A experiência do deserto e jejum quaresmal
Jackson Erpen - Cidade do Vaticano
A Quaresma é um sinal sacramental da nossa conversão, ou seja, a graça da conversão nos é dada em diferentes níveis e intensidades. Permite-nos crescer no conhecimento do mistério de Cristo, o que significa uma graça especial na escuta fecunda da Palavra de Deus e na compreensão espiritual dela. Ou seja, um tempo forte que significa testemunhar isto com uma conduta de vida digna, recebendo a graça de traduzir o Evangelho em obras e escolhas de pensamento e de vida, o que implica uma contínua conversão e restauração da nossa personalidade cristã. "É tempo de agir e, na Quaresma, agir é também parar: parar em oração, para acolher a Palavra de Deus, e parar como o Samaritano em presença do irmão ferido", diz o Papa Francisco em sua Mensagem para a Quaresma deste ano.
Neste contexto, Pe. Gerson Schmidt* nos propõe a reflexão "A experiência do deserto e jejum quaresmal":
"Joseph Ratzinger, em suas obras completas, aponta que “antes da reforma pós-conciliar, o calendário litúrgico conhecia um singular entrelaçamento dos tempos que, porém, não era mais há muito tempo compreendido e era concebido de modo muito formal e superficial. De acordo com a data mais ou menos antecipada da Páscoa, o tempo depois da Epifania deve ser diminuído ou prolongado. Os domingos que ficam interrompidos vinham, pois, mudados para o fim do Ano Litúrgico”.¹
A Constituição Sacrosanctum Concilium aponta sobre as celebrações nos mais variados tempos litúrgicos e sobretudo que o Mistério Pascal seja acentuado na Liturgia cristã, valorizando o Domingo como dia consagrado ao Senhor, de escuta da Palavra e participação da Eucaristia. Está claro essa preocupação dos padres conciliares, escrita nos números 106 e 107.
No número 105, a Constituição sobre a Liturgia descreve sobre os exercícios de piedade, afirmando assim: “Em várias épocas do ano e seguindo o uso tradicional, a Igreja completa a formação dos fiéis servindo-se de piedosas práticas corporais e espirituais, da instrução, da oração e das obras de penitência e misericórdia”. No número 109 da SC, na letra “b”, aponta a natureza própria da penitência quaresmal que detesta o pecado como ofensa feita a Deus. Vamos ao texto literal: “o mesmo se diga dos elementos penitenciais. Quanto à catequese, inculque-se nos espíritos, de par com as consequências sociais do pecado, a natureza própria da penitência, que é detestação do pecado por ser ofensa a Deus; nem se deve esquecer a parte da Igreja na prática penitenciai, nem deixar de recomendar a oração pelos pecadores”.
Por isso, o Concílio delineou o período quaresmal para melhor evidenciar o itinerário que a Igreja oferece a cada cristão para que chegue renovado nas celebrações do Mistério Pascal. O Concílio deu acento à Páscoa, cuja Quaresma tem por finalidade de preparar. O caderno de número 13 – Cadernos do Concílio – em preparativa ao ano jubilar 2025, diz assim: “A reforma litúrgica especificou a finalidade, a estrutura e a duração desse período: em primeiro lugar, determinou-se que a quaresma tem por finalidade preparar a Páscoa, ou seja, conduzir à celebração do Mistério Pascal”, tanto aos catecúmenos e aqueles que renovam sua adesão ao Senhor, “mediante a lembrança do batismo e o compromisso de conversão pela penitência”(p. 14).
O tempo quaresmal é por excelência um tempo penitencial, de obras de misericórdia, jejum e mortificação. Jesus, tal como o Povo de Israel, fez a experiência do deserto, no lugar onde é tentado pelo inimigo. No deserto há sempre um grande desafio. O jejum quaresmal nos coloca no nosso próprio deserto, à mercê das tentações que nos vem ao encontro, que devemos vencer e nos desviar, mergulhando nossa vida em Deus que é nossa força. Os autores Anselm Grün e Michael Reepen, no pequeno subsídio sobre o Ano Litúrgico nos trazem uma profunda reflexão sobre o sentido do deserto em nossa caminhada preparatória à Páscoa. Dizem assim os autores: “O deserto é um lugar onde ficamos totalmente desprotegidos. Lá estamos sozinhos, frente a frente com nós mesmos, com nosso vazio interior, nosso desamparo, nossa solidão, com o imenso nada ao redor e dentro do coração. Lá topamos com nossos limites, descobrimos que não podemos nos autoajudar, que precisamos da ajuda de Deus. No deserto nos expomos sem proteção, temos sede de tanta coisa e fome do que possa preencher o que nos falta” ².
Esses dois monges escritores também falam do jejum, importante prática quaresmal: “O jejum retira o véu que encobre os nossos pensamentos e sentimentos, e assim constatamos diretamente todas as fúrias guardadas, todas as aspirações e necessidades não satisfeitas. O jejum nos mostra a verdadeira essência de nossa vida, do nosso bem-estar. Será que só ficamos bem com Deus, será que só ficamos de bom humor quando comemos e bebemos bastante?”³. A Igreja no Brasil nos propõe o jejum e a abstinência de carne na quarta-feira de cinzas e na sexta-feira Santa. Mas não só. Toda a Quaresma é tempo de jejum e penitência. Mas nesses dias especiais de abstinência, banquetear-se de peixe faz perder o sentido espiritual e penitencial do jejum. É preciso ter bom senso que um peixe frito pode ser mais agradável do que uma outra carne.
A liturgia considera o jejum da Quaresma um tempo de graça. No jejum nós assumimos nossas próprias carência, renunciando às coisas que costumeiramente temos à mão, de comida e bebida, para entrar na dinâmica de conversão e entrega de nossa vida nas mãos do Senhor."
*Padre Gerson Schmidt foi ordenado em 2 de janeiro de 1993, em Estrela (RS). Além da Filosofia e Teologia, também é graduado em Jornalismo e é Mestre em Comunicação pela FAMECOS/PUCRS.
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¹ RATZINGER, Joseph. Obras completas, Volume XI, Teologia da Liturgia – Fundamento Existencial da Vida Cristã, Edições CNBB, 2019, p. 94.
² GRÜN, Anselm e REEPEN, Michael. O Ano Litúrgico – como ritmo de uma Vida plena de sentido, Vozes, Petrópolis 2013, p. 49-50.
³ Ibidem, 51.
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