Garimpo e barbárie: uma história de genocídio e de luta dos Yanomami
Gabriel Vilardi - jesuíta, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE - Belo Horizonte).
Na Abya Yala amplamente cristã a mera (re)existência dos Povos Indígenas se revela contracultural e antissistêmica, portanto intolerável para as sempre velhas e inamovíveis elites coloniais, adoradoras do deus-mercado. Um continente perpassado por massacres, genocídios e sistemáticos apagamentos culturais. E entre esses povos crucificados encontra-se o Povo Yanomami, para quem “sobreviver é a maior dificuldade e a morte lenta o destino mais próximo”, como já ensinava o teólogo jesuíta Jon Sobrino.
Para aprofundar a dimensão do já tão denunciado – porém, infelizmente, com pouca efetividade prática – genocídio Yanomami, aconteceu o debate “Ya temí xoa: genocídio e resistência Yanomami”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, com a participação da irmã religiosa da Consolata, Mary Agnes, do advogado do Conselho Indígena de Roraima (CIR) Ivo Macuxi e do membro do Regional Sul do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Roberto Liebgott. Durante pouco mais de duas horas os convidados puderam trazer sua experiência e reflexões críticas a partir de uma vivência comprometida de todos com a causa indígena. Vale a pena retomar a exposição gravada e destrinchar a complexidade do cenário esboçado.
Sem deixar de reconhecer que “o início do processo da retirada dos garimpeiros foi um passo fundamental que o atual governo deu, apesar de ainda inconcluso”, assim como a importância do “fornecimento de alimentação para as crianças com graves problemas de desnutrição” e “a retomada do diálogo entre as organizações Yanomami e o governo federal”, Ivo Macuxi expôs com clareza a dramaticidade enfrentada por seus parentes.
Afinal, como pontuou com lucidez, sendo um dos sucessores de Joenia Wapichana no departamento jurídico de uma das maiores organizações indígenas do país, possui consciência de que o papel do movimento é cobrar o governo para que cumpra suas obrigações constitucionais. Ainda que dificilmente a maioria das relações entre os atuais ocupantes de funções públicas, com suas antigas organizações sociais, estejam construídas com esse nível de consciência.
“O que precisa avançar é garantir um efetivo plano de segurança para a Terra Indígena Yanomami, assegurando a proteção das comunidades e das equipes de saúde, com a implantação de bases de proteção territorial em pontos estratégicos”, afirma o advogado indígena. Mas isso deve ser feito, frisa com sabedoria, sempre a partir do “diálogo com organizações indígenas e indigenistas, porque sozinho, sem escutar as lideranças, o governo não conseguirá solucionar o problema”, como se tem constatado pelos terríveis diagnósticos. Nas disputas fratricidas dos representantes do poder público, embebidas de uma sufocante vaidade, a escuta franca e de qualidade é a primeira a ser sacrificada, em nome de projetos pessoais egoístas a despeito de coletividades inteiras.
Citando a recente decisão federal de criar um centro de coordenação avançado na capital Boa Vista, avisou com a cautela própria de seu Povo Macuxi: “precisamos ver se as pessoas que estarão à frente da Casa de Governo, em Roraima, terão conhecimento das especificidades da realidade Yanomami”. Porque, prossegue certeiro, “percebemos que alguns cargos-chave estavam sendo ocupados por pessoas que desconhecem as questões dessa realidade”, como “inclusive a própria ministra Sônia reconheceu, equívocos foram cometidos na gestão da resposta governamental”. Um exemplo citado, que deve ser no mínimo desconcertante para as autoridades, foi “a distribuição de itens alimentares alheios à cultura Yanomami”, o que, além de não ter matado a fome dos subnutridos, gerou desperdício de recursos públicos.
Em seguida, vivendo há mais de 20 anos no território Yanomami, a missionária queniana partilhou suas angústias pelo genocídio visto de perto, sem deixar de reafirmar sua admiração pela força desse “povo da esperança, que não se deixa abater e pisando esse chão de Omama, quer viver e viver bem”! O poderoso Bem Viver dos Povos Indígenas.
Profunda conhecedora da espiritualidade e cosmologia do povo que segura o céu, contou que compreende sua missão como um seguimento ao trabalho iniciado pelos seus companheiros e companheiras da Consolata, em 1965, com a fundação da Missão Catrimani. Entre eles, vale destacar o incansável e apaixonado, Irmão Carlo Zacquini, que dedicou mais de 50 anos de sua vida a se fazer Yanomami com os Yanomami. Essa instigante história de amor e compromisso entre as irmãs, os padres, os irmãos da Consolata e o Povo Yanomami está valiosamente registrada no livro de Corrado Dalmonego, O encontro Nohimayou. Memórias da Missão Catrimani: construindo relações de alianças com o povo Yanomami.
A Irmã Mary Agnes recuperou, ainda, a memória da catastrófica construção da Perimetral, nos anos 1970 e a terrível onda garimpeira dos anos 1980, recordando a profética presença da Diocese de Roraima nesses momentos tão duros e difíceis. A estimativa de indígenas mortos nessa época passava de 2.500 Yanomami, complementou Roberto Liebgott. Como não lembrar um dos maiores bispos da Amazônia de todos os tempos, o saudoso Dom Aldo Mongiano, que certa vez apontou para a refratária sociedade roraimense o “privilégio que era ter o Povo Yanomami em seu meio”?
“Quando cheguei nos anos 2000”, segue a religiosa, “o objetivo era investir na formação dos Yanomami, para que fossem protagonistas da sua história, tanto na saúde quanto na educação”. Métodos paternalistas não serviam mais, segundo o novo proceder do CIMI, mas sim a busca pela conscientização dos povos. Para tanto se valeu de sua formação como enfermeira e pôde “colaborar na preparação de novos agentes indígenas de saúde (AIS) e dos microscopistas, que faziam a busca ativa da malária com seus microscópios nas próprias malocas”. Com a mais recente invasão garimpeira, os índices de malária explodiram novamente, castigando de forma cruel os donos da terra.
Como testemunha de uma história de muita luta, partilhou ter visto “o nascimento das associações indígenas, na busca pelos seus direitos, entre elas a Hutukara”, dirigida pelo grande xamã Davi Kopenawa. Mas a volta intensa dos garimpeiros foi como um triste pesadelo, tendo impactado fortemente os jovens e a levado a se perguntar: “o que está acontecendo com o povo da esperança, o povo dos sonhos? Uma mudança muito grande”.
Então, resolveu estudar o genocídio e passou a compreendê-lo como “a morte dessa grande árvore da identidade” de um povo. “Até hoje escuto na radiofonia que existem postos de saúde fechados, há meses”, denuncia indignada. “As pessoas espalhadas pelo território estão sem assistência e eu vivo isso com angústia, porque não posso chegar às outras comunidades”, conclui a missionária.
Fazendo referência ao Carnaval, lembrou do samba-enredo da Salgueiro que gritou a resistência do povo Yanomami e, como boa conhecedora dessa língua, explicou: ya temí xoa – eu estou vivo, presente, resisto. Ao trazer a barbárie vivida nos últimos anos, a missionária indigenista insiste na importância do protagonismo das lideranças indígenas, em um longo caminho que vem sendo construído há décadas: “seis meses depois da declaração de emergência sanitária aconteceu o Fórum de Lideranças Yanomami, na comunidade Maturacá, de 10 a 14 de julho de 2023, e seu documento final é muito claro: ‘é preciso retirar os garimpeiros, controlar os avanços da malária e reconstruir o sistema de atendimento da saúde para que possamos retomar nossas vidas’”. Entenderam?
Os Yanomami sabem o que querem, já as autoridades federais não parecem ter tanta certeza... “Existe um ambiente de desumanização que cala na alma, em que a agonia e a dor são expressão de uma morte logo ali adiante”, vaticinou o indigenista do CIMI, que não nega a sua reconhecida veia poética. Roberto Liebgoot recuperou a desastrosa – para ficar por aí – gestão do então presidente da FUNAI, Romero Jucá, em que expulsou os missionários indigenistas das terras indígenas, para evitar as sucessivas e corajosas denúncias de violações dos Direitos Humanos desses povos.
Como se não bastasse, para não ficar devendo às piores histórias de terror, mesmo após a vitoriosa demarcação da Terra Indígena, em 1992, no ano seguinte ocorreu o covarde massacre de Haximu, com ampla repercussão internacional, graças aos relatos das religiosas da Diocese de Roraima. “Os Yanomami estão sendo agredidos há décadas e não há nenhuma perspectiva por parte do Estado brasileiro de pôr fim a essas violações”, constata Liebgott.
Para que bem se compreenda o nível de gravidade do genocídio, foi durante o famigerado governo Bolsonaro que se promoveu um novo estímulo ao garimpo, mas agora com o agravante dessa atividade ilícita contar com o apoio e controle do crime organizado, inclusive de narcotraficantes. Expôs que, apesar da atual administração ter envidado “esforços e boas intenções, não conseguiram fazer cessar as agressões”, uma vez que “existem freios que impedem que as coisas avancem, porque uma parcela de genocidas que compõe o atual governo também estava no anterior”.
Como tão bem analisou o experiente missionário do CIMI, avançar implica em “unir esforços para que os freios sejam retirados e essa situação mude”, responsabilizando “não só os garimpeiros que invadem o território, mas especialmente todos aqueles que financiam, assessoram e dão amparo a essa invasão”. Acrescentemos aí as altas autoridades que lucram com essa indústria da morte.
Disputas por protagonismo e ciúmes infantis entre os agentes estatais que integram o campo democrático, e precisam travar embates com os anti-indígenas que compõem o governo, só postergam qualquer solução e minam cada vez mais um já combalido Povo Yanomami. Haverá espaço para união e trabalho conjunto entre os poucos, mas esperados aliados da causa indígena ou os egos e interesses outros se sobreporão ao grito “ya temí xoa”?
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