Palácio Presidencial em Abu Dhabi onde o Papa Francisco foi acolhido pelo Xeique Mohammed bin Zayed Al Nayan, em 4 de fevreiro de 2019 Palácio Presidencial em Abu Dhabi onde o Papa Francisco foi acolhido pelo Xeique Mohammed bin Zayed Al Nayan, em 4 de fevreiro de 2019 

Quem pensa e reza de maneira diferente nunca pode ser um inimigo, diz cardeal Guixot

Celebra-se neste 4 de fevereiro o primeiro aniversário do histórico Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, assinado em Abu Dhabi pelo Papa Francisco e pelo Grão Imame de Al-Azhar. Em entrevista ao L’Osservatore Romano, o presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, cardeal Ángel Guixot, fala sobre o significado do documento e seus desdobramentos.

Gianlucca Biccini – Cidade do Vaticano

Emirados Árabes Unidos em fevereiro, Marrocos em março, Tailândia e Japão em novembro: três das sete visitas internacionais realizadas pelo Papa Francisco em 2019 tiveram etapas em países onde a Igreja Católica é minoritária. Parte desta consideração o balanço das atividades do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso no ano de 2019, feito pelo presidente do dicasterio, cardeal Miguel Ángel Ayuso Guixot.

"Viagens de fraternidade", assim as define o purpurado, com referência ao magistério itinerante do Papa, e em particular à visita que terminou com a histórica "Declaração de Abu Dhabi", que marca seu primeiro aniversário em 4 de fevereiro. Das três viagens, o missionário comboniano espanhol foi uma testemunha privilegiada, participando da comitiva papal primeiro como bispo e na última como cardeal que recebeu a púrpura no Consistório de outubro passado.

Comecemos com o "Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência comum", assinado pelo bispo de Roma e pelo Grão Imame de al-Azhar, Ahmed al-Tayyeb, na capital dos Emirados. Qual a importância deste texto hoje para o diálogo entre cristãos e muçulmanos?

Eu diria que é fundamental e que marca um divisor de águas: o fato de o líder da Igreja Católica e o líder da principal instituição acadêmica sunita do Cairo terem assinado uma declaração conjunta de intenção, com o patrocínio do príncipe herdeiro de Abu Dhabi, constitui um marco no campo do caminho do diálogo, sobretudo em uma época caracterizada por extremismos e fundamentalismos de matriz religiosa. Trata-se de tempos difíceis e é necessário um percurso comum em direção à verdade, levando em consideração a identidade de quem dialoga, sem ambiguidade; porque quem reza e pensa de maneira diferente nunca pode ser um inimigo.

Do documento emergiu um comitê superior para sua implementação. Como está o trabalho dessa nova realidade?

Está em constante evolução. Desde sua constituição em agosto passado até hoje, o Comitê superior para alcançar os objetivos contidos na Declaração já realizou vários encontros internacionais. O primeiro, no Vaticano, foi realizado significativamente em 11 de setembro. A Sé Apostólica estava representada por mim e por Monsenhor Yoannis Lahzi Gaid, da secretaria particular do Santo Padre. Al-Azhar participou com seu representante, o professor Mohamed Husin Abdelaziz Hassan, e com Mohamed Mahmoud Abdel Salam, juiz e ex-conselheiro do Graão Imame. Pelos Emirados Árabes Unidos, estava Mohamed Khalifa Al Mubarak, presidente de Abu Dhabi Culture, Yasser Saeed Abdulla Hareb Almuhairi, escritor e jornalista, e Sultan Faisal Al Khalifa Alremeithi, secretário geral dos Anciãos Muçulmanos. Na ocasião, fui nomeado presidente e Abdel Salam secretário. Entre os momentos mais significativos daquela reunião, recordo que recebemos a saudação do Papa e do substituto da Secretaria de Estado, e que ela foi concluída com uma oração, cada uma de acordo com sua fé, pelas vítimas de 11 de setembro de 2001 e de todos os atos de terrorismo.

Foi por isso que Nova York foi escolhida para o segundo encontro?

Foi uma decisão quase natural, mesmo porque nesse meio tempo um oitavo membro havia sido incluído no Comitê: M. Bruce Lustig, rabino sênior da Congregação Judaica de Washington. Assim agora temos representantes das grandes religiões monoteístas. Além disso, durante o evento realizado em Nova York, foi apresentado o modelo do projeto arquitetônico para a construção da "Casa da família abraâmica", que personifica os ideais do "Documento sobre a Fraternidade humana", por meio da construção de uma igreja, de uma mesquita e de uma Sinagoga em Abu Dhabi: vários locais de culto unidos entre eles por fundações comuns em torno de um jardim, uma imagem que tem um significado importante para cada uma das três religiões.

O senhor poderia antecipar outras iniciativas em andamento?

A mais esperada é aquela que diz respeito à intenção de a ONU proclamar o 4 de fevereiro como Dia Mundial da Fraternidade. Trata-se de uma proposta do Papa Francisco que entregamos ao secretário-geral em 4 de dezembro. António Guterres expressou seu apreço e disponibilidade, designando seu “Special adviser for Hate speech and the Prevention of genocide”, Adama Dieng, representante do Palácio de Vidro, para acompanhar as atividades propostas e colaborar com o Comitê Superior, no qual recentemente passou a fazer parte uma mulher, a búlgara Irina Bokova, ex-diretora geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a  Ciência e a Cultura (Unesco). Por fim, para completar esta retrospectiva, não pode faltar uma referência à América Latina: em novembro, o Pontífice recebeu no Vaticano os participantes de um encontro sobre a "Declaração de Abu Dhabi", organizado pelo Instituto de diálogo inter-religioso de Buenos Aires, realizado na Cúria Geral da Companhia de Jesus, com apoio da Embaixada da Argentina na Santa Sé e com o patrocínio de nosso Pontifício Conselho.

Sempre em respeito às relações com o Islã, como está a colaboração com o Centro Internacional Rei Abdullah Bin Abdulaziz de Diálogo Inter-Religioso e Intercultural (Kaiciid) em Viena?

Nele eu represento a Santa Sé junto ao Conselho das Partes, desempenhando também a função de Observador Fundador. No final de outubro, proferi uma palestra sobre o tema da fraternidade humana, vinculando-o com aquele dos trabalhos: «O poder das palavras. O papel da religião, da mídia e da política na luta contra o ódio ". A esse respeito gostaria de recordar, também por questões de grande atualidade, a visita feita à capital do Irã em novembro para a décima primeira reunião entre o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso e Center for interreligious dialogue dell’Islamic culture and relations Organization (Icro) de Teerã.

Mas, voltemos às "viagens de fraternidade" do Papa Francisco. Qual foi o momento mais emblemático dessa fraternidade no Marrocos?

Eu diria que o apelo lançado conjuntamente pelo Papa e pelo rei Mohammed VI sobre Jerusalém, cidade santa e local de encontro: um desejo de paz para o Oriente Médio atormentado. Mas nunca esquecerei os vários eventos vividos em Rabat, a capital deste reino, que tem um papel central no diálogo do mundo católico com os muçulmanos. Ademais, no oitavo centenário do histórico encontro entre São Francisco de Assis e o sultão al-Malik al-Kāmil, o Papa visitou dois países em menos de sessenta dias dois países em que o islamismo é fortemente majoritário. E em ambos pudemos observar os passos em direção à modernidade e a renovação da comunidade muçulmana por meio de estruturas institucionais, acadêmicas e de pensamento. Basta pensar no progresso feito na nação marroquina como a emancipação das mulheres, como o código da família, a Mudawwana, que desde 2004 eliminou quase completamente os obstáculos à igualdade de gênero.

Por fim, em novembro, houve a longa peregrinação à Ásia, na qual participei - assim como nas outras duas - mas com uma veste diferente ... como presidente, porque nesse meio tempo o Papa Francisco decidiu me nomear sucessor do inesquecível cardeal Jean-Louis Tauran à frente do dicastério, e me criar cardeal no Consistório de outubro. É evidente o desejo do Santo Padre - expresso também pela nomeação como secretário de Monsenhor Indunil Kodithuwakku, ex-subsecretário - de querer dar continuidade ao trabalho do dicastério.

A Viagem Apostólica foi rica de experiências e encontros, quer na Tailândia como no Japão onde, mesmo que a Igreja Católica seja um pequeno rebanho, existe um ar de respeito e amizade, conforme desejado pelo Santo Padre, entre os vários componentes daquelas sociedades, bem como entre as diferentes religiões. A visita do Pontífice à Tailândia e ao Japão, portanto, contribuiu para intensificar as relações entre representantes das várias religiões e os católicos, para que possam progredir no conhecimento recíproco e na estima das respectivas tradições espirituais, e possam ser no mundo testemunhas dos valores da justiça, da paz e da fraternidade humana.

No que tange à atividade ordinária do Pontifício Conselho, quais os eventos e iniciativas mais relevantes?

Digamos que por tradição o ano inicia com um encontro com o Escritório de Diálogo Inter-Religioso e da Cooperação (IRDC) do Conselho Ecumênico de Igrejas (WCC, sigla em inglês). Dele resultou um documento conjunto, apresentado em maio em Genebra, com o título "Educação para a paz em um mundo multirreligioso: uma perspectiva cristã". Muitos foram os encontros organizados para refletir sobre o "Documento sobre Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e a Convivência Comum". Recordo aqui de um seminário realizado em junho na Pontifícia Universidade Urbaniana, por iniciativa do embaixador indonésio Agus Sriyono, coordenador dos diplomatas asiáticos credenciados junto à Santa Sé, sobre as perspectivas de diálogo inter-religioso no continente, que contou com a presença de oradores da fé islâmica e budista. Nesta ocasião, o verbita Markus Solo, oficial do dicastério, leu um texto em meu nome. No mesmo mês, fui pessoalmente a Cingapura para uma conferência internacional sobre o "Papel da fé na formação da harmonia social nas sociedades pluralistas". Entre os palestrantes oficiais estava o chefe da cidade-estado organizadora, a presidente Halimah Yacob, e o rei Abdullah II da Jordânia. Por fim, em outubro, Roma foi o coração pulsante de várias atividades: em primeiro lugar, recebemos os membros da Conferência Episcopal Regional do Norte da África (Cerna) na conclusão da assembleia realizada na Urbe; então, organizamos um dia de estudo pelo 150º aniversário do nascimento de Gandhi; e sempre com o olhar voltado para a Ásia, uma importante contribuição para aprofundar o conhecimento mútuo, que leva a melhorar as riquezas das diferentes tradições de fé, foi alcançado com a conferência inter-religiosa realizada por ocasião do 550º aniversário do Sri Guru Nanak Dev Ji, fundador do sikhismo. Quanto ao budismo e ao taoísmo, trabalhou-se na organização de colóquios que terão lugar em 2020. Como sempre, o dicastério recebeu visitas de numerosos grupos de budistas, que muitas vezes também pudemos acompanhar nas Audiências Gerais de quarta-feira. Tive a oportunidade de participar da importante cerimônia de assinatura da Declaração sobre o fim da vida assinada no Vaticano por representantes das religiões abraâmicas, elaborada pela Pontifícia Academia para a Vida.

O Pontífice também visitou uma exposição dedicada ao cardeal Tauran. Que recordações o senhor guarda de seu predecessor?

Um ano e meio se passou desde a sua morte e é uma falta que sentimos com pesar. Especialmente nos últimos tempos, quando o fardo da doença foi maior, nós fomos de certa forma sua família romana, criando laços com ele que foram muito além das questões normais das relações de trabalho.

Entre as formas tradicionais de diálogo usadas pelo dicastério estão as mensagens enviadas por ocasião das principais festas de outras religiões. Qual o significado deste gesto?

São gestos de cortesia, de compartilhar da alegria com os fiéis de várias partes do mundo. Como aquela que há mais de 50 anos enviamos aos muçulmanos mês do Ramadã, focada em 2019 - e não poderia ser diferente - na fraternidade humana. "Budistas e cristãos: promovamos a igualdade de direitos das mulheres e das jovens" foram os votos para a festa de Vesakh / Hanamatsuri, durante a qual são celebrados os principais eventos da vida de Buda. Por fim, "Crentes: construtores de fraternidade e de coexistência pacífica" foi o tema do texto enviado aos hinduístas por ocasião de Deepavali. Na ocasião do Guru Nanak Prakash Divas, enviamos uma mensagem à comunidade sikh sobre o tema: ​​"Cristãos e sikhs: promover juntos a fraternidade humana"; enquanto aos adeptos do xintoísmo, escrevemos sobre o tema "Cristãos e seguidores do xintoísmo juntos: promover toda forma de vida".

(L'Osservatore Romano)

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04 fevereiro 2020, 08:17