Diário da Crise do Pe. Lombardi: morrer no Senhor
FEDERICO LOMBARDI
Uma das maiores intuições espirituais de São João Paulo II foi a de nos exortar a animar e preservar a memória dos mártires do século XX, um dos séculos mais violentos da história. Certamente, recordando diante de Deus as várias testemunhas da fé, fomos levados a recordar com elas inúmeras vítimas, e mais amplamente ainda mulheres e homens de todas as raças, tempos e condições que perderam suas vidas em circunstâncias dramáticas, na terra e no mar, na guerra e na paz, longe de todo conforto humano, vítimas de violências insensatas ou catástrofes irreprimíveis, ou no abandono e na solidão.
Um imenso grito de dor parece surgir no silêncio do pó de todos os cantos da terra para quem tem ouvidos para ouvi-lo, lembrando-se de milhões e bilhões de esquecidos. Grito de criaturas que se sentem mergulhadas num abismo de vazio e esquecimento. Para eles e com eles também queremos elevar um grito de pedido de misericórdia.
As imagens das filas de caixões alinhadas nas igrejas da Lombardia, as da grande fossa perto de Nova York, o pensamento de muitas pessoas, em particular de muitas pessoas idosas que morreram em condições de isolamento e solidão nos últimos meses, nos tocaram profundamente. Não apenas pela justa dor dos parentes que não puderam viver a luto de seus entes queridos com confortos humanos e cristãos, mas ainda mais pelos defuntos, por aqueles que morreram e morrem na solidão.
Tudo isso nos faz entender mais uma vez como a proximidade e afeição sincera no tempo da fragilidade, velhice e doença são preciosas. Mas também nos faz refletir que provavelmente toda morte, incluindo a nossa, sempre traz consigo uma dimensão de solidão. Pois no final todo conforto e proximidade dos outros se tornam impotentes e ninguém é capaz de nos tirar da passagem final.
Como podemos nos preparar para esse momento, que nos une a todos, antecipado para as vítimas do coronavírus, mas que estava diante delas assim como está diante de nós? Como fugir da angústia de cair no nada?
Alguns dias atrás, tivemos a graça de reviver a morte de Jesus. Todos os dias a revivemos unindo-nos sacramentalmente ou espiritualmente com Jesus na comunhão. Mas a Sexta-feira e o Sábado Santos trazem consigo uma graça especial. A morte de Jesus é verdadeira e cruel, carrega sobre si toda a experiência do abandono dos homens e também de um misterioso abandono por parte Deus, como diz o versículo do Salmo que Jesus exclama na cruz. Uma morte tão verdadeira que segue o ser cadáver num sepulcro no dia de Sábado. No Credo, dizemos: “...foi crucificado, morreu e foi sepultado; desceu à mansão dos mortos...”. A descida de Jesus ao abismo diz que ele se torna próximo e irmão de todos aqueles que desceram ao abismo da morte. Não se esquece de nenhum. Para Jesus não há mortes esquecidas, em nenhum lugar da terra e da história, em nenhum canto afetado pela pandemia. Jesus realmente morreu como eles e com eles.
Depois da morte de Jesus, sua descida ao abismo e sua ressurreição, a morte não é mais a mesma de antes. “Morte, onde está a sua vitória?”, exclama São Paulo. A morte agora pode ser vivida com Jesus, que revela um amor de Deus mais forte que a morte. E isso vai além de toda a solidão humana. A morte, mesmo a mais desconhecida e esquecida, pode confiar o seu espírito nas mãos de um Pai.
Poucos dias atrás, o Papa Francisco na Santa Marta, comentando as palavras de Jesus a Nicodemos, convidou todos a olhar para o Crucifixo. É o ponto central da fé e da vida cristã. Quem viu não poderá esquecer as imagens de São João Paulo II abraçado na cruz em sua capela alguns dias antes de sua morte, enquanto no Coliseu o povo se uniu a ele em oração na Via-Sacra, na Sexta-feira Santa. Não há outra maneira de nos preparar para viver a morte a não ser olhar com toda a alma o crucifixo que morre conosco e por nós, e permanecer abraçados a ele com todo o coração. Então a morte vivida com Jesus perderá o seu rosto assustador e deixará intuir um mistério de amor e misericórdia. Então talvez não sentiremos mais o impulso de rejeitar o pensamento e cancelá-lo de nossa cotidianidade, pelo contrário, com fé e com o passar do tempo nos tornará familiar até que se tornar “irmã”, como diz São Francisco.
Mesmo no mundo secularizado, a morte chega, com o coronavírus ou de outra forma. Mas não nos esqueçamos de que, graças a Jesus, a morte não tem mais a última palavra, mas toda morte, mesmo a mais esquecida e solitária, não é cair no nada, mas nas mãos do Pai.
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