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Restos de um edifício que desabou parcialmente em Aleppo durante o terremoto do dia 06/02/2023.  Na foto, crianças recolhem madeira que será usada para o aquecimento durante o duro inverno em Aleppo. Restos de um edifício que desabou parcialmente em Aleppo durante o terremoto do dia 06/02/2023. Na foto, crianças recolhem madeira que será usada para o aquecimento durante o duro inverno em Aleppo.  

A Síria entre guerra e terremoto: até quando o povo poderá suportar?

“Depois da guerra e com a enorme carestia que vivemos já há anos na Síria, faltava só o terremoto”. Na Síria o terremoto atingiu de modo particular as regiões de Aleppo, Latakkia, Hama e Idlib. O número de pessoas que perderam a vida debaixo dos escombros passa de 6 mil. A narrativa de um focolarino que está na Síria.

Domingos Dirceu Franco – Aleppo

«Um antigo conto judeu sugere que quando Deus criou o mundo, entregou 10 porções de beleza a todo o mundo, reservando nove para a Terra Santa e uma única porção para o resto do mundo. Do mesmo modo, fez também com as dez porções de sabedoria. Quando chegou às dez porções de dor, não mudou a conta e continuou a oferecer uma única medida de sofrimento para o resto do mundo e nove para a Terra Santa” (citado em G. Ravasi, Terra Santa, Geografia dell’anima, San Paolo, 1988, p. 6). 

Mesmo que eu nunca tivesse estado na Terra Santa, sempre fui profundamente tocado por esta narrativa cuja verdade transcende as próprias palavras e encontra morada no dia a dia das pessoas que ainda hoje sofrem muito nas terras do Oriente Médio. Tendo vivido por nove anos na Jordânia e há mais de três anos na Síria, consigo colher o significado, mesmo escondido, destas palavras que estendo ao inteiro Oriente Médio.

Esta narrativa me faz pensar, em primeiro lugar, na martirizada Síria, depois de seus 12 anos de guerra e sobretudo agora com o terremoto. Penso sobretudo na realidade de sofrimento que se vive aqui e que não se pode descrever, como não se pode descrever e medir as dores de um povo, especialmente em guerra. Se olho além, não posso deixar de dirigir o olhar às milhares de vítimas do terremoto na Turquia, às muitas guerras na África, na Ucrânia e em muitas outras partes do mundo (algumas infelizmente esquecidas ou simplesmente ignoradas).

Eis o que dizem as pessoas nestes dias: “Depois da guerra e com a enorme carestia que vivemos já há anos na Síria, faltava só o terremoto”. Na Síria o terremoto atingiu de modo particular as regiões de Aleppo, Latakkia, Hama e Idlib. O número de pessoas que perderam a vida debaixo dos escombros passa de 6 mil por aqui. Nos dois dias sucessivos ao terremoto, as pessoas dormiram pelas ruas embaixo da chuva e no frio, nos carros e nos poucos abrigos improvisados. Respira-se medo de voltar para casa já que muitos prédios podem ainda cair devido aos danos remanescentes da guerra. Quando a situação estava começando a "voltar ao normal" aqui na Síria depois de duas semanas dos primeiros tremores fortes, nesta semana (20/02) aconteceu um outro grande tremor de magnitude 6.4 e o medo tomou conta mais uma vez da população. Desde segunda feira passada até ontem à noite (23/02), as pessoas passaram as noites debaixo de tendas colocadas nas calçadas ou nas praças, dentro dos carros ou em abrigos improvisados nas igrejas e mesquitas. Com um pequeno grupo dos Focolares de Aleppo estivemos em Latakia na semana passada para acompanhar junto à igreja local a situação depois do terremoto e para oferecer um suporte concreto em vários campos, sobretudo através da escuta dos sofrimentos e traumas das pessoas. Posso afirmar que se respira um grande medo e insegurança. Conversamos com vários jovens que não  dormem quase nada há mais de 15 dias e outros que, desde o primeiro tremor, não vão mais ao trabalho pois não se sentem seguros em deixar os pais idosos sozinhos em casa. O “terremoto interior” causado pelos tremores de terra geraram traumas e inseguranças que levarão tempo para serem reparados. Além da necessidade de ajuda humanitária e para a reconstrução, um grande percentual da população precisa urgentemente de suporte psicológico para superar o trauma e adquirir forças para recomeçar pela milésima vez.

Para entender a gravidade do terremoto na Síria é preciso colocá-lo  dentro de um contexto mais amplo: aquele das sanções internacionais que fazem piorar a situação de socorro, de reconstrução e do drama da pobreza existente há anos. O terremoto levou consigo milhares de vidas, causou enormes destruições e posso afirmar que quando aconteceram os tremores, as pessoas já se encontravam “no chão” por conta da situação de vulnerabilidade extrema em que vivem e pela falta dos serviços básicos para garantir uma vida digna.

Vou descrever um pouco a realidade socioeconômica da Síria antes do terremoto.

A situação atual síria é sempre pior e as pessoas vivem no desespero por causa do frio, da fome que aumenta e da falta de energia elétrica, gasolina e gás de cozinha. Mesmo a Síria sendo rica em recursos como petróleo e gás, hoje, por conta da ocupação ainda presente no país, grande parte da produção local é roubada e desviada. Mais de 90% da população vive abaixo da linha de pobreza e nos últimos dois meses um litro de gasolina chegou a custar cerca de 20% do ganho mínimo local (mais ou menos R$ 250,00). A estrutura de energia elétrica do país foi destruída em grande parte durante a guerra e hoje a distribuição é mínima (entre 1 e 4 horas diárias). A geladeira de casa funciona somente como um armário. É simplesmente desumano pensar que o valor que um cidadão ganha no mês é suficiente para adquirir não mais do que 10-15 litros de gasolina ou 4 kg de carne. Obviamente, a escolha sobre como usar o pouco que cada um recebe é ditado pelas necessidades básicas de sobrevivência.

Os preços aqui têm aumentado exorbitantemente (cerca 150-300% nos últimos três meses e cerca 800% em um ano para muitos produtos). Quando cheguei a Aleppo em 2019, a tarifa média que pagava pelo transporte por 2-3km era de 500 liras sírias. Hoje, o mesmo percurso custa 8000 liras sírias. Um colega me contou que sua amiga, professora de francês numa escola, recebe o equivalente a 35 euros ao mês. A mesma quantia que ela usa para pagar o gerador elétrico e assim poder ter corrente elétrica por algumas horas. Como faz uma pessoa para sobreviver assim e cobrir suas necessidades básicas? O povo sírio foi ferido em sua dignidade.

O embargo imposto pelo ocidente é terrível e quem paga a conta é o povo. As pessoas me contam com muita comoção e saudades que antes da guerra (2010), se vivia muito bem na Síria. Em Aleppo, por exemplo, se ia toda semana ao restaurante, as pessoas tinham carro, casa, gás de cozinha, podiam viajar e a gasolina era muito barata. O proprietário de um pequeno negócio de alimentos em Homs me contou recentemente que algumas pessoas adquirem somente um ovo ou 100gr de café porque não podem permitir-se mais que isto. Eis o que escuto frequentemente nestes dias: “Algo deve acontecer. Chegamos ao limite de suportação!”.

A guerra iniciada em 2011 continua até hoje, mesmo que a mídia internacional não trate mais do assunto. O aeroporto de Damasco, por exemplo, foi atingido várias vezes nos últimos meses e no domingo passado (mesmo com toda a tragédia atual do terremoto) um míssil atingiu uma região habitada de Damasco matando mais de 15 pessoas e ferindo muitas outras. Antes mesmo do terremoto eu já escutava das pessoas que a situação atual é muito pior do que os anos difíceis de combate armado. Me relatou um amigo: “Durante os duros conflitos armados, tínhamos a esperança de que um dia a guerra acabaria e recomeçaríamos a viver. Agora a esperança não existe mais e a causa é a dura guerra econômica causada pelos embargos desumanos por parte do Ocidente. Nos tiraram a dignidade e roubaram o futuro dos nossos filhos”.

E o que entristece ainda mais é que, além do Papa Francisco que sempre lembra da Síria, quase ninguém mais fala da situação local. Nos sentimos realmente esquecidos pelo resto do mundo. Entendo que há muitas lágrimas a derramar nestes tempos de guerra, de pandemia, de muitas calamidades naturais, mas a indiferença para com o sofrimento de um povo como o da Síria é algo que não pode ser aceito. Quem vende as armas? Quem causou esta guerra aqui na Síria? Estas perguntas, que também Papa Francisco colocou em várias ocasiões, não encontram respostas coerentes.

O Natal em Aleppo foi uma experiência de viver com o essencial, em todos os sentidos. Nas casas das famílias que festejaram o nascimento de Jesus, se viveu como estivéssemos na gruta de Belém, como relatou um pároco de Aleppo: “Um lugar frio e escuro onde as crianças sofrem e os pais estão desesperados porque se sentem impotentes”. E se penso nos jovens... quanto sofrimento experimentam por causa de um futuro que lhes é tirado. Me dizem assim: “Quero somente poder escapar daqui”. Mais de 90% dos jovens deixariam o país se pudessem. De fato, nos últimos seis meses cerca de 400 jovens de um pequeno vilarejo cristão escaparam do país. Não se sabe, porém, quantos chegaram ao destino desejado e isto só o mar pôde testemunhar.

Nestes quase 3 anos e meio que estou na Síria aprendi a apreciar a enorme capacidade deste povo, que tanto amo e estimo, em suportar a dura situação a que foram submetidos por causa da guerra, uma guerra suja contra a população civil e não uma guerra civil (M. Zanzucchi, M. Toschi, Siria. Una guerra contro i civili, CNx, Roma 2018) e arquitetada por potências estrangeiras. Mesmo com a dura realidade, ancorados numa fé sólida em Deus, muitos conseguem ainda doar alegria a seu redor (falo da situação anterior ao terremoto), uma espécie de paradoxo que o Ocidente e a sociedade do bem-estar talvez não consegue entender. Os relacionamentos aqui são calorosos, as pessoas ajudam-se reciprocamente, os assaltos são poucos ou inexistentes, os filhos são formados com valores sólidos e a solidão encontra pouco espaço.

As várias Igrejas locais trabalham com grande empenho e com uma crescente sinergia de modo a aliviar o sofrimento do povo. A generosidade e o amor concreto de muitos no Ocidente que têm um coração grande nos ajudam a continuar a crer num futuro melhor ou ao menos a sobreviver no presente.

Além de estar empenhado (com outros) em muitas atividades de formação humana, espiritual e de acompanhamento aos jovens, trabalho no campo de projetos para programas emergenciais e de desenvolvimento. No ano passado, entre as várias atividades em campo educativo, sanitário e emergencial para idosos, famílias, jovens, adolescentes e crianças liderado pelo Movimento dos Focolares (em modo particular através da ONG Ação por um Mundo Unido Onlus – AMU) pudemos implementar 30 projetos de geração de renda na cidade de Homs (destruída em 60% durante a guerra) e estamos concluindo neste mês outros 20 projetos em Aleppo[1]. Vivem-se intensas experiências no esforço de levar esperança através do simples fato de dar novamente dignidade às pessoas por meio de uma atividade de trabalho perdida durante a guerra. Mesmo que de esperança quase não se possa falar por aqui, se pode todavia gerá-la através de ações concretas de suporte e proximidade a quem sofre e está desesperado. A esperança cristã me faz acreditar que virão dias melhores, mesmo se o contexto mostra o contrário; o número porém de quem acredita ainda num futuro melhor diminui dia após dia.

Retomando o conto judeu, posso acrescentar que “se é verdade” que uma medida alta de sofrimento é “reservada” a estas terras martirizadas pelos conflitos que continuam ao longo dos séculos, deverá ser também verdade que Deus não abandona os seus filhos na dor (e disto sou testemunha). Olhando o povo sírio, poderia afirmar que a outra “medida alta de sabedoria” “reservada” a estas terras é oriunda da primeira medida de sofrimento que não é rejeitada pelas pessoas, mas é vivida em estreito relacionamento com o Doador da verdadeira paz e sabedoria. A liberdade humana usada para fins egoístas trouxe somente destruição nestas terras belíssimas em que o próprio Deus quis se encarnar. 

Que Deus nos ajude e que os poderosos da terra possam reparar as injustiças e os sofrimentos causados nestes anos e que estes terríveis terremotos destas ultimas três semanas possam servir de alerta para a urgência de retirar o embargo definitivo sobre a Síria. Se a situação não melhorar, não sei até que ponto o povo saberá e poderá suportar.

 

Domingos Dirceu é economista, membro consagrado do Movimento dos Focolares, cidadão italiano e vive em Aleppo desde 2019.

Foto: Domingos Dirceu

[1] Experiências de alguns sírios que puderam recomeçar através de projetos de geração de renda desde 2021 estão disponíveis em: https://www.amu-it.eu/category/siria-restart/?fbclid=IwAR0KyW0MbPMNOoORnmUB--Cuks4Bb4UU1b3I-Uqh38mCMSwmORAZAxkVUL8

 

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27 fevereiro 2023, 11:37