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Solidariedade é a experiência de ser tocado pela história do outro, seu sofrimento e esperança Solidariedade é a experiência de ser tocado pela história do outro, seu sofrimento e esperança 

Quaresma: a esmola é o amor que vem de Deus

Em entrevista ao jornal vaticano L’Osservatore Romano, o secretário do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, Pe. Bruno-Marie Duffé, revela o que dá sentido à esmola: “é o olhar que oferecemos, antes da ajuda material que podemos dar a quem precisa”; é a experiência de sermos tocados por aquilo que vive o outro: “sua história, seu sofrimento, sua esperança”.

Nicola Gori, Andressa Collet – Cidade do Vaticano

A esmola, o compartilhar, o cuidado a quem sofre, mas também o empenho político e as relações nas redes sociais: são tantos os âmbitos em que é possível viver a caridade durante a Quaresma. O secretário do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, Pe. Bruno-Marie Duffé, concedeu entrevista ao jornal vaticano L’Osservatore Romano e iniciou abordando a ligação entre a esmola e a penitência.

Ouça a transcrição da entrevista

A esmola é a expressão da conversão na Quaresma

Pe. Duffé – A Quaresma é um período de conversão. Retornamos à fonte da nossa fé e percorremos estes 40 dias deixando-nos tocar pela Palavra de Deus.

“A esmola – agàpe – é o amor que vem de Deus, nos chama e nos leva a aprender de novo a amar os outros, com respeito e humildade.”

A penitência é uma atitude em que reconhecemos de não amar. Pode-se dizer, então, que a esmola é a expressão da nossa conversão: passamos do egoísmo ao encontro. Essa passagem – da morte para a vida – através do amor aos irmãos e irmãs, está no centro da existência cristã e prossegue obviamente além do período da Quaresma. Prossegue todos os dias como um caminho de renovação, com a graça de Deus. As três exigências propostas para o período da Quaresma – a oração, o jejum e a esmola – culminam na prática do perdão que é a expressão  do amor maior: devemos nos reconhecer pecadores diante de Deus e pedir perdão àquele ou àquela que ferimos. Deus é o nosso perdão e nos leva a viver o perdão entre nós.

Deixar sermos tocados pela história do outro

A esmola é frequentemente só uma maneira de “não pesar na consciência” diante dos pobres. Como fazer da solidariedade um estilo de vida?

Pe. Duffé – Aquilo que dá sentido à esmola é o olhar que oferecemos, antes da ajuda material que podemos dar a quem precisa. É o coração a se oferecer e que se oferece; o apoio material é a expressão de uma humanidade que se doa com joia. A “consciência tranquila” consiste em doar sem colocar na nossa doação aquele amor que alivia e une. A “consciência tranquila” está voltada para si mesma: o amor autêntico se satisfaz ao cruzar o olhar com o outro.

“A solidariedade é, de fato, a experiência de ser tocados por aquilo que vive o outro: a sua história, o seu sofrimento e a sua esperança. Podemos, assim dizer, que a esmola é um compartilhar e que cada um oferece ao outro, através do seu olhar, o seu coração e a sua mão aberta, de viver e de continuar o caminho. O “pouco” que oferecemos vira sinal de fraternidade, inspirada pelo amor superabundante de Deus Pai. A solidariedade vira um estilo de vida quando aceitamos encontrar e nos aproximar de quem não conhecemos.”

Isso faz de cada homem um mensageiro de luz e de esperança. Doando, no gesto da esmola, recebemos aquilo que o outro tem dentro de si e vivemos a alegria da troca. De fato, ninguém é tão pobre de não ter nada para oferecer. Dito isso, é, porém, sempre importante unir a esmola à oração e ao jejum.

De mãos dadas com a solidariedade

Uma das obras de caridade é também aquela de levar o Evangelho a quem mais sofre. De que maneira se pode combater a cultura do descarte que abre a porta à eutanásia?

Pe. Duffé – Não é necessário dizer “também”, mas “essencialmente”. O Evangelho é “o alegre anúncio aos míseros”: “a libertação dos prisioneiros”, “a luz aos cegos”, “a consolação a todos os aflitos”, para retomar as palavras do Livro de Isaías em que Jesus apresenta como a realização da sua missão. Antes de qualquer outra coisa, o Evangelho é uma consolação, um cuidado a todas as pessoas que sofrem.

“Trata-se, então, para cada batizado, de “estar próximo” dos que sofrem, por causa de doença, pela violência ou solidão. Não se trata tanto de falar, mas de estar ali para compartilhar o momento da escuta.”

Sabemos bem que aquele instante nos faz olhar a vida como uma oportunidade, mesmo quando fazemos a experiência dos nossos próprios limites. É de mãos dadas que fazemos a passagem para a Vida. Não tem outra forma para combater aquela que chamamos “a cultura do descarte”, que descobrir, até o último instante da nossa existência, que a pessoa tem alguma coisa para nos oferecer e nós temos alguma coisa para compartilhar com ela. E quando algumas têm um desejo de morte, cabe a nós, com doçura, transformá-lo num desejo de amor.

A sensibilidade com quem precisa

“Cuidem dos doentes” é um mandamento de Jesus. A Quaresma pode ser uma oportunidade para redescobrir essa forma de caridade?

Pe. Duffé – Essa pergunta nos leva a nos questionar o que quer dizer “cuidar”. Trata-se de cuidar do outro e de despertar nele uma esperança mais forte que o sofrimento. É justo dizer que “cuidar” é uma forma especial de caridade, vista como um amor de preferência. A Quaresma é um período para redescobrir quantos estão “em sofrimento”, isto é, sozinhos e esperando. Sempre se está sozinho quando se sofre, porque estão doentes ou porque são emarginados. Mas “estar em sofrimento” é também “estar em espera”. A chamada de Jesus consiste, então, no ser sensíveis com aquele ou aquela que está esperando o gesto de amor que doa novamente a vida. Claro, procura-se sempre a cura do corpo, mas não tem cura sem atenção e delicadeza com aquele que está “próximo”. A caridade que vem de Deus nos inspira a presença justa que ama, assegura e abre à confiança compartilhada. Confiança quer dizer “eu acredito contigo”.

O anúncio do Evangelho e a política

Paulo VI repetiu muitas vezes que “a política é a maior forma de caridade”. Acredita que a presença e o empenho dos católicos sejam necessários na política?

Pe. Duffé – Às vezes se atribui essa frase a Pio XII, outras a Paulo VI. Ambos os Papas sublinharam a importância do empenho dos católicos na cidade e na vida política. Essa presença não é somente necessária, é também indispensável. Por dois motivos principais: o primeiro diz respeito à realidade da vida política, lugar de deliberação e da decisão que implica no futuro da comunidade humana; o segundo é que Cristo envia os seus discípulos para que ofereçam a paz a “todas as casas” e revelem a cada membro da comunidade o talento e a promessa que tem em si.

“Existe, então, uma ligação muito estreita entre o anúncio do Evangelho e a participação à construção de uma sociedade de justiça e de fraternidade.”

A política não se reduz jamais nem ao exercício do poder, nem à gestão das instituições: esse é o lugar da palavra, da promessa e do perdão, sem os quais não pode existir um futuro compartilhado. Na vida coletiva, os batizados são convidados a serem servidores da Palavra doada, da justiça que é a condição da paz e do perdão que oferece possibilidade de um futuro juntos. Paulo VI insistia em dizer que esse empenho dos cristãos se fundamenta na referência do Evangelho, na necessidade de uma análise compreensiva das situações e dos princípios da doutrina social da Igreja: dignidade de cada pessoa, responsabilidade compartilhada, solidariedade e bem comum, atenção primária aos mais pobres.

A Quaresma em época de redes sociais

Hoje, o uso das redes sociais reduz as possibilidades reais do encontro e do compartilhar. Pode-se viver a caridade também através desses instrumentos?

Pe. Duffé – Aquilo que vale para qualquer instrumento vale também também para a tecnologia contemporânea: pode ser um instrumento para a vida ou um instrumento para a morte. Depende do uso que fazemos ou da compreensão que temos. É justo dizer que o uso das redes sociais pode ser negativo: pode inclusive levar a transmitir mentiras que são fonte de injustiça e até de violência. Mas é preciso também dizer que o uso desses meios pode ajudar o conhecimento recíproco e a solidariedade. Pode também salvar vidas se usadas em modo correto, o que significa colocar o instrumento a serviço do encontro. Nós precisamos, como propõe o Papa Francisco, desenvolver uma “cultura do encontro”. O ponto central é saber, então, como permanecermos patrões dos nossos conhecimentos e dos nossos objetivos. É claro que depende de nós – de cada um e de todos juntos – procurar o bem e rejeitar o mal.

“Uma mensagem violenta ou uma informação falsa podem matar, a gente sabe, mas uma palavra de encorajamento pode salvar e nos tornar livres.”

O período da Quaresma é também um período de reflexão sobre o uso que fazemos dos bens que temos. É necessário um discernimento. Às vezes também um “jejum” do telefone ou do computador pode nos permitir voltar à escuta interior de Deus, para dar uma atenção renovada às outras pessoas.

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14 março 2019, 16:45