo destruído pelo conflito de interesses entre as Coroas portuguesa e espanhola. Há vozes que dizem que haveria por parte dos próprios jesuítas, não de maneira geral, escravização de indígenas dentro das Reduções. O que você poderia dizer sobre esse tipo de observação, que vem inclusive de alguns antropólogos?
Veja, tu tens razão, todavia, eu sou um defensor do processo histórico cultural que aconteceu aqui. A história ela é inexorável! Em 1629 em diante, os luso-brasileiros, os bandeirantes especialmente, buscaram os índios guaranis como escravos. Todo mundo sabe disso, apesar de que, por exemplo no Brasil, o bandeirantismo é louvado como o “grande herói pátrio”. Mas veja, só eles, os bandeirantes, naquele período entre 1629 e 1645, eles mataram 600 mil guaranis. 300 mil levando como escravos e depois na maioria deles dava uma tristeza, o Banzo que os negros chamam, morriam de tristeza ali em São Paulo, Rio, na região de São Vicente. Nos ataques, mas 300 mil foram mortos, ou seja, então 600 mil foram mortos naquele período, isso no mundo luso-brasileiro. No mundo espanhol, os índios eram encomendados, os seja, las encomiendas. O que é isso? Quando você ganhava um conjunto de terra, eram grandes áreas, duas, três, quatro, cinco, seis sesmarias ou seja, multiplica por 8.600 hectares qualquer um desses números, então dentro dessa área, no mundo espanhol, havia obviamente indígenas que viviam milenarmente naquele lugar ali, famílias, aldeias. Então esses indígenas eram encomendados, ou seja, era uma espécie de escravidão, mas no mundo espanhol era proibido se falar e dizer que você tinha escravos. Eram escravos também, todo mundo sabe disso. Por quê? Porque eram obrigados a dar tantos dias de serviço ao dono da terra, ao novo dono da terra que ganhou do governo espanhol. Veja que os guaranis reduzidos eles tinham uma terceira hipótese.
Quer dizer, a primeira hipótese, ou você era encomendado, do mundo espanhol, ou era escravo do mundo português - porque eles buscavam os guaranis, porque eles eram os únicos agricultores nessas terras planas da América, no Sul América do Sul. Então os guaranis plantavam milenarmente batata-doce, amendoim, mandioca, toda sua produção, que era o normal deles, eles eram agricultores, eram seminômades, é verdade, mas eram agricultores. Então eles precisavam muito de mão de obra, tanto no mundo espanhol como no mundo luso-brasileiro.
Então veja que havia uma escolha livre. O cooperativismo exige isso, que as pessoas escolham livremente estar naquele processo, isso é elemento central do cooperativismo. Então veja que eles ficavam nas Reduções jesuíticas exatamente porque não queriam ser escravizados. E o que eu chamo de inexorável? Inexorável é isso, havia três hipóteses: ou ser escravo, ou ser encomendado ou ficar nas Reduções. Claro, que alguns índios ficaram na selva, como por exemplo os mbiás [Mbyá, M'byá, Guarani Mbya, Mbyá-Guarani ou embiás] que hoje estão mais perto das cidades, foram terminando essas grandes áreas de florestas, e os mbiás hoje estão presentes, como estão aqui na região. Mas os guaranis que foram cristianizados não foram os mbiás, foram outras tradições guaranis. Então centralmente é isso.
Mas veja que o modelo de cooperação, ele exige que as pessoas deem isso, cada um de acordo com sua capacidade. Então, veja que o modelo que se trabalhou foi um modelo de cooperação. E a história é inexorável. Ajudaram, colaboraram, fizeram, por exemplo os jesuítas mais importantes dentro da Igreja, naquele período dos anos 1600-1700? Sim! Agora ocorreu um grande desenvolvimento em termos de tecnologia, de educação, de conhecimento para essas famílias? Também sim! Então buenas, vamos dizer, cada um que vê, olha com os seus olhos. Talvez um antropólogo dissesse: ‘Ah! Os jesuítas nunca podiam ter cristianizado os guaranis!’ Mas veja, que a história é inexorável. A vinda deles para a América, vem exatamente nessa linha do desenvolvimento do cristianismo, do conhecimento, da educação, do processo da industrialização que é o centro dos jesuítas, que é isso, um cristão dos fazeres, não é um cristão do rezar. Claro que reza também, mas é acima de tudo um cristão que faz coisas, que desenvolve econômica e socialmente aquela sociedade. E este processo é o processo que se deu. Então é possível que alguém olhe com esses olhos que a tua pergunta fez, é possível, mas essa pessoa esquece o inexorável processo histórico daquele passado, daqueles anos 1600-1700, quem sabe um pouquinho até antes, os 1585 em diante. Então é muito importante e hoje eu vejo que a sociedade analisa isso, mas eu faço essa minha fala nesse sentido, de que é importantíssimo que não se veja simplesmente com os olhos simplesmente de 2021, mas que se olhe com os olhos daquele 1585, do 1609 ou do 1700. Como era a sociedade e como eram as exigências tanto do rei de Espanha como do reinado de Portugal. Como eles exigiam...
Quer dizer, essa data é inexorável, porque a partir disso os europeus, como todo mundo sabe, exigiam que se retirasse, se encontrasse nestas terras as riquezas, as que haviam: prata, ouro, pedras preciosas – especialmente esses três elementos – mas quando não tinha isso nas terras, se exigia produção. Então, se algo é inexorável é a história que ocorreu e que foi efetivamente a que ocorreu, e com todas as lutas e com todos os heróis que sucederam neste período todo e com o povo que está aqui vivo hoje na América Latina. Então, nós somos todos – mesmo aquelas famílias alemãs, italianas, polonesas e tantas outras etnias que vieram para cá depois - nós somos muito reflexo desse processo histórico todo e que nos diz, que nos dá os sobrenomes que nós temos hoje, e o nosso modo de ser, que os guaranis chamam de Ñde reko, que é o modo se ser das pessoas, cada um com um pouquinho mais ou um pouquinho menos de inflexão desse processo histórico.
Fazendo um salto do passado para o presente, mas também com uma perspectiva futura: como o cooperativismo pode representar um contraponto, e também porque não o modelo e uma esperança em um mundo que a gente vive, às vezes tão egoísta individualista?
O processo de cooperação ele nasce dentro de cada um de nós, através de uma coisa que eu chamo de “índice de capacidade humana e social do desenvolvimento”, que esse é meu trabalho de mestrado, é a minha pesquisa toda que eu fiz, ela acabou se transformando num livro chamado “Índice de capacidade humana e social do desenvolvimento”, que é um índice matemático – eu estudei engenharia, então eu penso também em números. Então tem lugares que são mais empreendedores, tem lugares que têm níveis de empreendedorismo, níveis de conhecimento sobre os temas, níveis de confiança, que é fundamental entender por que algumas comunidades desenvolvem e outras não, que é o nível de confiança existente naquele lugar, ou seja, o capital social existente naquele lugar. Então essas relações elas dizem que cada um de nós, ele se integra a um processo de desenvolvimento de diversas formas. Algumas pessoas são extremamente individualistas e que precisamos de pessoas que trabalham com essas ideias mais individualistas no mundo. Mas precisamos também de ideias de mais cooperação no mundo. Então tem pessoas que têm índoles maiores de serem cooperadores com processo de desenvolvimento local, regional e de países. Então, essa forma de pensar da cooperação ela interage e age de diferentes formas dentro de cada um de nós. Algumas pessoas têm índoles para serem funcionários, outras pessoas têm para serem empreendedores, outras querem ser empreendedores mas têm dificuldades econômicas, essas questões naturais da vida. Então, o processo de cooperação é um processo que pode ser criado dentro das mentes das pessoas, para isso precisa aprender isso e obviamente muito mais que aprender, colocar isso no coração das pessoas.
Então veja que o mundo precisa muito de cooperação, tanto para o desenvolvimento das comunidades mais pobres, você sabe que nós temos em grande quantidade no Brasil e no conjunto todo da América Latina, então a cooperação ela deve ser incentivada, ela deve ser adubada, vamos dizer assim, no conjunto da sociedade, no sentido que nós possamos nos unir e comunidades unidas, elas têm poder imenso, até poder político mesmo, essa coisa do voto mesmo, e no cooperativismo, não importa o tamanho do teu capital, importa é que você tenha o valor de um voto, então todo o processo de cooperação, isso é fundamental. E veja que na vida a gente tem que pensar nas coisas também.
Quer dizer, essas ideias lá da Revolução Francesa elas deveriam estar presentes hoje em cada um de nós, na nossa luta diária, no escrever, no dizer, no fazer isso especialmente. E o cooperativismo, a cooperação ela deve ser o fundamento do nosso mundo cristão, porque é um jeito de romper esses individualismos e que está dentro de cada um, sem dúvida nenhuma. Mas veja que é uma luta diária, para nós nos melhorarmos como pessoa, como gente, como cristão, e começar a pensar nesse mundo novo, mais irmão, mais cooperador, mais de ajuda mútua mesmo, com mais “amor”, que é o centro, parece, da ideia da cooperação.
Uma mensagem final...
Sempre agradecer pela condição nossa de falar sobre as Missões e convidar as pessoas – eu vejo que as nossas falas têm refletido muito. Eu recebi vários comunicados via whatsapp, telefonemas de gente de vários países, falando da importância que foi a nossa última conversa, e essa de agora com certeza também vai refletir muito e que as pessoas acabam também pensando sobre essas coisas todas e conhecendo toda essa nossa história de Missões. Então nós convidamos as pessoas também para virem para cá, para verem diretamente essa história que ainda está vivíssima, esse mundo bonito da terra vermelha, que aqui une três países e especialmente nós aqui do lado brasileiro. Então convidamos a nossa gente do país, do Brasil, mas também gente de toda a América Latina e europeus que venham conhecer essa experiência cristã, fundamental para o mundo que se construiu e que temos hoje, e que se Deus quiser, teremos no futuro um mundo mais irmão, mais fraterno, mais igualitário.
*José Roberto de Oliveira é natural de Santo Ângelo (RS), engenheiro de formação, na área da Topografia e Cartografia; foi por longo tempo docente na URI (Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões); diretor de desenvolvimento do Turismo no Rio Grande do Sul; um dos fundadores do Ministério do Turismo; criador em 2012, junto com os jesuítas, mais argentinos e paraguaios, da “Nação Missioneira”; foi criador do Circuito Internacional Missões Jesuíticas e representante brasileiro no Mercosul, também em função de seu envolvimento no tema das Missões.
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