III Encontro de Ecoteologia da Rede Eclesial Panamazônica (REPAM) III Encontro de Ecoteologia da Rede Eclesial Panamazônica (REPAM) 

Ecoteologias Amazônicas: entre conflitos e resistências

O grupo de mulheres e homens da floresta e da cidade, convocado no III Encontro de Ecoteologia da Rede Eclesial Panamazônica (REPAM), fez a opção mais profunda e vivencial pela Ecoespiritualidade.

Dario Bossi/REPAM-Brasil

Se o mundo inteiro se encontra numa situação de “guerra mundial aos pedaços” – como lamenta Papa Francisco – sem dúvida existe também uma guerra declarada à Amazônia.

É um ataque sistemático aos povos da floresta e da cidade, desmontando os direitos a duras penas conquistados e as instituições que deveriam defendê-los; um projeto ganancioso e cego de saque dos bens comuns nesta última fronteira do extrativismo predatório, que o Papa Francisco definiu “sistema insuportável”, já que nem a natureza nem os seres humanos conseguem mais suportá-lo.

A Amazônia encontra-se em “tempos cruciais”, numa sexta-feira santa de paixão e condenação à morte, às portas do ponto de inflexão e em condições de emergência climática.

Um encontro de Ecoteologia convocado neste contexto só faz sentido se responder pelo menos a dois desafios: tensionar os sistemas de morte que estão crucificando a Amazônia; identificar e alimentar as forças que permitem ainda aos povos e à Criação permanecer de pé, aos pés da Cruz, “porque a manhã vai chegar” (Thiago de Melo).

Assim, o grupo de mulheres e homens da floresta e da cidade, convocado no III Encontro de Ecoteologia da Rede Eclesial Panamazônica (REPAM), fez a opção mais profunda e vivencial pela Ecoespiritualidade, num tecido entrelaçado de vivências, memórias, partilhas de vida e inspirações, reflexões, estudos, celebrações, aromas e sabores…

A ecoespiritualidade parece mais com a partilha das preocupações e esperanças que se dá numa roda de conversa dentro de casa, ou numa assembleia da aldeia, ou num círculo de diálogo ao redor do fogo. É a mística de uma Igreja-Casa, oikós do cotidiano compartilhado, que na Bíblia (Pr 9) não é uma construção feita de paredes que encerram e separam, mas uma morada sustentada por colunas, através das quais passa o vento, o vento da Divina Ruah, Espírito feminino, como feminino é, quase sempre, o grupo que cuida e mantém abertas nossas casas.

Desiluminar

O nosso encontro desenvolveu e reenvolveu em muitas histórias e reflexões o que o saudoso poeta indígena Aldevan Baniwa reuniu numa frase densa de verdade: “É preciso desiluminar para clarear”.

Quando uma luz forte nos bate nos olhos, muitas outras imagens e presenças desaparecem. É a mesma sensação de uma noite na cidade, quando nos vem espontâneo comentar “hoje não tem estrelas”.

O Sínodo da Amazônia provocou para o movimento indispensável do desaprender, primeira e permanente conversão, para descolonizar nossa fé. É preciso silenciar para deixar espaço a outras presenças de Deus entre nós: em tempos de guerra, precisamos ter a coragem de questionar até nossas convicções sobre Deus e a verdade.

Entre as luzes que aparecem, ao desiluminar, a mais inspiradora é aquela da visão indígena, radicalmente um outro sentir-pensar o mundo, como desvelaram para nós Pe. Justino Tuyuca e Marcivânia Sateré-Mawé.

“No princípio, não havia divisão entre céu e terra, entre os seres: tudo fazia parte da mesma unidade. Os rios, as arvores, os animais, as pessoas, as pedras… tudo se comunicava entre si. Todo vivia nessa harmonia. Nesse lugar, havia o Noçoquem, que para nós significa Paraíso.

Nesse paraíso, moravam três irmãos. Dois homens e uma mulher, Onhiámuáçabe. Era ela quem cuidava do Noçoquem. Ela plantou no centro dele uma linda castanheira, que alimentava os dois irmãos. Era ela que tinha também o conhecimento das plantas medicinais e que curava todo tipo de doença, todos os males. Ela era uma pessoa muito sábia, cuidadosa, um ser muito espiritual. Despertava sobre todos esses seres a cobiça, porque queriam ter ela para sua esposa”.

A cosmovisão indígena nos provoca a reaprender, a superar uma visão dualística e hierárquica, que distingue o valor e a dignidade dos diversos seres e os posiciona de modo cartesiano num esquema funcional à supremacia do homem.

Compreender que tudo está real e profundamente interligado é uma revolução cultural, que transforma radicalmente as relações.

A visão hierárquica e desconectada das relações entre os seres vivos e criados legitima o saque dos bens comuns, que o sistema capitalista chama de “recursos”, e está à base da desigualdade social e da fome.

Ao contrário, a visão dos povos indígenas contempla na Amazônia, templo sagrado da vida, a mesa da abundância, onde o respeito pleno das relações garante igualdade, repartição dos bens e regeneração da vida.

Repensando nossa compreensão do mundo, sentimos naturalmente o desafio de rever nosso jeito de sermos Igreja, em contínua conversão. Entre muitas provocações, destacamos aqui aquela de uma Igreja Samaritana, como nos recordava o Sínodo da Amazônia: uma Igreja feminina, estrangeira, pecadora, aberta ao encontro a partir desse seu lugar.

Numa sociedade e Igreja ainda muito patriarcal, kyriarcal e hierárquica, na Amazônia ainda pode reafirmar-se a vocação para uma Igreja doméstica, decididamente a serviço e em defesa da vida.

Continuidades

A REPAM segue atuando em muitas frentes, em fidelidade ao legado do Sínodo da Amazônia.

Esse encontro de Ecoteologia oferece contribuições e propostas de continuidade pelo menos nas seguintes vertentes:

– queremos contribuir para um plano consistente e atualizado de formação de base nos territórios amazônicos. Entendemos a formação como resgate dos valores tradicionais, mergulho nas culturas em diálogo intercultural, escuta comum do legado e das provocações que nos vêm do Documento Final do Sínodo e da exortação Querida Amazônia;

– tensionar o sistema que provoca morte significa assumir estratégias consistentes de incidência política e compromisso eclesial. A ecoteologia desmonta as razões de quem se omite ou quer permanecer neutro, nestes tempos de guerra;

– continuaremos contribuindo para alimentar uma ministerialidade plural, com o protagonismo dos leigos, especialmente das mulheres. O faremos cultivando eclesiologias amazônicas, a serviço da Igreja e em diálogo com os grupos de trabalho da Conferência Eclesial da Amazônia.

– é tempo de escutar e dialogar cada vez mais com pessoas e experiências descolonizadas; buscarmos ainda mais interlocução com as juventudes, as mulheres, a sabedoria indígena e das comunidades tradicionais. Nossa ecoespiritualidade será sempre mais “empapada” nessas pluralidades fecundas.

Por estes motivos, o grupo assumiu o compromisso de convocar o próximo encontro de Ecoespiritualidade num território amazônico, para amazonizar a teologia e mergulhar nos rios das espiritualidades de seus povos!

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23 agosto 2022, 14:47