Dom Vicente: quatro anos de um crime continuado
Dom Vicente de Paula Ferreira - bispo Auxiliar de Belo Horizonte
“Não foi acidente, foi crime. A Vale sabia” (escrito em camisa de parente de vítima). 272 pessoas mortas e a bacia do rio Paraopeba destruída. Consequências da lama tóxica que afetou 18 municípios e atingiu 944 mil pessoas. Prejuízos irreparáveis para as comunidades ribeirinhas, os indígenas, camponeses e quilombolas. Destruição de parte da vegetação nativa de Mata Atlântica e áreas de preservação. Um trauma socioambiental incomensurável. Desde o primeiro momento gritamos: foi crime! A CPI da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em sua obra “opção pelo risco, causas e consequências da tragédia de Brumadinho”, confirmou as várias dimensões criminosas da tragédia. E apontou as responsabilidades. Sobretudo da Vale e da Tüv Süd. E de várias pessoas físicas. Depois de quatro anos, ninguém preso, nem mesmo julgado. É o crime continuado.
Para quem vive ou acompanha a região, o luto é luta difícil. Não foi um episódio isolado, fácil de ser deixado para trás. Foi consequência de um modelo extrativista predatório, que insiste em operar do mesmo jeito. Os processos de reparação não visam o bem das comunidades afetadas, nem tampouco a proteção do meio ambiente. A Vale está comprando nossos territórios, secando nossas fontes, matando nossos animais. E, arrogantemente, querendo dominar a narrativa do crime, no ato contínuo de calar a voz da resistência. Ou de mostrar, na grande mídia, suas obras como sendo a solução absoluta dos problemas. Qualquer manifestação, em memória, por justiça e reparação, ela cuida, com seus agentes, de combater. A forma mais desleal é dividir nossas lideranças. Incitar o conflito. Provocar confusão e culpabilizar os defensores dos direitos humanos e da terra.
Sobretudo pelo tanto de impunidade, as mineradoras ganham força. No final do ano passado, o Supremo Tribunal Federal levou o processo de Brumadinho para a esfera nacional. Contra a reivindicação dos familiares, principalmente da AVABRUM. Decisão que corre o risco de comprometer, ainda mais, a justiça tão esperada. Quem são as pessoas e entidades que estão sendo julgadas? Há alguém já responsabilizado e punido pela tragédia/crime? As respostas negativas a essas questões ferem a vida dos atingidos e atingidas. Além de não haver punições, principalmente nos últimos quatro anos, as licenças para mineração aumentaram, assustadoramente.
Em 2022, fizemos longos debates sobre as contaminações da natureza e das pessoas. E denunciei o sofrimento psíquico em tragédias socioambientais. Há aumento de depressão e suicídio. A Fiocruz nos apresentou vários dados de presença de metais pesados no corpo de nossa gente, inclusive de crianças. Há uma enorme insegurança no que diz respeito à qualidade da água. Com a chegada de muitos trabalhadores no território, acelerou a desarmonia social e ecológica. O que forja um contexto propício para o crescimento da violência contra mulheres, dos abusos sexuais, dos conflitos entre grupos e famílias. Um verdadeiro desarranjo em dimensões variadas. Toda liderança que se coloca contrária ao sistema da minério-dependência, está sofrendo algum tipo de ameaça. São injúrias, calúnias ou difamação. Algumas já se encontram inseridas em programas de proteção dos defensores dos direitos humanos.
As enchentes, ano passado, trouxeram transtornos para Brumadinho, Mario Campos, Betim e vários outros lugares da Bacia do Paraopeba. Junto com o volume grande das águas das chuvas, foi lançado outro mar de lama sobre as casas, hortas, comércios de nossas comunidades. Em 2023, a população voltou a ficar apreensiva com a possibilidade de outra enchente. Por duas vezes dutos da obra de captação de água rompeu-se. Causando transtornos para muitos moradores. Em tempos de seca, a poeira é agressiva. Além do drama das queimadas. Além de tudo isso, as placas “rota de fuga” já se incorporaram ao visual ambiental. Com os traumáticos sinais de sirenes para treinamentos. E o que está sendo feito para mitigar ou resolver esses problemas? O que vemos, no olho da rua, é o aumento do número de carretas carregadas de minério. Realidade nua crua das ações desse Império.
Considerando tudo isso, denunciamos que a mineração tem se confirmado como engenharia terrorista. E não é novidade para nós a possível participação de pessoas, de nossos territórios, nos atos criminosos em Brasília, em 08/01/2023. Então, além de punir os agentes políticos e econômicos, o Brasil necessita, com urgência, entender que somente isso não resolverá. Enquanto não mudarmos a política em relação a essas organizações transnacionais que atuam na exploração de nosso solo brasileiro. Extrativismo, mineração e agronegócio devem ser enfrentados com responsabilidade, priorizando a soberania popular e a sustentabilidade da biodiversidade.
Diante de tantos ataques, são louváveis as redes de resistências de nossas comunidades. São coletivos dos atingidos e das atingidas, associação dos familiares, projetos de agroecologia, lutas dos movimentos sociais etc. A IV Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho, que marca o dia 25 de janeiro de cada ano, reforça a união da maioria dessas forças. É o peregrinar de quem acredita nas profecias de outro mundo possível, sem essa trágica mineração. Debaixo de nossa terra tem um bem muito mais precioso. A água que mata a sede e que sustenta a vida no planeta. Por isso, nossa missão é cuidar desse jardim que Deus no deu. E acelerar os processos de conversão ecológica. Na certeza de que somos todos irmãos e irmãs, habitantes de uma casa comum.
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