Busca

Cookie Policy
The portal Vatican News uses technical or similar cookies to make navigation easier and guarantee the use of the services. Furthermore, technical and analysis cookies from third parties may be used. If you want to know more click here. By closing this banner you consent to the use of cookies.
I AGREE
Ach wie nichtig, ach wie fluchtig, BWV 644
Programação Podcast
Cálice Cálice 

Fábio Tucci Farah: O quarto cálice da Última Ceia

Para alguns peregrinos da antiguidade, o Santo Graal era um vaso de prata. Embora não estivesse no Cenáculo, essa estranha relíquia pode revelar o verdadeiro desfecho da Última Ceia.

Fábio Tucci Farah

Segundo São Jerônimo, Jesus teria usado dois cálices na Última Ceia – uma afirmação enraizada no relato de São Lucas. Em um artigo recente, apresentei minha hipótese sobre esses dois cálices usados por Jesus, um de ônix e outro de ágata, alegadamente custodiados em León e em Valência, na Espanha. Embora seja possível vislumbrar ambos no Cenáculo, não teriam sido os únicos cálices da Última Ceia. Na obra “O Quarto Cálice: Desvendando o Mistério da Última Ceia” (1), o teólogo norte-americano Scott Hahn apresenta uma interessante hipótese com sólida base bíblica.

A refeição pascal judaica – o Seder de Pessach – contemplava quatro cálices. O último deles, chamado de cálice da consumação, não é mencionado por São Lucas. Embora ele não estivesse ali, o cântico dos salmos que acompanha essa parte do ritual foi rigorosamente observado por Jesus e seus discípulos pouco após o terceiro – e mais significativo dos quatro –, o da bênção. No “Evangelho de São Mateus”:

“Eu vos digo: desde agora não beberei deste fruto da videira até aquele dia em que convosco beberei o vinho novo no Reino do meu Pai.” Depois de terem cantado o hino, saíram para o monte das Oliveiras. (Mt 26, 29-30).

Para Hahn, a ceia pascal de Cristo teria sido consumada na cruz. E ele aponta o momento preciso em que Jesus teria sorvido o quarto cálice. Basta um olhar atento a esta passagem do “Evangelho de São João”:

Depois, sabendo Jesus que tudo estava consumado, disse, para que se cumprisse a Escritura até o fim:

“Tenho sede!”.
Estava ali um vaso cheio de vinagre. Fixando, então, uma esponja embebida de vinagre num ramo de hissopo, levaram-na à sua boca. Quando Jesus tomou o vinagre, disse: “Está consumado!”. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito.
(Jo 19, 28-30).

Para o teólogo norte-americano, não restam dúvidas de que o quarto cálice seria aquele vaso cheio de vinagre (que, em algumas bíblias, é traduzido como cântaro). Em uma iluminura dos Evangelhos de Rábula (586 d.C.), dois soldados romanos estão ao lado do Crucificado. Enquanto Longino usa a lança para perfurar o peito de Jesus – algo que ocorreria apenas após sua morte –, seu parceiro estende ao Crucificado uma vara com a esponja na ponta. Segundo uma tradição, esse personagem atualmente pouco conhecido chamava-se Estêfatão. Uma das possíveis intepretações é de que o nome daquele soldado teria sido associado à esponja, da mesma forma que o soldado da lança passou a ser conhecido como Longino – a tradução da arma do grego para o latim indicaria a origem do nome próprio, lancea.

O que mais nos interessa nesse episódio está no objeto próximo ao soldado: o cântaro com vinagre. O que fazia um cântaro com vinagre próximo ao local de execução? A palavra do original grego para a bebida é óksos. Tratava-se, na realidade, da posca, um vinho azedo dado como ração aos soldados romanos para ajudar a aplacar a sede. Talvez movido por compaixão pelo condenado – não por sadismo – Estêfatão tenha embebido uma esponja em um vaso de posca que os soldados romanos carregavam durante a execução, da mesma forma que atualmente muitos cultivam o hábito de carregar uma garrafinha de água. E exatamente esse vinho azedo teria sido, segundo Hahn, o que teria levado Cristo a consumar a ceia pascal da Nova Aliança.

Com esses olhos, poderíamos enxergar no cântaro, no vaso de vinagre, o quarto cálice da Última Ceia? Existiria alguma evidência – não uma metáfora – de que os cristãos dos primeiros séculos enxergavam nesse objeto um cálice sagrado? A chave para desvendar esse mistério está no relato de alguns peregrinos cristãos em Jerusalém. No século VI, um peregrino anônimo de Piacenza registrou sua viagem à Terra Santa. Na basílica de Constantino, ele teria apreciado “a taça de ônix, a qual nosso Senhor abençoou na Última Ceia” (2). A taça de pedra, porém, não teria sido o único cálice da Última Ceia à disposição dos peregrinos cristãos. Graças à patente divergência entre as inúmeras descrições, diversos estudiosos do Graal costumam desprezá-las. O Venerável Beda, afamado historiador eclesiástico inglês, popularizou a versão de que o cálice da Última Ceia era de prata. Essa informação não era fortuita. Ele a havia colhido do relato detalhado da peregrinação do bispo Arculfo, no século VII, feita pelo religioso Adomnano.

Em uma praça entre a igreja do Calvário e a basílica de Constantino, o prelado de origem francesa teria visto o cálice da Última Ceia. Por meio de uma abertura na tampa do relicário, Arculfo teria tocado e beijado o objeto. E apreciado detalhes significativos (grifo meu):

A taça é de prata, tem a medida de um quarto francês e duas pequenas asas, uma de cada lado. Dentro da taça está a esponja com a qual aqueles que crucificaram o Senhor embeberam em vinagre e, colocando-a na ponta do hissopo, levaram-na à Sua boca.(3)

Em algum momento anterior à peregrinação do bispo Arculfo, as duas relíquias foram reunidas. A saber: o suposto cálice e a esponja. Embora o prelado tenha se referido à taça de prata como o cálice usado na Última Ceia, é bem provável que tenha se equivocado com base na descrição de seus contemporâneos. Já seus antepassados possivelmente enxergaram naquele vaso de prata o que realmente era: um cântaro de posca. E a esponja ali seria a prova de que ambas as relíquias participaram de um mesmo evento. Mas não a única. Para defender a autenticidade do cálice custodiado em Valência, o cônego da catedral José Sanchis y Sivera publicou, em 1917, um livro bastante crítico a inúmeros candidatos a cálice da Última Ceia. E um bom alvo principal era a taça de prata do bispo Arculfo. As objeções apresentadas podem nos auxiliar na compreensão dessa relíquia:

Além disso, não é crível que um objeto tão precioso tenha sido encontrado tão pouco guardado (colocado no meio de uma praça), e sem que se lhe desse o culto apropriado de latria em um templo cristão, apesar de outras relíquias de menor importância estarem muito bem guardadas. Nem é provável que o Cálice fosse tão grande. (4)

Realmente, causaria estranheza o cálice da Última Ceia estar em uma praça pública de Jerusalém. Mas justamente o lugar mencionado nos oferece uma pista da natureza do objeto e de sua função original. Segundo Adomnano, o objeto estava no átrio entre a igreja do Calvário e a basílica de Constantino (ou Martiryum). Quem hoje visita a basílica do Santo Sepulcro, depara-se com um complexo religioso repleto de capelas. Naquela imponente construção, encontra-se o Gólgota, o sepulcro de Cristo, a cisterna onde Santa Helena teria descoberto as mais importantes relíquias do cristianismo.

No século IV, a galega Egéria teria visitado o complexo religioso idealizado por Constantino. Ele era composto por três partes principais. O Martiryum era considerado a igreja paroquial de Jerusalém, onde se celebravam os principais ofícios litúrgicos. No lado oposto, havia a Anástase, a gruta circular coberta por uma cúpula que marcava o sepulcro de Jesus. Esses dois santuários eram separados pela terceira parte, o átrio. E ali havia um pequeno monte rochoso encimado por uma cruz, identificado como o Calvário (5). Não é difícil deduzir que a taça de prata com a esponja estava próxima ao local da crucificação – e com uma função pedagógica clara. Ali, Estêfatão teria mergulhado a esponja em um vaso de metal com posca. E tratava-se de um vaso ou de um cântaro, o que justificaria o tamanho colossal para um cálice usado em uma refeição pascal. Mais precisamente, um sextário, a sexta parte de um côngio. Uma medida romana, não a medida de um cálice judaico. O “cálice de prata”, portanto, estava justamente onde deveria estar, marcando um episódio importante da vida de Cristo, como uma estação da via-sacra! E, ali, era possível alimentar a piedade dos peregrinos, deixando-o a mostra para ser tocado. Como aquele vaso de prata teria se transformado no cálice da Última Ceia? Há duas maneiras possíveis de responder à questão. Em um artigo anterior, tentei demonstrar que, entre todos os pretendentes a cálice da Última Ceia, dois apresentavam as maiores credenciais. O cálice custodiado na catedral de Valência teria sido carregado por São Pedro a Roma e de lá enviado à Hispania por São Lourenço, no século III. O outro pretendente seria a taça de ônix custodiada em Léon. Ela teria sido trasladada ao Egito e desembarcaria na Espanha no século XII. O último a descrever a taça de ônix em Jerusalém teria sido um peregrino anônimo de Piacenza, aproximadamente cem anos antes da peregrinação do bispo Arculfo.

Em 614, o exército do rei Cosroés II da Pérsia invadiu Jerusalém e todas as igrejas, incluindo o Martyrium foram incendiadas. As relíquias que ali eram veneradas passaram a pertencer à rainha Meryam, da Pérsia. Entre os tesouros, havia a relíquia da Verdadeira Cruz, a lança de Longino, a esponja e “a taça de ônix que ele teria usado na Última Ceia”(6). Em 629, o imperador bizantino Heráclio retomou Jerusalém e, em um cortejo solene, carregou de volta a relíquia da cruz – o gesto deu origem à Festa da Exaltação da Cruz, no calendário litúrgico da Igreja. Mas a taça de ônix não ressurge com a reconquista de Jerusalém e deve ter seguido caminho até o Egito. Quando Arculfo peregrinou pela Terra Santa, nenhuma das possíveis taças da Última Ceia havia permanecido em Jerusalém. E na época, o paradeiro de ambas era desconhecido pela cristandade. O espaço daquela relíquia tão valiosa poderia ter sido ocupado pelo vaso de prata – apresentado aos peregrinos como Cálice da Última Ceia. E muitos peregrinos compraram essa ideia. Entre eles, o bispo Arculfo. Segundo seu biógrafo, aquele vaso de prata era verdadeiramente “o Cálice do Senhor, que Ele abençoou e deu com Sua própria mão aos Apóstolos na ceia no dia anterior à Sua paixão”(7)

 

Mas há um segundo caminho para interpretar a associação daquele vaso de prata com o cálice da Última Ceia. E aqui volto-me novamente ao teólogo norte-americano Scott Hahn. A caminho do calvário, Jesus recusou tomar uma mistura de vinho e mirra, utilizada para atenuar o sofrimento dos condenados. Já na cruz, ao exclamar “tenho sede”, não recusou a posca, o vinho azedo oferecido pelo soldado romano. E após sorver a esponja, bradou antes de expirar: “Está consumado”. Possivelmente, a crença dos peregrinos dos primeiros séculos tivesse raízes em uma crença mais antiga, uma crença de que a ceia cristã foi consumada na cruz, uma crença que Hahn resgatou. Segundo essa crença, o vaso de vinagre poderia ser identificado como um cálice da Última Ceia – não o da bênção, como sugeriu Arculfo. Pelas mãos de Estêfatão, Cristo teria bebido o quarto cálice do Seder de Pessach, o cálice da consumação. 

Conforme observou o estudioso norte-americano Brant Pitre, era a partir da Última Ceia que os cristãos enxergavam a crucificação como um sacrifício. Para o autor: “ao recusar beber o último cálice da Páscoa até o momento de sua morte, Jesus reuniu tudo o que aconteceria com Ele entre a Quinta-feira e a Sexta-feira Santa – sua traição, sua ceia, sua agonia, sua Paixão, sua Morte – e uniu tudo isso com a Páscoa que seria celebrada ‘em memória’ dele.”(8) Segundo Hahn, ao sorver a esponja com posca, a “Páscoa está consumada. A Páscoa foi cumprida. Ela começara na noite anterior como a Páscoa da Antiga Aliança, mas agora, na Sexta-Feira Santa, encontrava cumprimento na Cruz como a Páscoa da Nova Aliança” (9). 

Antes e depois da peregrinação de Arculfo, multidões de peregrinos interromperam os passos entre a Basílica de Constantino e a Igreja do Calvário para venerar “no meio de uma praça” aquela estranha relíquia: um vaso de prata com uma esponja. Exatamente naquele lugar, Cenáculo e Cruz se confundiam. E nessa providencial confusão, é possível enxergar em detalhes a Última Ceia de Cristo.

 

(1) Hahn, Scott. O Quarto Cálice: Desvendando o Mistério da Última Ceia. São Paulo: Quadrante, 2020.
(2) Anônimo. Of the Holy Places Visited by Antoninus Martyr. Tradução: Aubrey Stewart, Ma. Comentários: Col. Sir C. W. Wilson, R.E. Londres: Palestine Pilgrims’ Text Society (PPTS), 1887, p. 17. Disponível em: https://archive.org/details/cu31924028534232/mode/2up. Acesso em: 4 de abril de 2023.

(3) Santo Adomnán. The Pilgrimage of Arculfus in the Holy Land. Tradução: Rev. James Rose Macpherson, B.D. Londres: Palestine Pilgrims’ Text Society (PPTS), 1889, p. 41. Disponível em: https://archive.org/details/ThePilgrimageOfArculfus. Acesso em: 4 de abril de 2023.

(4) Sivera, José Sanchis. El santo Cáliz de la Cena venerado en Valência: Santo Grial. Valência: Suc de Badal, 1914, p. 88.  

(5) Egéria. Egéria – Viagem do Ocidente à Terra Santa, no séc. IV (Itinerarium ad loca sancta). Tradução: Alexandra B. Mariano e Aires A. Nascimento. Lisboa: Edições Colibri, 2009.

(6) Armstrong, Karen. Jerusalém: uma cidade, três religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 252.
(7) Santo Adomnán, p. 11.
(8) Pitre, Brant. Jesus e as raízes judaicas da Eucarística. Campinas: Ecclesiae, 2020, p. 178-179.

(9) Hahn, Scott. , p. 141.

Obrigado por ter lido este artigo. Se quiser se manter atualizado, assine a nossa newsletter clicando aqui e se inscreva no nosso canal do WhatsApp acessando aqui

06 abril 2023, 11:08
<Ant
Abril 2025
SegTerQuaQuiSexSábDom
 123456
78910111213
14151617181920
21222324252627
282930    
Prox>
Maio 2025
SegTerQuaQuiSexSábDom
   1234
567891011
12131415161718
19202122232425
262728293031