Após 2 anos e meio e 85 audiências, processo vaticano chega ao fim
Salvatore Cernuzio – Cidade do Vaticano
Vinte e nove meses, 85 audiências, uma média de mais de 600 horas de permanência na sala do tribunal, 69 testemunhas ouvidas, 124.563 páginas em papel e em dispositivos informáticos e 2.479.062 files analisados apresentados pela acusação, 20.150 páginas incluindo anexos apresentados pela defesa, 48.731 pelas partes civis. Números elevados que refletem a amplitude e a precisão do debate que o Tribunal do Vaticano quis desde o início que fosse a chave do processo para a gestão dos fundos da Santa Sé.
É o mais longo e complexo processo realizado dentro dos muros leoninos, definido especialmente pela mídia inglesa como o “century trial”, o julgamento do século, que o acompanhou desde as fases que antecederam o seu início em 27 de Julho 2021, com atenção especial durante as 85 audiências (que por vezes eram realizadas cinco ou seis vezes por mês ou em pleno verão) e reavivadas face aos vários plot twist e reviravoltas que marcaram e por vezes alteraram o rumo dos acontecimentos desse turbilhão de personagens pitorescos, imóveis de luxo, telefonesmas gravados, projeções de vídeo, memoriais ditados, chats no WhatsApp.
Longa investigação
Processo precedido de uma longa e detalhada investigação, iniciada pelo então promotor de Justiça, Gian Piero Milano e pelo adjunto Alessandro Diddi (nomeado Promotor neste meio tempo); desenvolvido com investigações da Gendarmaria do Vaticano e com a ajuda de quatro rescripta do Papa publicados no decorrer dos trabalhos que ampliaram o raio de ação dos promotores públicos; realizada por meio de grande quantidade de documentos e aparelhos eletrônicos apreendidos e a comparação entre os depoimentos de testemunhas. Tudo isso resultou em 487 páginas de acusação.
Espaço e escuta
Um processo que só ganhou vida depois de sete meses e um dia, em 1º de março de 2022, primeiro deixando ampla margem para os pedidos preliminares que prevaleceram durante todas as primeiras oito audiências por vontade do próprio Tribunal do Vaticano, o que deixou tempo para escaramuças processuais , respostas, exceções de nulidade.
Processo em que, justamente por esse “espaço e escuta” concedido a todos, parece encontrar respaldo nas palavras do artigo 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da qual se celebra o 75º aniversário: “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”.
Sentença
O processo em questão chegarà a sua conclusão na tarde deste sábado, 16 de dezembro. Entre as 16h00 e as 17h00 – como ele próprio anunciou na última audiência de terça-feira – o presidente do Tribunal, Giuseppe Pignatone, fará a leitura da decisão. Assim, saber-se-á se os dez arguidos serão condenados ou absolvidos.
14 imputados, entre pessoas e sociedades, e 49 acusações
Quatorze os imputados por 49 acusações: quatro sociedades e dez pessoas físicas. As sociedades são a Logsic Humitarne Dejavnosti, com sede na Eslovênia; a Prestige Family Office Sa; a Sogenel Capital Investment e a HP Finance LLC. As três últimas referem-se a Enrico Crasso, assessor financeiro da Secretaria de Estado do Vaticano durante cerca de vinte anos; a primeira foi registada em nome de Cecilia Marogna, a gestora da Sardenha acusada de ter recebido fundos da Santa Sé para a libertação de reféns católicos detidos por terroristas islâmicos e depois gastos em viagens e produtos de luxo. É por isso que ele está no banco dos réus sob a acusação de peculato. Crasso é acusado dos crimes de peculato, corrupção, extorsão, lavagem de dinheiro e autolavagem, fraude, abuso de poder, falsificação de material em documento público cometido por particular e falsificação em escritura privada.
Junto com eles, esntre os imputados, estão René Brülhart e Tommaso Di Ruzza, respectivamente ex-presidente e ex-diretor da AIF (Autoridade de Informação Financeira, agora ASIF) acusados de abuso de poder, o primeiro, e peculato, abuso de poder e violação de segredo oficial, o segundo. Depois monsenhor Mauro Carlino, secretário pessoal de dois substitutos, (extorsão e abuso de poder); o financista Raffaele Mincione (peculato, fraude, abuso de poder, apropriação indébita, reciclagem e autolavagem); o advogado Nicola Squillace, (fraude, apropriação indébita, lavagem e autolavagem); Fabrizio Tirabassi, ex-funcionário da Secretaria de Estado (corrupção, extorsão, peculato, fraude e abuso de poder); o corretor Gianluigi Torzi, (extorsão, peculato, fraude, peculato, lavagem de dinheiro e autolavagem). Muitos destes crimes teriam sido cometidos em cumplicidade.
Por fim, a lista de arguidos inclui ainda o cardeal Giovanni Angelo Becciu, ex-substituto da Secretaria de Estado, contra quem foram instauradas ações, nos termos legalmente exigidos, pelos crimes de peculato, abuso de poder e suborno.
A compra e venda do Prédio em Londres
A maior parte dos crimes em questão ocorreram, segundo a acusação, durante a compra e venda pela Secretaria de Estado de um imóvel de luxo na Sloane Avenue, no coração de Londres. Uma operação que se revelou altamente especulativa e que teria feito com que os cofres do Vaticano perdessem pelo menos 139 milhões de euros, após uma compra no valor de 350 milhões de libras e uma revenda por menos de 186 milhões.
A Secretaria de Estado é constituída, de fato, como parte civil e solicitou 117,818 milhões de ressarcimento. IA isto soma-se o ressarcimento das outras quatro partes civis presentes no processo: o IOR que pediu 207.987.494 euros; a APSA, 270.777.495 euros; a ASIF e monsenhor Alberto Perlasca, ex-chefe do gabinete administrativo da Secretaria de Estado, que ambos para a quantificação do dano se submetem à avaliação equitativa do Colégio de juízes.
O investimento, segundo a reconstrução da acusação, teria sido iniciado após o fracasso de uma operação com petróleo em Angola proposta por Becciu mas que nunca se concretizou. Dali a passagem para o prédio na Sloane Avenue num turbilhão de fundos, transações, compensações, comissões, acordos estipulados sem - ao que parece - autorização de superiores, envolvimento de bancos estrangeiros e utilização de instrumentos financeiros de risco. O investimento, segundo os procuradores, abriu as portas aos “comerciantes do templo”, enquanto para a defesa não revelou quaisquer implicações criminais, mas apenas operações “normais” para quem conhece o mundo das finanças.
Na conclusão do caso de Londres, aquela que o substituto Edgar Peña Parra definiu como uma "via crucis", também a alegada extorsão com o pedido do corretor Torzi à Secretaria de Estado de 15 milhões de euros para vender as mil ações de voto com as quais mantinha o efetivo controle do prédio.
Os acontecimentos da Sardenha e Marogna
Somam-se ao “caso Londres”, o “caso Sardenha” e o “caso Marogna”, ambos envolvendo o cardeal Becciu. O primeiro diz respeito ao pagamento de 125 mil euros provenientes de fundos da Secretaria de Estado para uma conta associada à Caritas de Ozieri e à Spes, cooperativa administrada por um dos irmãos do cardeal, para a compra e reforma de uma padaria destinada a fornecer trabalho aos jovens marginalizados. O dinheiro ainda estaria nos cofres da Diocese.
O “caso Marogna”, por sua vez, refere-se ao já citado pagamento de 575 mil euros ao gestor, introduzido pelos serviços secretos italianos e contratado como especialista em assuntos diplomáticos para ajudar, por meio de uma sociedade de inteligência britânica, a Santa Sé a libertar a freira colombiana. Gloria Cecilia Narváez, sequestrada por jihadistas no Mali. Conforme mencionado, Marogna gastou então esse dinheiro na compra de móveis, bolsas, sapatos, estadias em hotéis de luxo, mas negou quaisquer acusações em mérito. Por sua vez, o cardeal sempre afirmou ter sido “enganado” primeiro pela mulher e que toda a operação diplomática era autorizada e aprovada pelo Papa, inicialmente coberta pelo segredo pontifício. O promotor Diddi e as partes civis notaram que Marogna continuou a frequentar o cardeal e a sua família mesmo depois do escândalo.
Os pedidos do Promotor de Justiça
Para o cardeal, o Promotor da Justiça pediu na sua acusação uma pena de sete anos e 3 meses de prisão, bem como multa de 10.329 euros e inabilitação perpétua para o exercício de cargos públicos. Para monsenhor Carlino, 5 anos e 4 meses de prisão, inabilitação perpétua e multa de 8,8 mil euros; para Crasso, 9 anos e 9 meses, inabilitação perpétua e multa de 18 mil euros; para Tommaso Di Ruzza 4 anos e 3 meses, suspensão temporária e multa de 9.600 euros; Cecilia Marogna, 4 anos e 8 meses de reclusão, inabilitação perpétua para o exercício de cargos públicos e multa de 10.329; para Raffaele Mincione 11 anos e 5 meses, suspensão perpétua e 15.450 euros; Nicola Squillace, 6 anos de prisão, suspensão do exercício da profissão e multa de 12.500 euros; Fabrizio Tirabassi, 13 anos e 3 meses, suspensão perpétua e 18.750 euros; Gianluigi Torzi, 7 anos e 6 meses de prisão, inabilitação perpétua e 9 mil euros; René Brülhart, 3 anos e 8 meses de prisão, inabilitação temporária e multa de 10.329 euros.
Somam-se a isso vários confiscos, no valor de vários milhões de euros, e as penas proferidas para as sociedades envolvidas. Nas próximas horas também será conhecida a decisão do Tribunal do Vaticano sobre estes pedidos.
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