Evangelii Gaudium: o “programa” do pontificado de Francisco
Cidade do Vaticano –
Nos cinco anos do aniversário da eleição do Papa Francisco, propomos a sua primeira Exortação apostólica, a “Evangelii Gaudium”, considerada o “programa” do seu pontificado. O texto, de mais de 220 páginas, foi publicado em 26 de novembro de 2013.
O documento nasceu da XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre “A nova evangelização para a transmissão da fé cristã”, de 2012.
O Papa reelabora o que emergiu desse Sínodo de modo pessoal, escrevendo um documento programático e exortativo, utilizando a forma de “Exortação apostólica”. Como tal, tem estilo e linguagem próprios: coloquial e direto, como manifestou Francisco em seus meses de pontificado.
A missionariedade é o coração do texto, em que o Papa convida todos os fiéis cristãos a uma nova etapa evangelizadora, caracterizada pela alegria.
Trata-se de cinco capítulos: “A transformação missionária da Igreja”, “Na crise do compromisso comunitário”, “O anúncio do Evangelho”, “A dimensão social da evangelização” e “Evangelizadores com espírito”.
A alegria do evangelho
“A alegria do evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus”: assim tem início o texto. “Desejo dirigir-me aos fiéis cristãos – escreve o Papa – para convidá-los a uma nova etapa de evangelização marcada por esta alegria e indicar direções para o caminho da Igreja nos próximos anos” (1). Trata-se de um premente apelo a todos os batizados para que com renovado fervor e dinamismo levem aos outros o amor de Jesus num “estado permanente de missão” (25), vencendo “o grande risco do mundo atual”, o de cair “numa tristeza individualista” (2).
O Papa nos convida a “recuperar a frescura original do Evangelho”, encontrando “novas formas” e “métodos criativos”, a não aprisionarmos Jesus nos nossos “esquemas monótonos” (11). Precisamos de uma “uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como elas são” (25) e uma “reforma das estruturas” eclesiais para que “todas se tornem mais missionárias” (27) . O Pontífice pensa também numa “conversão do papado”, para que seja “mais fiel ao significado que Jesus Cristo lhe quis dar e às necessidades atuais da evangelização”. A esperança que as Conferências Episcopais pudessem dar um contributo para que “o sentido de colegialidade” se realizasse “concretamente” – afirma o Papa – “não se realizou plenamente” (32). E’ necessária uma “saudável descentralização” (16). Nesta renovação não se deve ter medo de rever costumes da Igreja “não diretamente ligados ao núcleo do Evangelho, alguns dos quais profundamente enraizados ao longo história” (43) .
Abrir as portas
Sinal de acolhimento de Deus é “ter por todo lado igrejas com as portas abertas” para que aqueles que estão à procura não encontrem “a frieza de uma porta fechada”. “Nem mesmo as portas dos Sacramentos se deveriam fechar por qualquer motivo”. Assim, a Eucaristia “não é um prêmio para os perfeitos mas um generoso remédio e um alimento para os fracos. Estas convicções têm também consequências pastorais que somos chamados a considerar com prudência e audácia” (47). Reafirma de preferir uma Igreja “ferida e suja por ter saído pelas estradas, em vez de uma igreja … preocupada em ser o centro e que acaba prisioneira num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se algo nos deve santamente perturbar … é que muitos dos nossos irmãos vivem “sem a amizade de Jesus (49).
O Papa aponta as “tentações dos agentes da pastoral”: o individualismo, a crise de identidade, o declínio no fervor (78). “A maior ameaça” é “o pragmatismo incolor da vida quotidiana da Igreja, no qual aparentemente tudo procede na faixa normal, quando na realidade a fé se vai desgastando” (83). Exorta a não se deixar levar por um “pessimismo estéril ” (84 ) e a sermos sinais de esperança (86) aplicando a “revolução da ternura” (88). E’ necessário fugir da “espiritualidade do bem-estar” que recusa “empenhos fraternos” (90) e vencer a “mundanidade espiritual”, que “consiste em buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana” (93) . O Papa fala daqueles que “se sentem superiores aos outros”, porque ” inflexivelmente fiéis a um certo estilo católico próprio do passado” e “em vez de evangelizar … classificam os outros”, ou daqueles que têm um “cuidado ostensivo da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas sem que se preocupem com a inserção real do Evangelho” nas necessidades das pessoas ( 95). Esta “é uma tremenda corrupção com a aparência de bem … Deus nos livre de uma igreja mundana sob cortinas espirituais ou pastorais” (97) .
Ele lança um apelo às comunidades eclesiais para não caírem nas invejas e ciúmes: “dentro do povo de Deus e nas diversas comunidades, quantas guerras” (98). “A quem queremos evangelizar com estes comportamentos?” (100).
Responsabilidade dos leigos
Sublinha a necessidade de fazer crescer a responsabilidade dos leigos, mantidos “à margem nas decisões” por um “excessivo clericalismo” (102). Afirma que “ainda há necessidade de se ampliar o espaço para uma presença feminina mais incisiva na Igreja”, em particular “nos diferentes lugares onde são tomadas as decisões importantes” (103). “As reivindicações dos direitos legítimos das mulheres … não se podem sobrevoar superficialmente” (104). Os jovens devem ter “um maior protagonismo” (106). Diante da escassez de vocações em alguns lugares o Papa afirma que “não se podem encher os seminários baseados em qualquer tipo de motivação” (107).
Abordando o tema da inculturação, o Papa lembra que “o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural” e que o rosto da Igreja é “multiforme” (116). “Não podemos esperar que todos povos … para expressar a fé cristã, tenham de imitar as modalidades adotadas pelos povos europeus num determinado momento da história” (118). O Papa reitera “a força evangelizadora da piedade popular” (122) e incentiva a pesquisa dos teólogos convidando-os a ter “a peito a finalidade evangelizadora da Igreja” e a não se contentar “com uma teologia de escritório” (133).
Homilia
Em seguida o Papa detém-se “com uma certa meticulosidade, na homilia”, porque “são muitas as reclamações em relação a este importante ministério e não podemos fechar os ouvidos” (135). A homilia “deve ser breve e evitar de parecer uma conferência ou uma aula ” (138), deve ser capaz de dizer “palavras que façam arder os corações”, evitando uma “pregação puramente moralista ou de endoutrinar” (142). Sublinha a importância da preparação “, um pregador que não se prepara não é ‘espiritual’, é desonesto e irresponsável” (145). “Uma boa homilia deve conter … ‘uma ideia, um sentimento, uma imagem'” (157). A pregação deve ser positiva, para que possa oferecer “sempre esperança” e não deixe “prisioneiros da negatividade” (159). O próprio anúncio do Evangelho deve ter características positivas: “proximidade, abertura ao diálogo, paciência, acolhimento cordial que não condena” (165).
Desafios do mundo contemporâneo
Falando dos desafios do mundo contemporâneo, o Papa denuncia o atual sistema económico: “é injusto pela raiz” (59). ” Esta economia mata” porque prevalece a “lei do mais forte”. A atual cultura do “descartável” criou “algo de novo”: “os excluídos não são ‘explorados’, mas ‘lixo’, ‘sobras'” (53). Vivemos uma “nova tirania invisível, por vezes virtual” de um “mercado divinizado”, onde reinam a “especulação financeira”, “corrupção ramificada”, “evasão fiscal egoísta” (56). Denuncia os “ataques à liberdade religiosa” e as “novas situações de perseguição dos cristãos … Em muitos lugares trata-se pelo contrário de uma difusa indiferença relativista” (61). A família – continua o Papa – “atravessa uma crise cultural profunda” ” Reafirmando “a contribuição indispensável do matrimónio para a sociedade” (66 ), sublinha que “o individualismo pós-moderno e globalizado promove um estilo de vida … que perverte os vínculos familiares” (67) .
O Papa Francisco reafirma “a íntima conexão entre evangelização e promoção humana” (178 ) e o direito dos Pastores “para emitir opiniões sobre tudo o que se relaciona com a vida das pessoas” (182). “Ninguém pode exigir de nós que releguemos a religião à secreta intimidade das pessoas, sem qualquer influência na vida social”.
Cita João Paulo II onde diz que a Igreja “não pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça” (183). “Para a Igreja, a opção pelos pobres é uma categoria teológica” antes de ser sociológica. “Por isso peço uma Igreja pobre para os pobres. Eles têm muito a ensinar-nos” (198). “Até que não se resolvam radicalmente os problemas dos pobres … não se resolverão os problemas do mundo” (202). “A política, tanto denunciada” – diz ele – “é uma das formas mais preciosas de caridade”. “Rezo ao Senhor para que nos dê mais políticos que tenham verdadeiramente a peito … a vida dos pobres!” Em seguida, um aviso: “qualquer comunidade dentro da Igreja” que se esquecer dos pobres corre “o risco de dissolução” (207) .
Cuidar dos mais fracos
O Papa nos convida a cuidar dos mais fracos: “os sem-teto, os dependentes de drogas, os refugiados, os povos indígenas, os idosos cada vez mais sós e abandonados” e os migrantes, para quem o Papa exorta os Países “a uma abertura generosa” (210 ). Fala das vítimas de tráfico e de novas formas de escravidão: “Nas nossas cidades está implantado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos cheias de sangue por causa de uma cumplicidade cómoda e silenciosa” (211). “Duplamente pobres são as mulheres que sofrem situações de exclusão, maus tratos e violência” ( 212) . “Entre estes fracos que a Igreja quer cuidar” estão “as crianças em gestação, que são as mais indefesas e inocentes de todos, às quais hoje se quer negar a dignidade humana” (213) . “Não se deve esperar que a Igreja mude a sua posição sobre esta questão … Não é progressista fingir de resolver os problemas eliminando uma vida humana” (214). E depois, um apelo para o respeito de toda a criação: “somos chamados a cuidar da fragilidade das pessoas e do mundo em que vivemos” ( 216) .
Paz
No que diz respeito ao tema da paz, o Papa afirma que é “necessária uma voz profética” quando se quer implementar uma falsa reconciliação “que mantém calados” os pobres, enquanto alguns “não querem renunciar aos seus privilégios” (218). Para a construção de uma sociedade “em paz, justiça e fraternidade” indica quatro princípios (221): “o tempo é superior ao espaço” (222) significa “trabalhar a longo prazo, sem a obsessão dos resultados imediatos” (223). “A unidade prevalece sobre o conflito” (226) significa operar para que os opostos atinjam “uma unidade multi-facetada que gera nova vida” (228). “A realidade é mais importante que a ideia” (231) significa evitar que a política e a fé sejam reduzidas à retórica (232). “O todo é maior do que a parte” significa colocar em conjunto globalização e localização (234).
Diálogo
“A evangelização – prossegue o Papa – também implica um caminho de diálogo”, que abre a Igreja para colaborar com todas as realidades políticas, sociais, religiosas e culturais (238). O ecumenismo é “uma via imprescindível da evangelização”. Importante o enriquecimento recíproco: “quantas coisas podemos aprender uns dos outros!”, por exemplo”, no diálogo com os irmãos ortodoxos, nós os católicos temos a possibilidade de aprender alguma coisa mais sobre o sentido da colegialidade episcopal e a sua experiência de sinodalidade” (246), ” o diálogo e a amizade com os filhos de Israel fazem parte da vida dos discípulos de Jesus” (248 ), “o diálogo inter-religioso”, que deve ser conduzido “com uma identidade clara e alegre” , é ” uma condição necessária para a paz no mundo”, e não obscurece a evangelização (250-251), “nesta época adquire notável importância a relação com os crentes do Islão (252): o Papa implora “humildemente” para que os Países de tradição islâmica garantam a liberdade religiosa para os cristãos, mesmo “tendo em conta a liberdade de que gozam os crentes do Islão nos países ocidentais”. “Diante de episódios de fundamentalismo violento” o Papa convida a “evitar odiosas generalizações, porque o verdadeiro Islão e uma adequada interpretação do Alcorão se opõem a toda a violência” ( 253). E contra a tentativa de privatizar as religiões em alguns contextos, afirma que “o respeito devido às minorias de agnósticos ou não-crentes não se deve impor de forma arbitrária, que silencie as convicções das maiorias de crentes ou ignore a riqueza das tradições religiosas” (255). E reafirma, portanto, a importância do diálogo e da aliança entre crentes e nã-crentes (257) .
Espírito Santo
O último capítulo é dedicado aos “evangelizadores com o Espírito”, que são aqueles “que se abrem sem medo à ação do Espírito Santo”, que “infunde a força para anunciar a novidade do Evangelho com ousadia (parresia ), em voz alta e em todo tempo e lugar, mesmo contra a corrente” (259). Trata-se de “evangelizadores que rezam e trabalham” (262), na certeza de que “a missão é uma paixão por Jesus mas, ao mesmo tempo, é uma paixão pelo seu povo” (268): “Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros” (270). “Na nossa relação com o mundo – esclarece o Papa – somos convidados a dar a razão da nossa esperança, mas não como inimigos que apontam o dedo e condenam” (271). “Pode ser missionário – acrescenta ele – apenas quem se sente bem na busca do bem do próximo, quem deseja a felicidade dos outros” (272): “se eu conseguir ajudar pelo menos uma única pessoa a viver melhor, isto já é suficiente para justificar o dom da minha vida” (274).
O Papa convida-nos a não desanimar perante as falhas ou escassos resultados, porque a “fecundidade muitas vezes é invisível, indescritível, não pode ser contabilizada”; devemos saber “apenas que o dom de nós mesmos é necessário” (279). A Exortação termina com uma oração a Maria, “Mãe da Evangelização”. “Existe um estilo mariano na atividade evangelizadora da Igreja. Porque sempre que olhamos Maria voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e do afeto” (288).
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