II Pregação da Quaresma - texto integral
Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.
“QUEM DE VÓS PODE ACUSAR-ME DE PECADO?”
Jesus Cristo, “verdadeiro homem”
Segunda pregação da Quaresma
"O pensamento moderno, iluminista, nasce sob o signo da máxima de viver “etsi Deus non daretur”, como se Deus não existisse. O pastor Dietrich Bonhoeffer retomou esta máxima, buscando dar-lhe um conteúdo cristão positivo. Nas suas intenções, não era uma concessão ao ateísmo, mas um programa de vida espiritual: fazer o próprio dever também quando Deus parecer ausente; em outras palavras, não fazer dele um Deus – tapa-buracos, sempre pronto a intervir onde o homem falhou.
Também nesta versão, a máxima é discutível e foi, justamente, contestada. Mas a nós, neste momento, ela interessa por outra razão. Existe um perigo mortal para a Igreja, e é o de viver “etsi Christus non daretur”, como se Cristo não existisse. É o pressuposto com o qual o mundo e seus meios de comunicação falam todo o tempo da Igreja. Dela, interessam a história (sobretudo a negativa, não a da santidade), a organização, o ponto de vista sobre os problemas do momento, os fatos e as fofocas dentro dela. Raramente se encontra mencionada a pessoa de Jesus. Há alguns anos, foi proposta – e ainda vigora em alguns países – a ideia de uma possível aliança entre fiéis e não fiéis, baseada nos valores civis e éticos comuns, nas raízes cristãs da cultura e assim por diante. Um pacto, em outras palavras, não baseado no que aconteceu no mundo com a vinda de Cristo, mas no que aconteceu em seguida, depois dele.
A isso se acrescenta um fato objetivo, infelizmente, inevitável. Cristo não entra em questão em nenhum dos três diálogos mais vivazes em curso hoje, entre a Igreja e o mundo. Não entra no diálogo entre fé e filosofia, porque a filosofia se ocupa de conceitos metafísicos, não de realidades históricas, como é a pessoa de Jesus de Nazaré; não entra no diálogo com a ciência, com a qual se pode unicamente discutir sobre a existência ou não de um Deus criador e de um projeto inteligente abaixo da evolução; não entra, enfim, no diálogo inter-religioso, onde se ocupa do que as religiões podem fazer juntas, em nome de Deus, pelo bem da humanidade.
Na preocupação – além do mais, justíssima – de responder às exigências e provocações da história e da cultura, nós corremos o perigo mortal de nos comportarmos, também nós, fiéis, “etsi Christus non daretur”. Como se fosse possível falar da Igreja prescindindo de Cristo e do seu Evangelho. Tocaram-me fortemente as palavras pronunciadas pelo Santo Padre na Audiência Geral de 25 de novembro passado. Dizia – e se entendia pelo tom que isso o tocava profundamente –:
Aqui [nos Atos dos Apóstolos, 2,42] encontramos quatro caraterísticas essenciais da vida eclesial: primeira, a escuta do ensinamento dos apóstolos; segunda, a salvaguarda da comunhão recíproca; terceira, a fração do pão; e quarta, a oração. Elas lembram-nos que a existência da Igreja tem sentido, se permanecer firmemente unida a Cristo, isto é, na comunidade, na sua Palavra, na Eucaristia e na oração. É o modo de nos unirmos a Cristo (...). A pregação e a catequese dão testemunho das palavras e dos gestos do Mestre; a busca constante da comunhão fraterna preserva dos egoísmos e dos particularismos; a fração do pão realiza o sacramento da presença de Jesus no meio de nós: Ele nunca estará ausente, na Eucaristia é precisamente Ele, Ele vive e caminha conosco. E por fim, a oração, que é o espaço do diálogo com o Pai, através de Cristo no Espírito Santo. Na Igreja, tudo o que cresce fora destas “coordenadas” está desprovido de fundamento.
As quatro coordenadas da Igreja, como se vê, reduzem-se, nas palavras do papa, a uma só: permanecer ancorada em Cristo. Tudo isso fez nascer em mim o desejo de dedicar estas meditações quaresmais à pessoa de Jesus Cristo. Tive que superar, eu mesmo por primeiro, uma objeção. Um olhar no índice dos documentos do Vaticano II, no verbete “Jesus Cristo”, ou uma rápida passagem pelos documentos pontifícios dos últimos anos, fala-nos dele infinitamente mais do que podemos dizer nestas breves meditações quaresmais. Qual é, então, a utilidade de escolher este tema? É que aqui se falará somente dele, como se existisse só ele, e valesse a pena se ocupar só dele (o que é, definitivamente, a verdade!).
Podemos fazê-lo porque não somos constrangidos, como é o Magistério, a nos ocuparmos também de outras questões: dos problemas pastorais, daqueles éticos, sociais, ambientais, neste momento, dos problemas criados pela pandemia. Ai se fizer, naturalmente, somente o que fazemos aqui, mas ai se jamais o fizer. Da minha experiência com a televisão, aprendi uma coisa. Existem vários modos de enquadrar um objeto. Há o “plano total”, no qual se enquadra quem fala com tudo o que o circunda; há o “primeiro plano”, no qual se enquadra somente a pessoa que fala; há, enfim, o chamado “primeiríssimo plano”, no qual se enquadra apenas o rosto, ou mesmo somente os olhos de quem fala. Eis o que, nestas meditações, nós propomos em fazer, com a ajuda de Deus, primeiríssimos planos sobre a pessoa de Jesus Cristo.
O nosso intuito não é apologético, mas espiritual. Em outras palavras, não falamos para convencer os outros, os não fiéis, mas para que ele se torne sempre mais realmente o Senhor da nossa vida, o nosso tudo, ao ponto de nos sentirmos também nós, como o Apóstolo, “alcançados por Cristo” (Fl 3,12) e poder dizer com ele – ao menos como desejo – “Para mim, de fato, o viver é Cristo” (Fl 1,21). A pergunta que nos acompanhará não será, portanto: “Que lugar Jesus ocupa hoje no mundo ou na Igreja?’, mas: “Que lugar Jesus ocupa na minha vida?”. Será isto, além de tudo, o melhor meio para estimular outros a se interessarem por Cristo, isto é, o modo mais eficaz de fazer evangelização.
Mas, primeiramente, um esclarecimento. De qual Cristo pensamos falar? Existem, de fato, diversos “Cristos”: há o Cristo dos historiadores, dos teólogos, dos poetas, existe até mesmo o Cristo dos ateus[1]. Falamos do Cristo dos Evangelhos e da Igreja. Mais precisamente, do Cristo do dogma católico que o Concílio de Calcedônia de 451 definiu em termos que, de vez em quando, é voltar a escutar, ao menos em parte, no texto original:
Na sequência dos santos Padres, ensinamos unanimemente que se confesse
um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo,
igualmente perfeito na divindade e perfeito na humanidade,
sendo o mesmo verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem,
composto duma alma racional e dum corpo, consubstancial ao Pai pela sua divindade,
consubstancial a nós pela sua humanidade, “semelhante a nós em tudo, menos no pecado” (...).
Um só e mesmo Cristo, Senhor, Filho Único, que devemos reconhecer em duas naturezas (...).
A diferença das naturezas não é abolida pela sua união;
antes, as propriedades de cada uma são salvaguardadas e reunidas numa só pessoa e numa só hipóstase.
Podemos falar de um triângulo dogmático sobre Cristo: os dois lados são a humanidade e a divindade de Cristo, e o vértice, a unidade da sua pessoa.
O dogma cristológico não quer ser uma síntese de todos os dados bíblicos, uma espécie de destilado que encerra em si toda a imensa riqueza das afirmações relativas a Cristo que se leem no Novo Testamento, reduzindo o tudo à sucinta e árida fórmula: “duas naturezas, uma pessoa”. Se assim fosse, o dogma seria tremendamente redutivo e até perigoso. Mas não é assim. A Igreja crê e prega de Cristo tudo o que o Novo Testamento afirma dele, sem exceção. Mediante o dogma, buscou somente traçar um quadro de referência, estabelecer uma espécie de “lei fundamental” que toda afirmação sobre Cristo deve respeitar. Tudo o que se diz de Cristo deve, assim, respeitar esse dado certo e indiscutível, isto é: que ele é Deus e homem ao mesmo tempo; melhor, na mesma pessoa.
Os dogmas são “estruturas abertas” (Bernhard Lonergan), prontas para acolher tudo o que de novo e genuíno que cada época descobre na palavra de Deus, em torno daquelas verdades que eles pretenderam definir, não encerrar. São abertos a evoluir a partir de seu interior, desde que sempre “no mesmo sentido e na mesma linha”. Isto é, sem que a interpretação dada em uma época contradiga a da época precedente. Aproximar-se de Cristo pela via do dogma não significa, por isso, resignar-se em repetir exaustivamente sempre as mesmas coisas sobre ele, talvez mudando apenas as palavras. Significa ler a Escritura na Tradição, com os olhos da Igreja, isto é, lê-la de modo sempre antigo e sempre novo.
Cristo homem perfeito
Vejamos o que significa tudo isso, aplicado ao dogma da perfeita humanidade de Cristo, que é o “primeiríssimo plano” que queremos lançar sobre Jesus nesta meditação.
Durante a vida terrena de Jesus, ninguém jamais pensou em pôr em dúvida a realidade da humanidade de Cristo, isto é, o fato de que ele fosse realmente um homem como os outros. Quando fala da humanidade de Jesus, o Novo Testamento se mostra interessado mais pela santidade dela, que da verdade ou realidade dela, mais do que pela sua perfeição moral do que pela sua completude ontológica.
No momento do Concílio de Calcedônia, esta ideia da humanidade de Cristo não mudou, mas a atenção não é mais sobre ela. Contra a heresia Docetista, a Igreja teve que afirmar que Cristo tivera uma verdadeira carne humana; contra a heresia Apolinarianista, que tivera também uma alma humana, e contra a heresia Monotelista, deverá combater mais tarde, no VII século, para fazer reconhecer a existência em Cristo também de uma vontade e, portanto, de uma liberdade, realmente humana. Por causa das heresias acenadas, todo o interesse pelo Cristo “homem” se move do problema da novidade, ou santidade, de tal humanidade, ao da sua verdade ou completude ontológica.
O Novo Testamento, eu dizia – não está interessado tanto em afirmar que Jesus é um homem “verdadeiro”, mas que é o homem “novo”. Ele é definido por São Paulo “o último Adão” (eschatos), isto é, “o homem definitivo” (cf. 1Cor 15,45ss.; Rm 5,14). Cristo revelou o homem novo, aquele “criado à imagem de Deus, em justiça e santidade da verdade” (Ef 4,24; cf. Cl 3,10). Jesus Cristo é “o Santo de Deus”: assim, ele é solenemente proclamado em dois momentos da sua vida terrena (...). Jesus não é tanto o homem que se assemelha a todos os outros homens, quanto o homem ao qual todos os outros devem se assemelhar. Somente dele se deve dizer o que os filósofos gregos diziam do homem em geral, isto é, que ele é “a medida de todas as coisas”!
Uma vez posto a salvo o dado dogmático e ontológico da perfeita humanidade de Cristo, hoje nós podemos voltar a valorizar este dado bíblico primário. Devemos fazê-lo também por um outro motivo. Ninguém hoje nega que Jesus tenha sido um homem, como faziam os docetistas e os outros negadores da plena humanidade de Cristo. Assiste-se, antes, a um fenômeno estranho e inquietante: a “verdadeira” humanidade de Cristo é afirmada em tácita alternativa à sua divindade, como uma espécie de contrapeso.
É uma espécie de corrida geral para quem se lança mais à frente em afirmar a “plena” humanidade de Jesus de Nazaré, até a atribuir-lhe não apenas o sofrimento, a angústia, a tentação, mas também a dúvida e até mesmo a possibilidade de cometer erros. Assim o dogma de Jesus “verdadeiro homem” se tornou ou uma verdade pressuposta que não incomoda e não inquieta ninguém; pior, uma verdade perigosa que serve para legitimar, ao invés de contestar, o pensamento secular. Afirmar a plena humanidade de Cristo é hoje como avançar por uma porta aberta.
A santidade de Cristo
Dediquemos, portanto, o resto do tempo à nossa disposição para contemplar (é a palavra justa) a santidade de Cristo, a deixarmo-nos deslumbrar, antes de tirar dela qualquer consequência operativa. É este o “primeiríssimo plano” sobre Jesus que queremos fazer nesta meditação: deixar-nos fascinar pela infinita beleza de Cristo, o “mais belo entre os filhos dos homens”.
A observação dos evangelhos nos faz ver que a santidade de Jesus não é somente um princípio abstrato, ou uma dedução metafísica, mas é uma santidade real, vivida momento por momento e nas situações mais concretas da vida. As Bem-aventuranças, para dar um exemplo, não são apenas um belo programa de vida que Jesus traça para os outros; é a sua própria vida e a sua experiência que ele desvela aos discípulos, chamando-os a entrar na sua mesma esfera de santidade. As Bem-aventuranças são o autorretrato de Jesus.
Ele ensina o que faz; por isso, pode dizer: “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). Ele diz para perdoar os inimigos, mas nos impulsiona, ele mesmo, a perdoar até aqueles que o estão crucificando, com as palavras: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Não é, de resto, este ou aquele episódio que se presta para ilustrar a santidade de Jesus, mas cada ação, cada palavra saída de sua boca.
Ao lado deste elemento positivo que consiste na constante e absoluta adesão à vontade do Pai, a santidade de Cristo também apresenta um elemento negativo, que é a absoluta falta de todo pecado: “Quem de vós pode acusar-me de pecado?”, diz Jesus aos seus adversários (Jo 8,46). Sobre este ponto, temos um coro unânime de testemunhos apostólicos: “Aquele que não conheceu pecado” (2Cor 5,21); “ele não cometeu pecado algum, nenhum engodo foi encontrado em sua boca” (1Pd 2,22); “ele mesmo foi tentado em tudo, à nossa semelhança, sem todavia pecar” (Hb 4,15); “tal precisamente o sumo sacerdote que nos convinha: santo, inocente, sem mancha, separado dos pecadores” (Hb 7,26). João, na primeira carta, não se cansa de proclamar: “Ele é puro...; nele, não há pecado...; ele é justo” (1Jo 3,3-7).
A consciência de Jesus é um cristal transparente. Jamais, ainda que mínima admissão de culpa, ou pedido de desculpas ou de perdão, nem diante de Deus, nem dos homens. Sempre a tranquila certeza de estar na verdade e justiça, de ter agido bem; que é completamente diferente da presunção humana de justiça. Nenhum outro personagem da história ousou dizer de si a mesma coisa.
Uma tal ausência de culpa – e de admissão de culpa! – não está ligada a esta ou àquela passagem ou frase do evangelho, de cuja historicidade se possa duvidar, mas transpira de todo o evangelho. É um estilo de vida que se reflete em tudo. Pode-se buscar nas brechas mais estreitas dos evangelhos e o resultado é sempre o mesmo. Não basta, para explicar tudo isso, a ideia de uma humanidade excepcionalmente santa e exemplar. Esta, de fato, seria até desmentido por aquilo. Uma tal segurança, uma tal exclusão de pecado, como aquela que se nota em Jesus, indicaria sim uma humanidade excepcional, mas excepcional no orgulho, não na santidade. Uma consciência assim feita ou é em si mesma o maior pecado jamais cometido, maior do que o de Lúcifer, ou então é a pura verdade. A ressurreição de Cristo é a prova concreta de que era a pura verdade.
“Santificados em Cristo Jesus”
Passemos, agora, a ver o que a santidade de Cristo significa para nós. E aqui nos vem encontro imediatamente uma boa notícia. Há, de fato, uma boa notícia, um alegre anúncio, também a propósito da santidade de Cristo. Não é tanto que Jesus é o Santo de Deus, ou o fato de que também nós devemos ser santos e imaculados. Não, a alegre surpresa é que Jesus comunica, doa, presenteia-nos a sua santidade. Que a sua santidade é também a nossa. E mais: que ele mesmo é a nossa santidade.
Cada pai humano pode transmitir aos filhos o que tem, mas não o que é. Se for um artista, um cientista, ou também um santo, não é certo que os filhos nasçam também eles artistas, cientistas ou santos. Ele pode, no máximo, ensinar-lhes, dar-lhes um exemplo, mas não os transmitir quase como por herança. Jesus, ao invés, no batismo, não somente nos transmite o que tem, mas também o que é. Ele é santo e nos faz santos; é Filho de Deus e nos faz filhos de Deus.
Reafirma-o também o Vaticano II: “Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e justificados no Senhor Jesus, não por merecimento próprio, mas pela vontade e graça de Deus, são feitos, pelo Batismo da fé, verdadeiramente filhos e participantes da natureza divina e, por conseguinte, realmente santos” (LG, n. 40). A santidade cristã, antes que um dever, é um dom.
O que fazer para acolher este dom e o que fazer dele, por assim dizer, uma experiência vivida e não apenas acreditada? A primeira e fundamental resposta é a fé. Não uma fé qualquer, mas a fé mediante a qual nos apropriamos do que Cristo adquiriu para nós. A fé que dá o golpe de audácia e o que faz dar o golpe de mestre à nossa vida cristã. Paulo escreveu: “Cristo Jesus (...) o qual se tornou para nós, da parte de Deus, sabedoria, justiça, santificação e redenção, para que, como está escrito, ‘quem se gloria, no Senhor se glorie’” (1Cor 1,30-31). O que Cristo se tornou “para nós” – justiça, santidade e redenção – pertence-nos; é mais nosso do que se o tivéssemos feito nós! “Pois como não pertencemos mais a nós mesmos, mas a Cristo que nos readquiriu a um alto preço, daí segue-se que – escreve o grande mestre bizantino Cabásilas – o que é de Cristo nos pertence, é mais nosso do que aquilo que provém de nós[2].
Jamais me canso de repetir, a este respeito, o que escreveu São Bernardo:
Eu, na verdade, tomo confiantemente para mim (no original, usurpo!), das vísceras do Senhor, o que me falta, porque elas transbordam de misericórdia. (...) O meu mérito, portanto, é a misericórdia do Senhor. Certamente, não serei privado de mérito enquanto o Senhor não for privado de misericórdia. Se as misericórdias do Senhor são muitas, também eu sou muito grande no que se refere aos méritos. (...) Cantarei talvez a minha justiça? “Senhor, quero lembrar-me só da tua justiça” (cf. Sl 71,16). Esta, na verdade, é também minha; porque te fizeste para mim justiça da parte de Deus (cf. 1Cor 1,30)[3].
Não devemos nos resignar em morrer antes de ter feito, ou renovado, esta espécie de “ataque surpresa”, a nós sugerida por São Bernardo. Este santo atrevimento! São Paulo frequentemente exorta os cristãos a se “despojarem do homem velho” e se “vestirem de Cristo”[4]. A imagem do despir-se e revestir-se não indica uma operação somente ascética, consistente no abandonar certos “hábitos” e substitui-los por outros, isto é, no abandonar os vícios e adquirir as virtudes. É primeiramente uma operação a ser feita mediante a fé. Em um momento de oração, neste tempo de Quaresma, alguém se põe diante do Crucifixo e, com um ato de fé, entrega-lhe todos os próprios pecados, a própria miséria passada e presente, como quem se despoja e joga no fogo os próprios trapos sujos; depois se reveste da justiça que Cristo adquiriu para ele. Diz, como o publicano no templo: “Meu Deus, sê propício para mim, que sou pecador!”, e volta para casa “justificado” (cf. Lc 18,13-14).
Alguns Padres da Igreja encerraram em uma imagem este grandioso segredo da vida cristã. Imagine, dizem, que tenha acontecido, no estádio, uma épica luta. Um valoroso enfrentou o cruel tirano que mantinha cativa a cidade e, com imensa fadiga e sofrimento, venceu-o. Você estava abrigado, não combateu, não labutou nem teve feridas. Mas, se admira o valoroso, se se alegra com ele pela sua vitória, se lhe trança coroas, se anima e estimula a assembleia pro ele, se se inclina com alegria ao triunfante, beija-lhe a fronte e lhe aperta a mão; enfim, se assim delira por ele, a ponto de considerar com sua a vitória, eu lhe digo que certamente terá parte no prêmio do vencedor.
Mas há ainda mais: suponha que o vencedor não tenha nenhuma necessidade do prêmio conquistado para si, mas você deseja, mais que tudo, ver honrado o seu artífice e considera como prêmio do seu combate a coroação do amigo, neste caso, aquele homem talvez não receberá a coroa, ainda que não tenha fadigado nem se ferido? Claro que a receberá! Assim, dizem esses Padres, acontece entre Cristo e nós. É ele o valoroso que, na cruz, venceu o grande tirano do mundo e nos restituiu a vida[5]. De nós, espera-se que não sejamos “espectadores” distraídos por tanta dor e tanto amor. Escreve São João Crisóstomo:
Nós não ensanguentamos as armas, não estivemos no combate, não fomos feridos nem vimos a luta; no entanto, alcançamos a vitória. O combate foi do Senhor e a coroa foi nossa. Ora, como a vitória também é nossa, imitemos os soldados e cantemos hoje, com vozes alegres, os louvores e cânticos da vitória. Digamos, louvando o Senhor[6].
Naturalmente, nem tudo termina aqui. Da apropriação, devemos passar à imitação. O texto do Concílio recordado sobre a santidade como dom, prossegue dizendo: “É necessário, portanto, que, com o auxílio divino, conservem e aperfeiçoem, vivendo-a, esta santidade que receberam. O Apóstolo admoesta-os a que vivam ‘como convém a santos’ (Ef 5,3), ‘como eleitos de Deus, santos e amados, se vistam de sentimentos de compaixão, com bondade, humildade, mansidão e paciência’ (Cl 3,12) e alcancem os frutos do Espírito para a santificação (cf. Gl 5,22; Rm 6,22)”.
Mas temos tantas outras ocasiões para falar e ouvir falar do dever de imitar Cristo e cultivar as virtudes, que, por uma vez, é bom nos determos aqui. Também porque se não dermos aquele primeiro salto na fé que nos abre à graça de Deus, jamais iremos muito longe na imitação. “Não se chega das virtudes à fé – dizia São Gregório Magno –, mas da fé às virtudes”[7].
Se não quisermos nos despedir sem ao menos um pequeno propósito prático, eis aqui um que pode nos ajudar. A santidade de Jesus consistia em fazer sempre o que agradava ao Pai. “Eu sempre faço – dizia – o que é do seu agrado” (Jo 8,29). Tentemos nos perguntar o mais frequente que pudermos, diante de toda decisão a se tomar e toda resposta a dar: “Qual é, no caso presente, a coisa que Jesus gostaria que eu fizesse?” e fazê-la sem adiar. Saber qual é a vontade de Jesus é mais fácil que saber, em abstrato, qual é “a vontade de Deus” (ainda que as duas coincidam de fato). Para conhecer a vontade de Jesus, não devemos fazer outra coisa senão recordar o que diz no Evangelho. O Espírito Santo está ali, pronto para nos recordá-lo."
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Traduzido do italiano por P. Ricardo Faria, ofmcap
[1] Cf. Milan Machovec, Gesú per gli atei, Cittadella Editrice, Assisi 1973.
[2] Cf. N. Cabásilas, Vida em Cristo, IV,6 (PG 150,613).
[3] Cf. Bernardo de Claraval, Sermões sobre o Cântico dos Cânticos, 61,4-5 (PL 183, 1072).
[4] Cf. Cl 3,9; Rm 13,14; Gl 3,27; Ef 4,24.
[5] Cf. N. Cabásilas, Vida em Cristo, 5 (PG 150, 516ss.).
[6] João Crisóstomo, De coemeterio et de cruce (PG, 49,396).
[7] Cf. S. Gregório Magno, Homilia sobre Ezequiel, II,7 (PL 76, 1018).
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