A história de Charity, dos Camarões à Itália
Stefano Leszczynski – Vatican News
"Meu nome é Charity Nanga, tenho 27 anos e sou camaronense. Estou na Itália desde 2017. Minha família ainda mora nos Camarões: tenho minha mãe e duas irmãs mais novas Faith e Praises. Meu pai teve que fugir para outro país para salvar sua vida. Meu irmão mais velho não sei onde está. Para mim dói muito falar sobre isso porque ele desapareceu após ter sido preso enquanto participava de uma manifestação. Tanto minha mãe quanto meu pai eram professores em uma escola pública. Houve uma época em que tudo estava indo muito bem. Minha família era unida, meu pai, meus irmãos...
Camarões, um país dividido
A República dos Camarões é um dos muitos países africanos que ainda carregam consigo os efeitos nocivos da colonização pelas potências europeias. Após a Primeira Guerra Mundial, esta antiga colônia alemã acabou ficando sob o controle da França e do Reino Unido até os anos 60. A reunificação dos Camarões, que ocorreu definitivamente em 1984, foi afetada pelo longo período de ocupação estrangeira, especialmente no aspecto linguístico e administrativo. Embora o país tenha mais de 200 grupos étnicos e linguísticos diferentes, os idiomas oficiais do país são o francês - falado por 78% da população - e o inglês, que é falado principalmente nas duas regiões ocidentais na fronteira com a Nigéria. Desde 1982 o país é governado pelo Presidente Paul Biya, que nas contestadas eleições de 2018 foi reeleito para o oitavo mandato consecutivo com mais de 71% das preferências. De acordo com dados divulgados pela “Transparência Internacional” sobre a luta contra a corrupção, os Camarões estão classificados em 153 de um total de 180 estados monitorados.
Na família, os valores da educação e do engajamento político
“Depois de me formar na universidade comecei a trabalhar como contadora em uma ONG, ao mesmo tempo continuei meus estudos para obter uma especialização em Economia e Administração de Empresas, em meu país é chamado de Bancos e Finanças. Meus pais sempre nos apoiaram e nos estimularam a melhorar nossa educação. A certa altura, a situação política nos Camarões se deteriorou. Meu pai era membro de um partido de oposição e, após a prisão de meu irmão, ele também teve que fugir para outro país. Ele sempre nos dizia que seu compromisso político era mudar as coisas para melhor, para melhorar o nosso futuro ".
A discriminação linguística
"Nos Camarões existem oito regiões francófonas e duas predominantemente anglófonas. Para nós que vivíamos na parte anglófona do país, era como ser um estrangeiro em nossa própria casa. Foi por isso que os protestos começaram, para ter os mesmos direitos que todos os outros. As revoltas começaram em 2016 quando o governo decidiu enviar pessoal administrativo, professores e magistrados, das regiões francófonas para as duas regiões anglófonas. O problema é que o bilinguismo camaronês está apenas no papel; é raro que alguém fale bem ambos os idiomas, inglês e francês".
O conflito linguístico
O que a comunidade internacional se obstina em chamar de crise interna nos Camarões devido à rivalidade entre os grupos anglófonos e francófonos, na verdade assemelha mais a uma verdadeira guerra. Atualmente já morreram mais de duas mil pessoas, com 500.000 deslocados e 40.000 refugiados na vizinha Nigéria. O conflito entre a minoria anglófona e as autoridades estatais eclodiu depois da repressão militar de várias manifestações lançadas pelo Consórcio da Sociedade Civil Camaronesa de Língua Inglesa em 2016. Após o envio de juízes e professores francófonos para as regiões anglófonas, advogados e professores de língua inglesa lotaram as ruas de Bemenda - a capital da região noroeste - para protestar contra uma medida que eles consideravam discriminatória e marginalizadora. A repressão só agravou o conflito levando à formação de grupos guerrilheiros anglófonos que em 2017 reivindicaram a secessão de suas regiões, autoproclamando a independência do Estado de Ambazônia.
A repressão dos protestos
"Foi durante as primeiras manifestações em 2016 que meu irmão desapareceu depois de ter sido preso. A repressão foi violenta, a polícia começou a atirar nos manifestantes e muitos jovens foram mortos. Muitas mulheres foram estupradas após a prisão. Mesmo quando os protestos chegaram a Bemenda, a capital do Estado de anglófono do noroeste, o Presidente Paul Bya não fez nada para restaurar a calma, pelo contrário, enviou mais policiais, mas não para nos proteger. Nos Camarões a polícia não é como aqui na Itália, eles não são seus aliados. Quando soube da prisão de meu irmão, fui até a prisão para ver se poderia fazer algo por ele. Mas eu também fui presa. Depois de alguns dias em que eu estava na delegacia, o motim explodiu ainda mais violentamente, houve confrontos nas ruas e as pessoas atacaram a prisão e consegui escapar. Pedi ajuda a meu tio, que é um religioso, e ele me escondeu por algum tempo antes de organizar minha fuga do país".
O estado de emergência
A repressão dos protestos nas duas regiões anglófonas dos Camarões foi extremamente dura. O Presidente Paul Bya decretou o estado de emergência e enviou o Batalhão de Intervenção Rápida contra os manifestantes. Um corpo de elite de forças armadas criado para combater os extremistas de Boko Haram, no norte do país. Prisões arbitrárias e violência de todos os tipos foram perpetradas com total impunidade. Quase ninguém que entra nos porões da SED - os Serviços de Segurança do Estado em Youndé - sai ileso; na maioria das vezes, de fato, eles não saem de forma alguma. Os manifestantes anglófonos não só protestam contra o que é considerado discriminação pelo governo majoritário francófono, mas também maior grau de autonomia regional e um retorno à forma estadual federal de 1961. Porém no centro da disputa há também fortes interesses econômicos ligados à distribuição dos lucros da atividade de extração de petróleo concentrada na região anglófona do sul, que responde por 40% do PIB dos Camarões. De acordo com dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o número de pessoas deslocadas internamente nos Camarões no final de 2018 era de 437 mil. As milícias secessionistas do autoproclamado estado anglófono de Ambazonia representam um perigo igual ao do exército regular. Milhares de vídeos são colocados na internet para documentar as atrocidades cometidas. Mais uma vez a propaganda de guerra explora os mais indefesos.
A fuga do vilarejo
"Através do meu tio consegui um visto para entrar na Itália. "Eu nunca imaginei que viria aqui. Mas chegar ao aeroporto do país não foi fácil. As estradas estavam cheias de pontos de controle e para contorná-las era preciso circular à noite dentro da floresta. O perigo não era apenas a polícia, mas também os muitos grupos armados que se tinham formado naqueles meses. Eles eram impiedosos. Mesmo depois que cheguei aqui, ouvi falar de vários amigos que foram mortos. Em Yaoundé todos tinham medo até mesmo de falar com um taxista, em todos os lugares havia espiões e bastava apenas uma palavra fora do lugar para ser preso e desaparecer. Preocupo-me muito com minha mãe e minhas irmãs que ficaram nos Camarões. Às vezes acho que teria sido melhor ficar com minha família, mas talvez eu não estivesse viva hoje. Assim, apesar do medo, deixei tudo, meus amigos, meu trabalho. Foi uma decisão muito difícil, mas eu a tomei”.
A traição e o abandono
"Para a minha viagem de avião para a Itália, meu tio me confiu a uma pessoa que conhecia. Esta pessoa deveria me acompanhar e me proteger, ao invés disso, traiu minha confiança e a de meu tio. Quando chegamos em Roma, na estação ferroviária Termini - na época eu não tinha ideia que se chamava assim, nem sabia onde estávamos – pediu todos meus documentos dizendo que deveria comprar as passagens de trem. E desapareceu. Eu não sabia nada nem tinha a mínima ideia de como as coisas funcionassem na Europa. Mesmo porque, na nossa cultura, se uma pessoa é mais velha, não se discute, simplesmente se obedece. Agora sei que posso comprar passagem sem documentos, mas quando cheguei era jovem e nunca havia saído de meu país. Fiquei alguns dias na estação, eu nem sabia como chamar minha família, minha mãe. Eu não tinha nada e o dinheiro que tinha não valia nem 10 euros, na verdade, não nem quiseram fazer o câmbio".
Um muro de indiferença
"Eu estava sem documentos, sem dinheiro, não falava a língua e quando tentava pedir ajuda as pessoas não me entendiam. Eu tentava explicar: empreste-me seu telefone, você pode me ajudar? Mas ninguém quis ouvir. Até que um dia, felizmente, conheci por acaso uma senhora dos Camarões, casada com um nigeriano, que se ofereceu para me ajudar. Ela me levou para sua casa, onde fiquei por duas semanas. Enquanto isso, indicou onde ficava o escritório de imigração e o que devia fazer. No Escritório de Imigração não foi difícil me registrar, em seguida fui encaminhada para um centro de acolhida perto da cidade de Marino, arredores de Roma. Depois de dois anos fui reconhecida como refugiada e recebi meus documentos. Era o ano de 2019".
O caminho da integração
"Enquanto esperava a resposta do meu pedido de proteção internacional, estudei italiano e consegui reconhecer o nível médio, mas não meus diplomas universitários. Trouxe meus diplomas da Universidade, mas não foi suficiente. Querem a certificação de todos os exames feitos. Isso é muito difícil de obter nem mesmo com a ajuda de minha mãe. Porém eu gosto muito de estudar, e se eu tiver que começar tudo de novo, estou pronta! Enquanto isso, aqui na Itália fiz um treinamento para trabalhar como assistente familiar".
Sorte na infelicidade
"Enquanto eu estava no centro de acolhida, ouvi muitas histórias terríveis de outras mulheres que haviam chegado à Itália de barco. Eu desconhecia completamente que tal coisa era possível. Tinha chegado de avião, com um visto de entrada, e nunca pensei que houvesse outra maneira de chegar na Europa. Conheci mais de 70 pessoas que chegaram assim, quando penso que minha história foi difícil...., vejo que a deles foi muito mais".
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