Cálice usado na Santa Missa Cálice usado na Santa Missa 

Os dois cálices de Cristo na Última Ceia

Entre as centenas de alegados cálices da Última Ceia, dois atraem a atenção dos especialistas em relíquias. Segundo uma nova hipótese – apresentada agora em primeira mão –, ambos podem ter passado pelas mãos de Jesus Cristo no início de sua Paixão.

Fábio Tucci Farah

Há mais de cinco anos, o El País publicou uma matéria com o curioso título: “A batalha do Santo Graal: dois cálices reivindicam ser o tesouro perdido de Cristo”1. Entre centenas de pretendentes ao cálice da Última Ceia espalhados pelo mundo, duas pretensas relíquias foram destacadas pelo jornalista. E não era para menos. Ambos os objetos, custodiados na Espanha, carregavam séculos de história. E ambos mereciam cuidadosa atenção de qualquer estudioso do tema. Dois anos após a publicação daquela matéria, em um colóquio com professores do departamento de história e arqueologia da Universidade de Santiago de Compostela, fui confrontado com a questão: “Em sua opinião, qual é o Graal verdadeiro?”

Naquela época, a minha resposta estava na ponta da língua. O objeto exposto na catedral de Valência, na Capilla del Santo Cáliz, gozava de maior credibilidade, sem dúvida. Os dois antecessores do papa Francisco fizeram questão de venerá-lo e de utilizá-lo na celebração da missa, em 1982 e 2006. E em 2015, o atual Pontífice instituiu o ano jubilar eucarístico do Santo Cálice que, a partir de então, deveria ser celebrado a cada cinco anos. Segundo um estudo detalhado do Dr. Antonio Beltrán, apresentado em 19602, havia fortes evidências arqueológicas para sustentar que aquela era a verdadeira relíquia cristã. O artefato confeccionado em ágata cornalina, possivelmente em uma oficina do Oriente Médio (Egito, Síria ou Palestina), poderia ser datado entre os séculos IV a.C. e I d.C. Ou seja, havia uma probabilidade razoável de ter estado nas mãos de Cristo na Última Ceia.

A alegada história por trás daquele objeto também era fascinante e corroborava as evidências arqueológicas. Segundo uma larga tradição, aquele cálice teria sido herdado por São Pedro e levado a Roma, onde passaria pelas mãos de seus 23 sucessores. Durante a perseguição de Valeriano, no século III, São Lourenço recebeu uma missão do papa Sisto II: proteger os tesouros da Igreja. Graças ao diácono e tesoureiro, o Santo Cálice teria sido mandado secretamente à sua terra natal, a Hispania. E ali, teria passado por alguns esconderijos, inspirado lendas, sido remodelado à moda das taças reais medievais e, finalmente, desembarcado na catedral de Valência na primeira metade do século XV3.

 

Definitivamente, não seria tarefa fácil encontrar um competidor à altura. Em 2014, os autores espanhóis Margarita Torres e José Miguel Ortega abraçaram essa tarefa com o lançamento da obra Los Reyes del Grial. Com argumentos históricos, a obra alardeava a descoberta do verdadeiro Graal. E não era o de Valência. Para os autores, a autêntica relíquia havia se tornado conhecida como Cálice de Dona Urraca e estava esquecida na Real Colegiada de San Isidoro, em León. O sucesso do livro inspirou o documentário Onyx, los Reyes del Grial – estrelado por Jim Caviezel em 2018 – e arrastou multidões para apreciar o tesouro reencontrado, obrigando seus guardiões à trasladá-lo para uma sala especial.

Confeccionado em ônix, esse cálice apresentaria boas evidências a seu favor para ter estado nas mãos de Cristo na Última Ceia? A resposta é sim. Em visita a Terra Santa, peregrinos dos primeiros séculos registraram ali a presença do cálice da Última Ceia. Embora os relatos sejam divergentes em relação ao material e ao formato, um deles, o do peregrino anônimo de Piacenza, chama a atenção… Da Terra Santa, o cálice teria sido carregado ao Egito e de lá seguido para a Espanha, como presente à taifa de Denia pelo apoio durante a fome que assolou a região. Por sua vez, o sultão de Denia enviaria a relíquia como oferta de paz ao rei Fernando I, pai de Dona Urraca – daí o apelido do cálice. Os documentos descobertos por Gustavo Turienzo na Biblioteca do Cairo foram apresentados em Los Reyes del Grial como prova documental incontestável de que o Cálice de Dona Urraca seria o autêntico Cálice da Última Ceia, o verdadeiro Santo Graal.

Nesta seara, vale o ditado: "Devagar com o andor que o santo é de barro.” Com conclusões apressadas, a obra espanhola foi rechaçada por Turienzo e por estudiosos do

tema como uma peça mais fantasiosa que histórica. Para a pesquisadora Catalina Martin Llores, da Universidade Católica de Valência, a trajetória do Cálice da Última Ceia teria sido corretamente apontada na polêmica obra. A relíquia real teria sido trasladada para o Egito e de lá para a Espanha. Mas essa relíquia não se tratava do Cálice de Dona Urraca, e sim o de Valência, que teria chegado às mãos da Coroa de Aragão graças à petição do rei Jaime II, entre 1322 e 1327. Segundo a pesquisadora, a história do Cálice da Última Ceia herdado por São Pedro e enviado a Hispania por São Lourenço não passaria, portanto, de lenda dourada. E os relatos dos primeiros peregrinos poderiam ser descartados por patentes divergências entre si.

Volto ao colóquio com os professores na Universidade de Santiago de Compostela. Nos dias de hoje, teria respondido à indagação inicial com outra questão: “E se ambos os cálices tiverem passado pelas mãos de Cristo em sua última ceia com os apóstolos?” No último ano – pouco após minha pesquisa sobre a Coroa de Espinhos –, passei a me dedicar ao estudo dessa fascinante relíquia. Para tentar entendê-la, é preciso olhar com atenção para a tradição judaica da refeição pascal, o Seder de Pessach, que contemplava quatro cálices. Como Jesus afirmou, ele não veio revogar a Lei (cf. Mt, 5,17). Tampouco pretendia simplesmente participar da tradicional ceia pascal. Ele ofereceria, sim, algo novo em sua última refeição com os apóstolos. Em um dos Evangelhos, há indícios de que Jesus teria usado mais de um cálice na Última Ceia, bem como o significado de cada um deles…

Quando chegou a hora, ele se pôs à mesa com seus apóstolos e disse-lhes: “Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco antes de sofrer; pois eu vos digo que já não a comerei até que ela se cumpra no Reino de Deus”.

Então tomando um cálice, deu graças e disse: “Tomai isto e reparti entre vós; pois eu vos digo que doravante não beberei do fruto da videira, até que venha o Reino de Deus”. (Lc 22, 14-18)

E tomou um pão, deu graças, partiu e distribuiu-o a eles, dizendo: “Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em memória de mim”. E, depois de comer, fez o mesmo com o cálice, dizendo: “Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado em favor de vós...” (Lc 22, 19-20)

Em São Lucas, dois cálices são mencionados. Essa passagem chegou a causar confusão em alguns tradutores e foi editada em versões da Bíblia4. Ao menos dois cálices passaram pelas mãos de Jesus com um significado que certamente o evangelista não ignorava. Há uma distinção clara entre o objeto usado na celebração do rito antigo da páscoa judaica e um segundo, escolhido especialmente para selar a Nova Aliança.

Há algum tempo, como especialista em relíquias, meus olhos se acostumaram a buscar simbolismos ocultos em relíquias cristãs, simbolismos que revelam realidades elevadas e comprovam as verdades já consagradas da Fé. Um simbolismo oculto para nós – mas claro para o Protagonista – pode ser a chave para desvendar o grande mistério dos Cálices da Última Ceia. E iluminar a verdade por trás dessas relíquias. De que maneira os dois maiores pretendentes poderiam se encaixar no episódio bíblico?

Uma pista inicial foi trazida à luz na tese de María Mafé García. Para a doutora em história da arte, o volume do Cálice de Valência poderia servir como uma evidência de autenticidade. Era a medida usada pelos judeus. Mas haveria ainda outra evidência mais interessante do ponto de vista simbólico: o material. A pedra usada para a confecção do cálice teria sido catalogada na Antiguidade como sárdio, pedra que identificava a tribo de Judá (Casa de Davi), da qual Cristo provinha. Para muitos, isso bastaria para encerrar a discussão sobre o cálice verdadeiro. Para mim, ela aponta para algo mais amplo.

No século VI, o já mencionado peregrino anônimo de Piacenza registrou em detalhes sua viagem à Terra Santa. Na basílica de Constantino, ele esteve diante de um suposto cálice da Última Ceia. E nos ofereceu uma valiosa informação sobre a relíquia:

Há também a taça de ônix, a qual nosso Senhor abençoou na Última Ceia, e muitas outras relíquias.5

O cálice de ônix corresponderia ao Cálice de Dona Urraca. Possivelmente os autores de Los Reyes del Grial  tenham acertado ao descrever sua trajetória com base nas descobertas de Turienzo. Aquele cálice, venerado por um peregrino anônimo no século VI, teria sido trasladado para o Egito e de lá para a Espanha. Se a tese da Dra María Mafé García logrou defender a autenticidade do Cálice de Valência, evocando como uma das evidências a pedra ágata, poderíamos enxergar o cálice de ônix na Última Ceia com base no simbolismo da pedra?

No Êxodo, há informações detalhadas para a confecção das vestes sacerdotais. E há uma instrução específica para o Sumo Sacerdote carregar os nomes dos filhos de Israel diante do Senhor:

Tomarás duas pedras de ônix e gravarás nelas o nome dos filhos de Israel. Seis nomes em uma e os outros seis na outra, por ordem de nascimento (…) Porás as  duas pedras nas ombreiras do efod, como memorial para os filhos de Israel; e Aarão levará os seus nomes sobre os ombros à presença de Iahweh, para memória. (Ex 28,9;12)

Em pedras de ônix foram gravados os nomes dos filhos de Israel, que deram origem às doze tribos do Povo Escolhido por Deus, do povo com quem o Senhor firmou a primeira Aliança. Em São Lucas, a primeira parte da ceia segue o rito tradicional judaico, sem dúvida. O primeiro cálice do Seder de Pessach é baseado na promessa divina: “Eu sou Iahweh, e vos farei sair de debaixo da carga do Egito...” (Ex 6,6). Deus separou um povo, uma nação, para servi-Lo. Para esse momento do ritual, parece oportuno que Jesus tenha escolhido uma taça de ônix. Ele seria o Sumo Sacerdote que carregaria os nomes dos Filhos de Israel – originalmente gravados em pedra – à presença do Senhor. A escolha de uma taça de ônix serviu apenas para tornar mais grandioso o que ocorreria na segunda parte, a mais importante.

Após a divisão do pão, o evangelista nos apresenta um segundo cálice, o cálice da bênção ou da salvação – uma referência à promessa divina: “vos resgatarei com mão estendida” (Ex 6,6). A taça de ágata não foi uma escolha fortuita. Era um sinal evidente de que o Salvador já havia chegado de Judá e o seu sangue selaria a nova Aliança entre Deus e o Povo Eleito, uma aliança que se alargaria para abarcar toda a humanidade. O Sumo Sacerdote Jesus Cristo já não levaria os nomes “à presença de Iahweh, para memória”, mas instituiria a celebração eucarística que deveria ser feita em Sua memória para nos alçar todos ao Reino dos Céus!

No simbolismo dos dois cálices, a observação de Santo Agostinho se encaixa como uma luva: “O Novo (Testamento) está escondido no Antigo. E o Antigo é desvendado no Novo.” Nos dois cálices escolhidos para a última refeição, Deus nos mostra o caminho de nossa salvação. Não é possível assegurar que os cálices em Léon e Valência tenham estado na Última Ceia. Mas podemos enxergar ambos nas mãos de Jesus – um de ônix e outro de ágata. Ele teria escolhido, sim, aquelas peças – ou outras bastante similares – como uma história nas entrelinhas, uma história que confirma o mistério sublime de nossa redenção.

Fábio Tucci Farah é perito em relíquias sagradas da Arquidiocese de São Paulo, jornalista especializado em Arqueologia Sacra e curador adjunto da Regalis Lipsanotheca, em Ourém.

 

1 Ignacio Zafra. “A batalha do Santo Graal: dois cálices reivindicam ser o tesouro perdido de Cristo”. El País. Disponível em:  https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/19/internacional/1505806541_243723.html. Acesso em: 29 de fevereiro de 2023.
2 Beltrán, Antonio. Estudio sobre el Santo Cáliz de la Catedral de Valência. Valência, 1960.
3Essa versão da história do Cálice de Valência foi bem reconstruída por Janice Bennet na obra St. Laurence & The Holy Grail – The Story of The Holy Chalice of Valencia. (São Francisco: Ignatius Press, 2004).

4 A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2012, p. 1971.
5 Anônimo. Of the Holy Places Visited by Antoninus Martyr. Tradução: Aubrey Stewart, Ma. Comentários: Col. Sir C. W. Wilson, R.E. Londres: Palestine Pilgrims’ Text Society (PPTS), 1887, p. 17. Disponível em: https://archive.org/details/cu31924028534232/mode/2up. Acesso em: 29 de fevereiro de 2023.

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16 março 2023, 17:19