Cardeal Tempesta: Gratidão à Minas e aos mineiros
Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist. - Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
Na última sexta-feira, dia 14 de junho de 2024, tive a imensa honra de receber a Medalha da Inconfidência, a mais alta honraria concedida pelo Estado de Minas Gerais. A entrega ocorreu em uma cerimônia no Palácio São Joaquim, aqui no Rio de Janeiro, pois por uma infeliz incompatibilidade de agenda não pude estar em Ouro Preto para a entrega oficial, que ocorreu em 21 de abril do ano passado, porque estava participando da 60ª. Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em Aparecida.
Gostaria de expressar minha gratidão ao Exmo. Senhor Governador Romeu Zema, que, juntamente com o Conselho da Medalha, decidiu me conceder esta distinção que tanto me honrou. Zema também teve um gesto grandioso ao permitir que a entrega pudesse ser feita em cerimônia aqui no Rio de Janeiro, no Salão Nobre do Palácio Arquiepiscopal São Joaquim, sede de nossa Arquidiocese.
A Medalha da Inconfidência, criada em 1952 pelo então governador Juscelino Kubitschek, é uma das mais importantes condecorações do nosso país, reconhecida nacional e internacionalmente. Ela é entregue anualmente no dia 21 de abril, Dia de Tiradentes, em Ouro Preto, em uma cerimônia que celebra o mártir da Inconfidência Mineira e os valores de liberdade e democracia que ele representa. No Estado de Minas Gerais, é a mais alta patente.
Tiradentes, cujo nome verdadeiro era Joaquim José da Silva Xavier, foi um dos líderes do movimento de independência conhecido como Inconfidência Mineira, e sua execução em 21 de abril de 1792 marcou um ponto crucial na história do Brasil. Desde então, Tiradentes representa todo gesto de Justiça e Liberdade em nosso país, e representa esse grande estado, que é Minas Gerais. O lema Libertas Quae Sera Tamen (do latim, “Liberdade ainda que tardia”) se eternizou na bandeira do Estado e no coração de todos os mineiros.
Tradicionalmente, a cerimônia ocorre em Ouro Preto, onde a capital do Estado é simbolicamente transferida para esta histórica cidade. A solenidade reúne as mais altas autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além de diversos representantes da sociedade civil, em um evento repleto de simbolismo e tradição. A cerimônia começa com o depósito de flores no monumento a Tiradentes, seguido pela entrega das medalhas a personalidades que contribuíram significativamente para o prestígio e a projeção de Minas Gerais.
A medalha possui quatro graus: Grande Colar, Grande Medalha, Medalha de Honra e Medalha da Inconfidência, cada uma reconhecendo diferentes níveis de contribuição e mérito. Receber esta honraria é um reconhecimento não apenas pessoal, mas de todo o trabalho realizado em prol da comunidade e dos valores cristãos que guiam minha vocação religiosa. Este ano, uma exceção foi feita para que eu pudesse receber a medalha em uma data diferente, devido à minha agenda, mas ainda assim, sinto-me profundamente honrado por este gesto. Gesto esse que me motiva a honrar ainda mais a confiança depositada em mim por aqueles que me concederam tal honraria, ou seja, ao Exmo. Governador de Minas e aos membros do Conselho da Medalha, instância única que delibera a concessão da mais alta honraria mineira.
A Medalha da Inconfidência representa para mim um compromisso renovado com a missão que me foi confiada. Cada ação, cada esforço em minha trajetória é motivado pelos ensinamentos do Senhor e pelo compromisso com a fé e o bem-estar dos mais humildes. Este reconhecimento reforça meu dever de continuar servindo com dedicação e amor, sempre guiado pela luz divina e pelos princípios que aprendi ao longo de minha vida religiosa.
Gostaria de agradecer a todas as autoridades presentes na cerimônia, em especial os que tornaram possível esse evento, incluindo membros do Episcopado, do Clero, autoridades civis e militares. A presença de todos vocês torna este momento ainda mais significativo e fortalece nosso compromisso coletivo com a justiça social e o apoio aos mais vulneráveis. Agradeço também à minha comunidade, que sempre esteve ao meu lado, oferecendo suporte e partilhando desta missão.
Eu tenho raízes profundas que me unem a Minas Gerais e ao povo mineiro. Eu fui Bispo Administrador Apostólico da Abadia Territorial de Claraval, no Sul de Minas, de 24 de março de 1999 a 11 de dezembro de 2002. Pude conviver com os bispos que formam o episcopado mineiro e capixaba, naquela época o Regional Leste 2 abrangia os estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, e a convivência amena com os mineiros muito enriqueceu o meu ministério na época de Bispo de São José do Rio Preto. A criatividade pastoral dos mineiros, o silêncio sorridente, a acolhida fraterna com pão de queijo, queijo e um café quentinho aqueceram o meu coração de Bispo e me ensinaram que a acolhida fraterna e solidária é a primeira nota da ação pastoral de um Bispo. O mineiro respira e vive a catolicidade pelas suas Catedrais, Igrejas barrocas e pelo seu clero, celeiro de bispos, e pela pujança da ação pastoral de suas Arquidioceses e Dioceses.
Eu gostaria de dedicar esta Medalha que recebi aos meus irmãos Cardeais mineiros: os quatro falecidos: Cardeal Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta; Cardeal Lucas Moreira Neves, Cardeal Serafim Fernandes de Araújo e Cardeal Geraldo Majella Agnelo. Na pessoa do amado irmão Cardeal Raymundo Damasceno Assis, que sintetiza pelo seu caráter Minas e os Mineiros, eu compartilho com meus cinco veneráveis irmãos Cardeais esta honraria, que não deixa de ser uma homenagem ao Colégio dos Cardeais!
Quando eu fui Admiistrador em Claraval aprendi o termo mineiridade. Mineiridade é um termo que faz referência a um conjunto de significados simbólicos e culturais ligados a um suposto “modo de ser mineiro”. Existem referências documentais que versam sobre um suposto “caráter” ou “identidade” mineira desde o período colonial, por exemplo, em um famoso documento atribuído ao conde de Assumar justificando suas ações de repressão após a Revolta de Vila Rica, em 1720. Em relação ao termo “mineiridade” propriamente dito, a historiografia considera que o primeiro a empregá-lo foi Aires da Mata Machado Filho, em conferência proferida em 1937, em Diamantina, sobre o escritor Couto de Magalhães. Gilberto Freyre, célebre intérprete do Brasil, deu sua própria versão do sentido de “mineiridade” em outra conferência, realizada em julho de 1946 na Faculdade de Direito de Belo Horizonte, com o título “Ordem, liberdade, mineiridade”.
No campo intelectual, interpretações sobre o “ser mineiro” proliferaram desde as primeiras décadas do século 20, quando Minas Gerais se afirmava como uma das grandes forças políticas do país, ao lado de São Paulo. Desde então, o tema da mineiridade é revisitado com frequência nos estudos acadêmicos, na literatura e nas artes em geral. No campo da política, o termo apareceu com força em momentos críticos da história do país – por exemplo, com o fim do Estado Novo e na publicação do Manifesto dos Mineiros –, ou mesmo no período da redemocratização do país, em 1985, quando Tancredo Neves fez frequentes menções ao jargão para justificar o seu papel de conciliar o país e promover uma nova ordem democrática.
A mineiridade deve ser considerada como um discurso, uma representação simbólica, e não como uma “essência” que supostamente definiria toda e qualquer pessoa nascida ou que mora em Minas Gerais.
Ao lado da imagem do mineiro como naturalmente equilibrado, prudente e dotado do “senso grave da ordem”, muitos autores interpretam Minas como o estado que sintetiza o Brasil, como seu centro articulador no sentido geográfico, histórico, político e cultural. Dessa caracterização nasceu também a ideia de que Minas possuiria uma natural vocação para a política, de onde se procurava justificar e promover a influência do estado nos negócios políticos do país. Um presidente da República, segundo as várias opiniões, só ganha eleição se for majoritariamente votado em Minas Gerais.
A ideia de Minas como vocacionada para a política é remetida até antes do período do “café com leite” – por exemplo, o Ministério da Conciliação criado durante o reinado de dom Pedro II para pacificar o país foi liderado por um político mineiro, Honório Hermeto Carneiro Leão, o marquês do Paraná. Mas essa imagem foi sem dúvida fortalecida durante a República Velha, e permaneceu bastante ativa na história republicana do Brasil (fim da Era Vargas, o governo de JK, a participação de Minas no Golpe de 1964 e, mais tarde, também na redemocratização do país com figuras como Tancredo Neves e Itamar Franco). O que caracterizaria a mineiridade seria a insubmissão e o amor à liberdade, destacando a constância das revoltas históricas ocorridas em Minas Gerais.
Ao relembrar os atributos de Minas e dos mineiros – e como muitos sempre falam Minas são muitas, as dos mineiros e dos “geraiseiros” – eu digo que as Minas Gerais são o estado síntese do Brasil.
Por isso mesmo, ao receber esta Medalha, a mais alta Medalha de Minas Gerais, a história de Tiradentes e da Inconfidência Mineira é um lembrete poderoso dos valores de liberdade, democracia e justiça pelos quais devemos lutar diariamente. Tiradentes foi um homem que sacrificou sua vida por um ideal maior, e sua memória deve continuar a inspirar-nos na construção de um país mais justo e igualitário. Que possamos honrar seu legado através de nossas ações cotidianas e nosso compromisso com o bem comum.
Receber a Medalha da Inconfidência é um motivo de grande orgulho, mas também de profunda responsabilidade. Este reconhecimento me incentiva a seguir adiante com mais vigor, buscando sempre servir ao próximo e promover os valores cristãos que são a base da minha vocação. Que este momento seja um incentivo para todos nós, para que possamos trabalhar juntos por um Brasil mais justo, fraterno e solidário.
Invoco a poderosa proteção de Nossa Senhora da Piedade, padroeira de Minas Gerais, que do seu trono da graça do alto do Santuário da Serra da Piedade, interceda pelas autoridades constituídas dos três poderes do Estado por me conceder significativa homenagem. Os mineiros me ensinaram a virtude da gratidão e da generosidade. Essa Medalha me ajudará a ser mais devotado no meu ministério episcopal em aurir dos sentimentos de mineiridade as virtudes da benevolência e do serviço generoso a todos e a cada um. Que Deus abençoe a todos que me distinguiram com esta honraria, e ao amado Povo Mineiro, genuflexo e agradecido, reafirmo nosso compromisso de que continuemos firmes na fé católica e na busca por um mundo melhor, lembrando sempre que a liberdade sempre vence, mesmo que tardia! Vivas e bênçãos a amada gente mineira!
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