Brasileiro reconstrói face de Santo Antônio de Pádua
Luiz Felipe Bolis – Vatican News
A história do êxodo de Cícero André da Costa Moraes selou a mudança de Chapecó/SC para Sinop/MT quando este tinha apenas 4 anos. Sobre as linhas de uma narrativa semelhante a de milhares de outras pelas estradas brasileiras, a escassez de trabalho na cidade de origem influenciou a família na busca por melhores condições de vida.
Era 1986 e o Brasil se reconstruía pelas vias da democracia. Os brasileiros, na procissão de um progresso esperançoso, marchavam adiante pelas oportunidades anunciadas dentro e fora da nação verde e amarela. O coração da gente de maioria católica depositava suas esperanças na intercessão de Nossa Senhora Aparecida e num oceano de outras devoções.
Dentro da narrativa de Cícero se fazem presentes as mãos de Santo Antônio desde as raízes da ancestralidade. O seu avô, de sobrenome Pagliari, teve a graça de se chamar Antônio. Cícero nasceu num dia 13, não de junho, mas de novembro, no Hospital Santo Antônio. Coincidência ou não, de Chapecó a Sinop, ambas as cidades em que viveu tinham o santo português como padroeiro. Os estudos e a retórica também se revelaram particularidades comuns entre os dois: o santo e o designer.
Em 1992, aos 9 anos, um quadro de curiosidades em um programa da TV aberta chamou a atenção de Cícero. Ficou impressionado pela reconstrução facial forense de uma pessoa, a partir do crânio original. Trinta anos depois, o designer 3D mato-grossense se transformou no Brasil, e além fronteiras, em uma das maiores referências no campo da reconstrução facial.
Nesta história de profissão e interesse pessoal, o menino de Sinop, depois de reconstruir mais de 70 rostos de forma digital, deu um salto de qualidade e se aventurou para criar a face de um dos homens mais amados na história da Igreja: Santo Antônio de Pádua. Esse trabalho vigora entre os mais conhecidos de Cícero, feito em parceria com o Centro de Estudos Antonianos, o Museu de Antropologia da Universidade de Pádua, o Centro de Tecnologia Renato Archer e o grupo de pesquisa arqueológica Arc-Team.
“Eles mandaram para mim um crânio escaneado, só informaram que era homem, a faixa etária de 36 anos e a ancestralidade”, pontua o cidadão mato-grossense. O primeiro molde da face do rosto do santo de Pádua, apresentado em 2014, alcançou uma repercussão de grandes proporções em várias partes do Brasil e do mundo e foi reportado por diversos veículos de comunicação. O crânio foi reconstruído em uma leva de outros crânios a serem refeitos, e só depois foi possível descobrir que se tratava de uma das maiores devoções da Igreja Católica.
Oito anos depois, Cícero aproveitou-se do avanço da ciência e da tecnologia para recriar o rosto de Santo Antônio de Pádua, utilizando técnicas computadorizadas desenvolvidas por ele mesmo. Em 2022, o resultado dos estudos saiu em uma reconhecida revista internacional de arqueologia, intitulada Digital Applications in Archaeology and Cultural Heritage (DAACH).
“Em 2014 eu utilizei técnicas de terceiros e em 2022 eu utilizei técnicas que eu mesmo criei com colegas de estudo. Então a gente teve essa aproximação facial forense do Santo Antônio de Pádua, agora mais coerente, com as estatísticas das estruturas faciais de um ser humano. Curiosamente a linha do perfil ficou muito parecida com aquela de 2014, e um outro fato interessante para se falar sobre esse processo de estudo é que nós colhemos dados do corpo dele de um estudo de 1980, e eles realizaram um levantamento do endocrânio de Santo Antônio e, para a nossa surpresa, ficou bem parecido, usando dados de tomografia computadorizada, a tecnologia moderníssima validou o estudo que fizeram em 1980”, explicita Cícero sobre o santo nascido em Lisboa, em 1195, e falecido em Pádua, em 1231.
Do trauma ao sucesso
No fim dos anos 90, a computação gráfica 3D já encantava o jovem Cícero. Desenhista auxiliar de alguns escritórios de arquitetura naquela época, ele levou ao mundo digital o conhecimento analógico adquirido desde os 12 anos. Serviços para a área de marketing e publicidade também foram surgindo.
Em 2011 a roda da vida girou. Uma nova engrenagem para os rumos pessoais e profissionais do designer foi acrescentada. Ele viu a fronteira entre a vida e a morte bem diante dos olhos. Ele viu o perigo. Era noite. Estava a caminho de uma visita aos pais quando, no meio do percurso, surgiram bandidos que apontaram um revólver em sua direção. A reação foi inevitável. Um tiro de raspão o atingiu. Mas a bala mais dolorosa foi aquela que atingiu a alma, com um trauma que o deixou recluso por quinze dias. O pânico não o deixava sair de casa. A depressão bateu à porta, e de intrusa permaneceu por longo tempo.
Mas eis que não só de descidas é feita a caminhada do homem. As subidas também fazem parte. Em Cícero despertou um desejo hibernado desde 1992: o gosto pela técnica de retratar graficamente pessoas vivas ou falecidas através de modelagem 3D.
Foi então que ao passar pelo sepulcro da existência humana ele deixou os panos e os planos velhos para trás e foi em busca de novos sentidos de vida. Ele estudou, aprendeu, se refez, decodificou palavras difíceis em inglês e tantos outros códigos. E deste percurso veio a glória de vestir sobre si uma nova roupagem de designer. Nasceu o Cícero que hoje o Brasil e o mundo conhecem como o menino prodígio de Sinop. O Cícero que deu vida a um campo ainda pouco explorado e a pessoas que, em sua grande maioria, vieram ao mundo tempos antes da existência de registros fotográficos.
“Em pouco tempo superei a ansiedade acerca do assalto e fechei parcerias com pesquisadores internacionais, apresentando o trabalho em vários países. Um dos desdobramentos desse projeto foi o interesse por parte de médicos e cirurgiões dentistas acerca da abordagem 3D digital sobre a face, que se desdobraram em parcerias de desenvolvimento de tecnologia, culminando em soluções para o planejamento cirúrgico humano (hoje o meu ganha-pão) e a confecção de próteses animais e humanas. Desde o assalto que sofri, a recuperação foi tão plena que além de ‘voltar à vida’, passei a viajar por outros países, a ter dezenas de parceiros de pesquisas e a ver o meu trabalho noticiado em mais de 100 idiomas em volta do globo, nos principais sites, jornais impressos e canais de TVs”, sublinha Cícero.
Novas descobertas por meio do autoconhecimento
Estudos e treinos na academia vigoram entre os afazeres da rotina de Cícero Moraes. Há alguns meses, já perto dos 40 anos, o desbravador de novos mundos e descobertas surpreendeu-se com o diagnóstico que lhe foi apresentado com muita cautela, busca e acompanhamento de um psicólogo: ele fazia parte do mundo de pessoas com altas habilidades/superdotação (PAH/SD).
“Eu tenho memórias de quando era bebê. Aos meus poucos meses de vida, minha mãe estava jogando canastra 11 com o meu pai e amigos, e eu me interessei pelas cartas. Ao tentar pegar uma delas na mesa, o meu curto braço não a alcançou, daí minha mãe me deu uma colher, tomei a colher com a mão esquerda, encostei na carta, puxei-a e finalmente peguei-a. Todos na mesa vibraram com a ação e eu me recordo muito bem daquele momento. Além disso, comecei a andar cedo, a falar cedo, a ler algumas palavras com pouco mais de um ano de idade e a minha memória é ininterrupta desde os 3 anos, de modo que eu recordo até do momento que isso passou a acontecer, pois foi no dia que eu dei uma pirueta sobre a cama, e de lá pra cá lembro de quase tudo”, frisa o designer.
Desde o princípio Cícero imaginava que um indivíduo com superdotação era alguém com memória totalmente fotográfica, capaz de fazer cálculos complexos de cabeça, praticamente um computador humano imune a erros. No entanto, pesquisas revelaram que o horizonte dos que possuíam essa condição era muito maior.
O mote inicial pela busca incessante de autoconhecimento aos 39 anos veio através de uma “crise” muito comum nessa idade e também chamada de “crise da meia-idade ou metanoia”, a qual Cícero explica como “uma espécie de ‘adolescência adulta’, onde o mundo psicológico sofre profunda turbulência, fazendo com o que o indivíduo reveja seus conceitos e reestruture a forma com que encara a própria existência”.
O grande nome de Sinop pontua: “ao descobrir que eu era uma PAS (pessoal altamente sensível), aprendi algo novo e muito importante: descansar de verdade, ou seja, não fazer nada para realmente recarregar as energias, evitando a saturação e logo, a ansiedade”.
O designer e o seu legado
Cícero Moraes recebeu diversas honrarias, dentre elas: nove moções de aplauso (2013-2022) oferecidas pelas Câmara de Vereadores de Sinop, Comenda Colonizador Enio Pipino (2014), Título de Cidadão Mato-Grossense (2015), Reconhecimento por parte do Governo Regional de Lambayeque (Peru) pela reconstrução facial do Senhor de Sipán (2017), a Medalha Inca Garcilaso de la Vega (2017), um reconhecimento do Ministério da República Tcheca (2018) e um reconhecimento da Arquidiocese de Kosice, Eslováquia (2019) pelas suas contribuições a religião oficial e à história do país.
Em 2021 obteve o reconhecimento do Guinness World Records pelo primeiro casco de tartaruga impresso em 3D no mundo. Em 2022 recebeu o título de Doutor Honoris Causa outorgado pela Faculdade Tecnológica de Limoeiro do Norte (FATELL) e pela Fundação Cariri (FUNCAR), por suas contribuições à Ciência utilizando a computação gráfica 3D. Seus trabalhos foram noticiados nos principais meios de comunicação do mundo e as publicações traduzidas para mais de 100 idiomas, contemplando o impressionante número de quase 7 bilhões de falantes.
As palavras finais de Cícero dizem: “todos esses trabalhos fazem com que hoje eu viva a minha vida de modo muito satisfatório e feliz. O mundo é um lugar muito mais agradável quando você se reconhece e tem empatia pelas pessoas, e uma forma de tornar essa empatia produtiva é compartilhando o resultado das nossas vitórias”.
Obrigado por ter lido este artigo. Se quiser se manter atualizado, assine a nossa newsletter clicando aqui e se inscreva no nosso canal do WhatsApp acessando aqui