Viagem Pastoral de João Paulo II à Ucrânia (de 23 a 27 de junho de 2001) Viagem Pastoral de João Paulo II à Ucrânia (de 23 a 27 de junho de 2001) 

“Paz precária”: a atualidade da Centesimus annus de São João Paulo II

"Eu próprio, por ocasião da recente guerra dramática no Golfo Pérsico, repeti o grito: «Nunca mais a guerra»! Nunca mais a guerra, que destrói a vida dos inocentes, que ensina a matar e igualmente perturba a vida dos assassinos, que deixa atrás de si um cortejo de rancores e de ódios, tornando mais difícil a justa solução dos próprios problemas que a provocaram!" (João Paulo II na Encíclica Centesimus annus)

Jackson Erpen - Cidade do Vaticano

“Nestes dias, ficamos abalados por algo trágico: a guerra. Muitas vezes rezamos para que este caminho não fosse percorrido. E não paramos de falar; pelo contrário, suplicamos a Deus com mais intensidade. Quem faz a guerra esquece a humanidade. Não parte do povo, não olha para a vida concreta das pessoas, mas coloca diante de tudo interesses de parte e de poder. Baseia-se na lógica diabólica e perversa das armas, que é a mais distante da vontade de Deus. E se distancia das pessoas comuns, que desejam a paz; e que em cada conflito - pessoas comuns - são as verdadeiras vítimas, que pagam as loucuras da guerra com a própria pele. - Papa Francisco, Angelus de 27 de fevereiro de 2022”

Com a invasão russa da Ucrânia, o mundo volta a mergulhar no pesadelo da guerra, com desdobramentos ainda imprevisíveis. Nesse interim, a importância de recordarmos a ação de alguns Pontífices ao longo de conflitos precedentes, a começar pelo Papa Bento XV, que  governou a Igreja por sete anos e meio, quatro dos quais em meio aos horrores da I Guerra Mundial, que eclodiu em 1914.

 

Na sua primeira Encícilica, Ad beatissimi apostolorum, escreve que "todos os dias, a terra transborda de mais sangue, coberta de mortos e feridos". Já na Exortação Apostólica Ubi primum, de 8 de setembro de 1914, exortava "os responsáveis pelo destino dos povos a depor todos os seus dissídios em prol da sociedade humana”. Já com a data de 1º de agosto de 1917 é sua “Nota de Paz”, dirigida aos líderes dos povos em conflito. E de 1º de setembro de 1918, é sua Encíclica Quod iam diupublicada em três semanas depois do armistício, onde pedia a todos os católicos que rezassem pela paz e por aqueles que se ocupavam com as negociações de paz, ressaltando que a verdadeira paz não tinha chegado, mas que somente foram suspensas as hostilidades e a devastação.

Já durante a II Guerra Mundial, o Papa reinante era Pio XII. Antes de seu início, dirigiu a radiomensagem “Un’ora grave” aos governantes e aos povos no iminente perigo de guerra”, onde exortava todos “a dirigir o olhar para o Alto e a pedir com preces fervorosas ao Senhor que a sua graça desça abundantemente sobre este mundo devastado, aplaque a ira, reconcilie os ânimos e faça resplandecer a aurora de um futuro mais sereno.”

 

Outro período de ameaça à paz mundial foi durante o Pontificado de João XXIII. Dele é a Carta Encíclica Pacem in Terris dirigida a todos os homens de boa-vontade: "A paz na terra, anseio profundo dos seres humanos de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus".

O “Papa bom”, como era chamado, também mediou a crise dos mísseis entre Cuba e Estados Unidos, em plena Guerra Fria. Em 22 de outubro de 1962, o presidente dos Estados Unidos John Kennedy havia alertado que um único míssil disparado de Cuba contra seu país desencadearia uma retaliação contra a União Soviética, enquanto anunciava o bloqueio naval a navios russos. Nikita Khrushchev - que liderou a União Soviética durante parte da Guerra Fria como secretário-geral do Partido Comunista de 1953 a 1964 e como presidente do Conselho de Ministros de 1958 a 1964 - afirmou que tal ação levaria à guerra.

O tema da paz aparece também na Encíclica de Paulo VI Populorum Progressio, na qual afirma que “Desenvolvimento é o novo nome da paz”.

Chegamos ao Papa polonês, João Paulo II, que tendo vivido os horrores da II Guerra Mundial e a opressão do regime comunista, foi incansável no trabalho pela paz e a reconciliação da humanidade. Mas sobre isso nos fala Felipe Sérgio Koller*, que tem nos trazido uma série de reflexões sobre a  Encíclica Centesimus annus, que completou 30 anos em 2021:

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“É verdade que, desde 1945, as armas silenciam no continente europeu; mas a verdadeira paz — deve-se lembrar — nunca é o resultado da vitória militar, mas implica a superação das causas da guerra e a autêntica reconciliação entre os povos”. Essas palavras de São João Paulo II na Encíclica Centesimus annus (n. 18), de 1991, mostram ao mesmo tempo a gravidade e a raiz dos conflitos envolvendo o ataque da Rússia à Ucrânia nos últimos dias. O Papa eslavo estava atento a esse bom sinal do “silêncio” das armas, mas sabia enxergar mais longe: a paz não pode simplesmente ser dada por conquistada.

 

Na encíclica, que estamos revisitando em uma série de contribuições aqui no Vatican News, João Paulo II chegava a dizer que a situação da Europa e do mundo era mais de “não guerra” do que de “paz verdadeira” (n. 18). A colonização cultural, as migrações forçadas, a instrumentalização de conflitos das periferias do mundo como fantoches e a corrida armamentista eram sinais de que a paz ainda estava longe, porque faltavam as condições para o seu enraizamento no coração dos homens e mulheres e da sociedade.

“Os pontífices Bento XV e seus sucessores compreenderam lucidamente este perigo, e eu próprio, por ocasião da recente guerra dramática no Golfo Pérsico, repeti o grito: «Nunca mais a guerra»! Nunca mais a guerra, que destrói a vida dos inocentes, que ensina a matar e igualmente perturba a vida dos assassinos, que deixa atrás de si um cortejo de rancores e de ódios, tornando mais difícil a justa solução dos próprios problemas que a provocaram! Como dentro dos Estados chegou finalmente o tempo em que o sistema da vingança privada e da represália foi substituído pelo império da lei, do mesmo modo é agora urgente que um progresso semelhante tenha lugar na Comunidade internacional. Não se deve esquecer também que, na raiz da guerra, geralmente há reais e graves razões: injustiças sofridas, frustração de legítimas aspirações, miséria e exploração de multidões humanas desesperadas, que não vêem possibilidade real de melhorar as suas condições, através dos caminhos da paz. (João Paulo II - Centesimus annus)”

Aquela que se seguiu ao fim da II Guerra era uma “paz precária”, dizia o Papa, constituída mais pela ausência do conflito aberto do que pela presença de um empenho sólido em favor da comunhão entre os povos. Evitava-se a guerra, mas mais do que isso é necessário “rejeitar a lógica que a ela conduz”: para João Paulo II, “a ideia de que a luta pela destruição do adversário, a contradição e a própria guerra são fatores de progresso e avanço da história”. Já comentamos aqui como aquilo que a doutrina social da Igreja propõe é justamente um descer à raiz da realidade, colocando o nosso próprio coração à disposição de uma transformação.

Entra aqui a questão da cultura: a necessidade da formação de uma cultura da vida, como dizia João Paulo II, ou do encontro, nas palavras do Papa Francisco — ou, ainda, uma civilização do amor, expressão querida para São Paulo VI. A única solução real, portanto, não é um projeto que pode ser implementado em poucos anos, à força da lei ou das armas, mas algo que requer reconhecer que é mais importante iniciar processos do que ocupar espaços, como gosta de dizer o Papa Francisco: a cultura se tece lentamente, organicamente, artesanalmente, em meio a relações vivas entre rostos concretos.

 

“Para uma adequada formação de tal cultura, se requer a participação de todo o homem, que aí aplica a sua a criatividade, a sua inteligência, o seu conhecimento do mundo e dos homens. Aí investe ainda a sua capacidade de autodomínio, de sacrifício pessoal, de solidariedade e disponibilidade para promover o bem comum. Por isso, o primeiro e maior trabalho realiza-se no coração do homem, e o modo como ele se empenha em construir o seu futuro depende da concepção que tem de si mesmo e do seu destino”, ensinou São João Paulo II, ainda na Centesimus annus (n. 51).

Na primeira parte dessa série, conversamos justamente sobre o fato de que a doutrina social da Igreja se fundamenta numa visão da pessoa humana que recusa ao mesmo tempo o individualismo, isto é, a lógica da rivalidade entre nós, e o coletivismo, a lógica de uma massa à qual se consente a supressão do sujeito singular. A revelação cristã mostra o ser humano como ser constituído a partir das relações, em sua irrepetibilidade e riqueza próprias. Criado à imagem de Deus, o ser humano é chamado a cooperar com a obra da criação de si mesmo e do cosmo. “A Sagrada Escritura fala-nos continuamente do compromisso ativo a favor do irmão e apresenta-nos a exigência de uma corresponsabilidade que deve abraçar todos os homens” (n. 51), escreveu João Paulo II.

“O amor da Igreja pelos pobres, que é decisivo e pertence à sua constante tradição, impele-a a dirigir-se ao mundo no qual, apesar do progresso técnico-económico, a pobreza ameaça assumir formas gigantescas. Nos Países ocidentais, existe a variada pobreza dos grupos marginalizados, dos anciãos e doentes, das vítimas do consumismo, e ainda de tantos refugiados e emigrantes; nos Países em vias de desenvolvimento, desenham-se no horizonte crises dramáticas se não forem tomadas medidas internacionalmente coordenadas. (João Paulo II - Centesimus annus)”

Essa fraternidade universal, tema da última Encíclica de Francisco — Fratelli tutti — é ainda mais perceptível no contexto atual. Fica claro que ninguém está isolado, e que um conflito numa parte do mundo atinge a todos nós. “Não é difícil afirmar que a terrível capacidade dos meios de destruição, acessíveis já às médias e pequenas potências, e a conexão cada vez mais estreita entre os povos de toda a terra, tornam muito difícil ou praticamente impossível limitar as consequências de um conflito” (n. 51), afirmou João Paulo II.

 

Por isso, por um lado cada cristão tem o dever de repetir com o Papa: “Nunca mais a guerra, que destrói a vida dos inocentes, que ensina a matar e igualmente perturba a vida dos assassinos, que deixa atrás de si um cortejo de rancores e de ódios, tornando mais difícil a justa solução dos próprios problemas que a provocaram!” (n. 51). A guerra é uma opção a ser sempre descartada, mesmo se reconhecemos que possa haver injustiças reais na base do seu desencadeamento. Por outro lado, então, o caminho é aquele apontado por São Paulo VI na Encíclica Populorum progressio, publicada 55 anos atrás: o outro nome da paz é o desenvolvimento.

João Paulo II explicava: apenas uma cultura marcada pela busca do bem comum, fundamentada em relações de comunhão, é capaz de afastar o fantasma da guerra. Há, por isso, uma necessidade coletiva de promover o desenvolvimento. A partir das potencialidades de cada pessoa e de cada nação, o trabalho deve promover o bem em todos os níveis, também economicamente. Mas para que isso aconteça, as pessoas e nações mais desfavorecidas devem ter acesso a condições realistas de desenvolvimento — ainda que isso exija o sacrifício de lucro e de poder por parte das pessoas e nações mais favorecidas. Em tudo, é a dignidade da pessoa que manifesta a sua primazia."

*Felipe Sérgio Koller, leigo, teólogo, Mestre e Doutor em Teologia pela PUC-PR, professor dos cursos de especialização da Faculdade São Basílio Magno, em Curitiba, e da Católica de Santa Catarina, em Joinville,  co-fundador da Oficina de Nazaré (@oficina.de.nazare no Instagram), um projeto que fala da espiritualidade cristã nas redes sociais.

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João Paulo II na Ucrânia
04 março 2022, 09:23