Documento da Comissão Teológica Internacional sobre "Liberdade religiosa"
Sergio Centofanti - Cidade do Vaticano
Foi publicado no último dia 26 de abril, após aprovação do Papa Francisco, um novo documento da Comissão Teológica Internacional (CTI), intitulado "A liberdade religiosa para o bem de todos. Abordagem teológica aos desafios contemporâneos".
O texto, de 37 páginas, propõe antes de tudo uma atualização fundamentada da recepção da Declaração Conciliar Dignitatis humanae (1965) sobre a liberdade religiosa, "aprovada em um contexto histórico significativamente diferente do atual".
Fundamentalismo e relativismo
Nas sociedades secularizadas de hoje - observa o documento - "as diferentes formas de comunidade religiosa ainda são socialmente percebidas como fatores relevantes de intermediação entre os indivíduos e o Estado".
Diante disto, "a radicalização religiosa de hoje referida como 'fundamentalismo' (...), não parece um simples retorno mais" observador "à religiosidade tradicional" mas "frequentemente é caracterizada por uma específica reação à concepção liberal do Estado moderno, por causa de seu relativismo ético e de sua indiferença em relação à religião ".
Totalitarismo brando do Estado liberal
"Por outro lado, o Estado liberal é fonte de críticas por muitos também pela razão oposta: isto é, pelo fato de que a sua proclamada neutralidade não parecer capaz de evitar a tendência em considerar a fé professada e a pertença religiosa como um obstáculo à admissão à plena cidadania cultural e política dos indivíduos. Uma forma de "totalitarismo brando", poder-se-ia dizer, que torna particularmente vulneráveis à difusão do niilismo ético na esfera pública".
Ideologia da neutralidade que marginaliza a fé
"A pretensa neutralidade ideológica de uma cultura política que declara querer construir-se sobre a formação de regras meramente processuais de justiça, removendo toda justificação ética e toda a inspiração religiosa, mostra a tendência a elaborar uma ideologia da neutralidade que, de fato, impõe a marginalização , se não a exclusão, de expressão religiosa da esfera pública. E, portanto, da plena liberdade de participação à formação da cidadania democrática. Disto vem à descoberto a ambivalência de uma neutralidade da esfera pública somente aparente, e de uma liberdade civil objetivamente discriminativa. Uma cultura civil que define o próprio humanismo por meio da remoção do componente religioso do humano, encontra-se obrigada a remover também partes decisivas de sua própria história: do próprio saber, da própria tradição, da própria coesão social. O resultado é a remoção de partes sempre mais consistentes da humanidade e da cidadania a partir das quais a própria sociedade é formada.
A reação à fraqueza humanista do sistema faz até mesmo parecer justificado para muitos (sobretudo os jovens), a inclinação a um fanatismo desesperado: ateísta ou também teocrático. A incompreensível atração exercida por formas violentas e totalitárias de ideologia política, ou de militância religiosa, que pareciam já entregues ao juízo da razão e da história, deve nos questionar de maneira nova e com maior profundidade de análise".
Imitação laicista da concepção teocrática
Observa-se também que, quando tal Estado "moralmente neutro" começa a "controlar o campo de todos os juízos humanos, ele começa a assumir os traços de um Estado" eticamente autoritário, "que assume a forma de uma “imitação laicista” da concepção teocrática da religião, que decide a ortodoxia e a heresia da liberdade em nome de uma visão político-salvífica da sociedade ideal: decidindo a priori sua identidade perfeitamente racional, perfeitamente civil e perfeitamente humana. O absolutismo e o relativismo dessa moralidade liberal entram em conflito, aqui, com os efeitos de exclusão iliberal na esfera pública, dentro da suposta neutralidade liberal do Estado ".
O retorno da religião no terceiro milênio
O documento destaca, portanto, a desmentida da "tese clássica, que previa a redução da religião como efeito inevitável da modernização técnica e econômica": hoje, pelo contrário, fala-se do "retorno da religião à esfera pública".
A automática correlação entre o progresso civil e a extinção da religião, na verdade, havia sido formulada com base em um preconceito ideológico, que considerava a religião como a construção mítica de uma sociedade humana não ainda proprietária dos instrumentos racionais capazes de produzir emancipação e bem-estar da sociedade. Este esquema revelou-se inadequado".
Ao mesmo tempo - observa o texto - o chamado "retorno da religião" também apresenta aspectos de "regressão" cultivados "na esteira de arbitrárias contaminações entre a busca pelo bem-estar psicofísico e construções pseudocientíficas da visão do mundo", sem falar da "grosseira motivação religiosa de certas formas de fanatismo totalitário, que visam impor a violência terrorista mesmo dentro das grandes tradições religiosas".
Desenvolvimentos doutrinários
O documento explica o desenvolvimento doutrinário da Declaração Conciliar, onde o Magistério da Igreja condenava em um tempo a liberdade de consciência, em um "contexto histórico" em que o cristianismo, que representava "a religião do Estado e a religião de fato dominante na sociedade ocidental", sofria “a agressiva impostação de um secularismo estatal ".
A Dignitatis humanae traz "à sua evidência fundamental o ensinamento do cristianismo, segundo o qual não se deve obrigar à religião, porque esse forçamento não é digno da natureza humana criada por Deus e não corresponde à doutrina da fé professada pelo cristianismo. Deus chama cada homem para si, mas não obriga ninguém. Portanto, esta liberdade torna-se um direito fundamental que o homem pode reivindicar em consciência e responsabilidade perante o Estado".
Papa Wojtyla: liberdade religiosa, a fundação de outras liberdades
Recorda-se portanto, que São João Paulo II quando afirma que a liberdade religiosa, fundamento de todas as outras liberdades, é uma exigência irrenunciável da dignidade de todo homem. Não é um direito entre outros, mas constitui "a garantia de todas as liberdades que asseguram o bem comum das pessoas e dos povos".
Bento XVI: liberdade religiosa, não só para os fiéis
Para Bento XVI, o direito à liberdade religiosa está enraizado na dignidade da pessoa enquanto ser espiritual, relacional e aberto ao transcendente. Não é portanto, um direito reservado apenas para os crentes, mas a todos, porque síntese e ápice dos outros direitos fundamentais”.
Com referência às relações com o Estado, o Papa Ratzinger fala de "laicidade positiva", ou seja, o princípio que promove a cooperação entre o âmbito político e o religioso na devida distinção de suas respectivas tarefas. Nesse sentido, a dimensão não somente individual, mas também comunitária da religião, favorece a construção do bem comum, para além de qualquer tentação à hegemonia.
Francisco: liberdade religiosa, baluarte contra totalitarismos
O Papa Francisco enfatiza que a liberdade religiosa não visa preservar uma "subcultura", como gostaria um "certo laicismo, constitui um precioso dom de Deus para todos, garantia basilar de qualquer outra expressão de liberdade, baluarte contra os totalitarismos e contribuição decisiva à "humana fraternidade".
Por esta razão, “Francisco traz uma grande atenção aos muitos mártires do nosso tempo, vítimas de perseguições e violências por motivos religiosos, bem como de ideologias que excluem Deus da vida dos indivíduos e das comunidades. Para o Pontífice, a religião autêntica, a partir de dentro, deve ser capaz de dar conta da existência do outro, para promover um espaço comum, um ambiente de colaboração com todos, na determinação de caminhar juntos, de rezar juntos, de trabalhar juntos, de nos ajudar para estabelecer a paz”.
Direito à objeção de consciência
A Igreja proclama a liberdade religiosa para todos e também se espera "que seus membros possam viver sua fé livremente e que os direitos de sua consciência sejam protegidos onde respeitam os direitos dos outros. Viver a fé às vezes pode exigir objeção de consciência. De fato, as leis civis não obrigam em consciência quando contradizem a ética natural, e por isso o Estado deve reconhecer o direito das pessoas à objeção de consciência”.
Violações da liberdade religiosa
"De fato - afirma o documento - em alguns países não há liberdade jurídica de religião, enquanto em outros a liberdade jurídica é drasticamente limitada ao exercício comunitário de culto ou de práticas estritamente privadas. Em tais países a expressão pública de uma crença religiosa não é permitida, geralmente qualquer forma de comunicação religiosa é proibida, e penalidades severas, incluindo a pena de morte, são reservadas para aqueles que desejam se converter ou buscam converter outras pessoas. Nos países ditatoriais, onde prevalece um pensamento ateu, - e, com as devidas distinções, mesmo em alguns países que se consideram democráticos - os membros das comunidades religiosas são frequentemente perseguidos ou submetidos a tratamentos desfavoráveis no local de trabalho, são excluídos dos cargos públicos e a eles é negado o acesso a certos níveis de assistência social. Da mesma forma, as obras sociais criadas por cristãos (no campo da saúde, da educação ...) estão sujeitas a limitações em nível legislativo, financeiro ou comunicativo, que tornam seu desenvolvimento difícil, se não impossível. Em todas estas circunstâncias, não há verdadeira liberdade de religião. Uma verdadeira liberdade de religião é possível somente se puder se expressar ativamente".
Missão ad gentes e diálogo inter-religioso
O diálogo inter-religioso, favorecido pela liberdade religiosa, caminho para a paz "na busca do bem comum junto com os representantes de outras religiões", é "uma dimensão inerente à missão da Igreja. Não é, enquanto tal, o objetivo da evangelização, mas contribui grandemente para isso; não deve, portanto, ser entendido nem implementado em alternativa ou em contradição com a missão ad gentes".
Martírio cristão: o amor que vence o ódio
O texto trata também do tema do "martírio", como "supremo testemunho não violento da própria fidelidade à fé, feiro objeto de específico ódio, intimidação e perseguição". O martírio torna-se "o símbolo extremo da liberdade de opor o amor à violência e a paz ao conflito.
Em muitos casos, a pessoal determinação do mártir da fé em aceitar a morte, tornou-se semente de libertação religiosa e humana para uma multidão de homens e mulheres, a ponto de obter a libertação da violência e a superação do ódio. A história da evangelização cristã atesta isto, também através do início de processos e de mudanças sociais de alcance universal. Estes testemunhos da fé são motivo de admiração e seguimento por parte dos fiéis, mas também de respeito por parte de todos os homens e mulheres que têm a peito a liberdade, a dignidade e a paz entre os povos. Os mártires resistiram à pressão da retaliação, anulando o espírito de vingança e da violência com a força do perdão, do amor e da fraternidade".
Martírio branco
"Às vezes, as pessoas não são mortas em nome de sua prática religiosa, todavia devem sofrer atitudes profundamente ofensivas, que as mantêm à margem da vida social: exclusão de cargos públicos, proibição indiscriminada de seus símbolos religiosos, exclusão de certos benefícios econômicos e sociais ..., no que é denominado de "martírio branco" como um exemplo de confissão de fé. Este testemunho fornece ainda hoje prova de si em muitas partes do mundo: não deve ser atenuado, como se fosse um simples efeito colateral dos conflitos pela supremacia étnica ou pela conquista de poder. O esplendor deste testemunho deve ser bem compreendido e interpretado. Ele nos instrui sobre o bem autêntico da liberdade religiosa na maneira mais clara e eficaz. O martírio cristão mostra a todos o que acontece quando a liberdade religiosa do inocente é obstaculizada e morta: o martírio é o testemunho de uma fé que permanece fiel a si mesma, recusando-se até o fim a vingar-se ou matar. Neste sentido, o mártir da fé cristã não tem nada a ver com o suicida assassino em nome de Deus: tal confusão já é em si mesma uma corrupção da mente e uma ferida da alma".
Igreja respeitosa da liberdade individual e do bem comum
"O cristianismo não fecha a história da salvação dentro dos limites da história da Igreja", porque toda a história humana deve ser vista à luz do amor de Deus, que "quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade". (1 Tim 2: 4).
"A forma missionária da Igreja, inscrita na disposição da própria fé, obedece à lógica do dom, ou seja, da graça e da liberdade, não a do contrato e da imposição. A Igreja está ciente do fato de que, mesmo com as melhores intenções, essa lógica foi contradita - e sempre há o risco de sê-lo - devido aos comportamentos deformados e incoerentes com a fé recebida". A Igreja tem um estilo de testemunho da fé "absolutamente respeitoso da liberdade individual e do bem comum. Este estilo, longe de atenuar a fidelidade ao evento salvífico, que é o tema do anúncio da fé, deve tornar ainda mais transparente a sua distância de um espírito de dominação, interessado na conquista do poder para si mesmo”.
A liberdade de acolher o Evangelho
"O Reino de Deus - concluiu o documento - já está em ação na história, à espera do advento do Senhor, que nos introduzirá no seu cumprimento. O Espírito que diz "Vem!" (Ap 22, 17), que ouve os gemidos da criação (cf. Rm 8, 22) e faz "novas todas as coisas novas" (Apocalipse 21: 5) traz ao mundo a coragem da fé que sustenta (cf. Rm 8, 1-27), em favor de todos, a beleza da "razão [logos] da esperança" (1 Pe 3,15) que está em nós. E a liberdade, para todos, de ouvi-lo e segui-lo”.
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