Dom Peña Parra: o sal da terra, sabor de fraternidade
Vatican News
Na segunda-feira (19/09) iniciou a visita de Dom Edgar Peña Parra, Substituto para os Assuntos Gerais da Secretaria de Estado do Vaticano ao Timor Leste. Depois do encontro com o Presidente da República, José Ramos-Horta, Dom Peña Parra participou da Abertura do Centro da Fraternidade Humana Timor-Leste em prol da Paz Mundial. Nesta terça-feira (20) Dom Peña Parra participou da abertura da Conferência sobre a Declaração de Abu Dhabi junto à Universidade Católica Timorense. Em seu longo discurso o Bispo da Secretaria de Estado aprofundou o “Documento sobre a Fraternidade humana em prol da paz e da convivência comum” assinado em Abu Dhabi por Sua Santidade Papa Francisco e pelo Grão-Imame de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb no dia 4 de fevereiro de 2019. Acrescentando no início que não iria se deter na sua exegese, mas fornecer algumas reflexões sobre a sua importância no contexto do diálogo inter-religioso e na vida deste país. Propomos seu discurso na íntegra:
Sua Excelência, o Presidente da República,
[Eminentíssimo Grão-Chanceler,
Ilustres Autoridades políticas e religiosas,]
Magnífico Reitor,
Insignes professores e benemérito pessoal técnico-administrativo,
Queridos jovens universitários,
Senhoras e Senhores!
Saúdo-vos cordialmente, feliz por me encontrar aqui convosco neste lugar de cultura e de formação das gerações futuras, dotando-as de recursos capazes de contribuir para a elaboração duma visão cristã da sociedade onde, em prol da paz mundial e da convivência comum, sobressaia a Fraternidade humana como reza o Documento assim intitulado e assinado em Abu Dhabi por Sua Santidade Papa Franciso e pelo Grande Imã de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb no dia 4 de fevereiro de 2019. Pedistes-me para vos falar dele. Sabendo que já o estudastes cuidadosamente, não me vou deter na sua exegese propondo-me, antes, fornecer qualquer reflexão sobre a sua importância no contexto do diálogo inter-religioso e na vida deste país.
Pensei articular a conferência a partir duma imagem que vos é familiar e talvez possa ajudar, melhor do que os conceitos, a focar visualmente o meu pensamento. A imagem é a do sal, a primeira que Jesus utiliza nos Evangelhos, aplicando-a aos seus discípulos que designa como «o sal da terra» (Mt 5, 13). Mas é também a imagem dirigida aos timorenses por São João Paulo II na inesquecível Celebração Eucarística que teve lugar há trinta e três anos na esplanada de Tasi-Tolu. O Pontífice falou da vossa familiaridade com o sal, que é extraído «ao longo das planícies costeiras de Cassaid, Tibar, Manatuto e Sical e do Lago salgado em Laga».[1] Ora, no tempo de Cristo, as funções do sal eram substancialmente duas: dar sabor e conservar os alimentos.
1. O sal, sabor de fraternidade
O primeiro aspeto – dar sabor aos alimentos – é evocado no Evangelho. Ora o sal, para temperar pratos, deve dissolver-se nelas, ou seja, entrar em contacto com os alimentos, unir-se-lhes, por assim dizer «casar-se» com eles. Deixando a metáfora, digamos que ser sal da terra põe em destaque, não a preocupação por aparecer e pela própria relevância, mas o empenho por dar sabor ao conjunto, por preservar o vínculo comum. Visto neste sentido, o sal é símbolo de fraternidade. Gostaria de acrescentar que, olhando para as últimas décadas, o povo timorense merece plenamente a profética qualificação pontifícia de sal da terra. Sim, o vosso povo não está apenas reconciliado, mas é reconciliador: soube dar o gosto evangélico da fraternidade à terra que habita, representando um modelo de convivência pacífica. Verdadeiramente pode-se afirmar que esta terra, beijada pela Providência ainda antes de o ser pelo Papa, traz em si o sabor da fraternidade.
Assim, não foi por acaso que a República Democrática de Timor-Leste tenha sido o primeiro país do mundo a adotar, oficialmente, como «documento nacional» o Documento sobre a Fraternidade Humana. Trata-se duma decisão intrínseca ao espírito deste povo, em sintonia com a sua história e identidade. Não está impregnada de fraternidade duma forma abstrata, como sucedeu, por exemplo e com resultados trágicos, nas ideologias nacionalistas do século passado. Aqui, não! Aqui a fraternidade nasce e cresce através de histórias reais de encontro e reconciliação, pois aquela exige proximidade e concretização. O próprio Documento em questão não nasceu «sobre a secretária», mas na sequência do encontro fraterno entre o Papa Francisco e o Grande Imã de Al-Azhar. E, por falar de concretização, surpreendeu-me saber que é habitual, na língua tetum, dirigir-se aos desconhecidos com as palavras «maum» e «mana», isto é, irmão e irmã. Igualmente significativo é o costume nacional de se designarem as principais autoridades políticas por «maum-boot – irmãos mais velhos».
Segundo o Documento assinado em Abu Dhabi, este espírito concreto de fraternidade é a condição indispensável para se alcançar a paz. Com efeito, não pode haver paz verdadeira e duradoura, se os ideais de convivência não estiverem sustentados pela convicção de que somos por natureza irmãos e irmãs, enquanto criaturas de igual dignidade, «filhos e filhas do mesmo Céu» que caminham sobre a mesma terra, como sublinhou o Santo Padre há alguns dias no Cazaquistão.[2] Por isso é que o Documento sobre a fraternidade humana começa falando do ato próprio do crente, que aparece designado em sentido genérico como «fé». Crer no divino
«leva a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar. Da fé em Deus, que criou o universo, as criaturas e todos os seres humanos – iguais pela Sua Misericórdia –, o crente é chamado a expressar esta fraternidade humana, salvaguardando a criação e todo o universo e apoiando cada pessoa, especialmente as mais necessitadas e pobres».[3]
O sal, primeira metáfora de Jesus e símbolo profético deste país, levou-nos assim a refletir sobre a fraternidade como fundamento da paz. Sabe-se, porém, que, em alguns ambientes, o Documento sobre a Fraternidade não foi acolhido como sal saboroso, mas de gosto desagradável (poder-se-ia dizer: como «sal nas feridas»). Apraz-me apresentar-vos duas propostas criativas perante os desafios da nossa sociedade multicultural.
Perante o desafio da fraqueza ingénua
Segundo alguns, esta visão universal de fraternidade apareceria fraca e ingénua face aos desafios do mundo; este prevê que, para se obter resultados, seja preciso aumentar a própria relevância, sob pena de se mostrar indefesos perante a agressividade alheia. Se pensarmos um pouco, porem, veremos que tal crítica toca não apenas o método, mas também a natureza da fé. E, quanto a esta, não se pode negar que muitas vezes, na história, foi anunciada ou se permitiu que fosse anunciada valendo-se de meios nem sempre evangélicos, incluindo a força. Todavia, deste modo, foi desmentida não só a forma cristã, mas também o próprio conteúdo do Evangelho: aquelas bem-aventuranças que precedem imediatamente a afirmação «vós sois o sal da terra». Além disso, a imposição da fé, mesmo considerando apenas os efeitos alcançados, parece nunca ter trazido os resultados esperados.
Pelo contrário, a paixão pelo Evangelho requer que se assimile o estilo de Deus: aquele estilo, sobre o qual muito insiste o Papa, feito de proximidade, compaixão e ternura para com todos. Precisamos gastarmos pelo bem de todos, e isso quer dizer capacidade de falar com todos, assim como o sal, se derrete pelos outros em vez de se conservar para si próprio. E o Santo Padre, por sua vez, sublinhou já várias vezes como isto não seja perdedor, mas vencedor enquanto claramente cristão. A propósito, eis algumas das suas palavras, muito diretas:
«Poderíeis dizer-me: doar-se, viver para Deus e para os outros é uma grande canseira por nada; a realidade do mundo é outra: para ir em frente serve (…) dinheiro e poder. Mas isto é uma grande ilusão: o dinheiro e o poder não libertam o homem, escravizam-no. Vede! Deus não exerce o poder para resolver os nossos males nem os do mundo. O seu caminho é sempre o do amor humilde: só o amor liberta dentro, dá paz e alegria. Por isso o verdadeiro poder, o poder segundo Deus, é o serviço».[4]
Este fundamento espiritual ajuda-nos a compreender o motivo por que missão e diálogo, para os cristãos, andam de mãos dadas. Não se opõem, antes apoiam-se: se a missão anuncia o Deus de Jesus que, a todos, deseja salvar através do amor humilde e do serviço nenhuma atitude é mais adequada do que a abertura, o encontro, o diálogo com todos; a atitude que dá testemunho de Cristo com a vida. Disto é mais uma vez exemplo este país: a fé cristã e a abertura ao diálogo caminharam de mãos dadas, de modo que a restauração da sua independência e a obtenção da sua soberania nacional não se revelaram factos excludentes, mas inclusivos; fundados na saborosa terra da fraternidade evangélica, conseguiram ver como próximo e companheiro o país antes hostilizado como ocupante, e chamar irmãos e amigos aqueles que antes eram considerados inimigos. Eis as vitórias do Evangelho: alcançam-se a partir da fé que professa vitorioso o espírito das bem-aventuranças.
Do sincretismo conciliador ao proselitismo
O segundo aspeto positivo do Documento sobre a fraternidade e tem a ver com um aspeto ainda mais delicado do ponto de vista da teologia sistemática. A finalidade do cristianismo é a difusão da fé e não é possível o reduzir a uma espécie de conciliação universal das religiões que, segundo o relativismo generalizado de pensamento, seriam em última analise «todas iguais» ou pelo contrario o alvo do cristianismo seria de converter o maior numero de pessoas possível para acrescentar os cristãos. Na realidade, o Papa tem estado muito atento a este aspeto, pondo em evidência a natureza do diálogo inter-religioso. Fê-lo na universidade de Al-Azhar, deixando claro que o diálogo não deve de forma alguma comportar a perda das convicções próprias, mas a predisposição para se confrontar em nome das mesmas sem cair num proselitismo falaz. E enunciou três diretrizes fundamentais:
«O dever da identidade, a coragem da alteridade e a sinceridade das intenções. O dever de identidade, porque não se pode construir um verdadeiro diálogo sobre a ambiguidade nem sobre o sacrifício do bem para agradar ao outro; a coragem da alteridade, porque, quem é cultural ou religiosamente diferente de mim, não deve ser visto e tratado como um inimigo, mas recebido como um companheiro de viagem, na genuína convicção de que o bem de cada um reside no bem de todos; a sinceridade das intenções, porque o diálogo, enquanto expressão autêntica do humano, não é uma estratégia para se conseguir segundos fins, mas um caminho de verdade, que merece ser pacientemente empreendido para transformar a competição em colaboração».
E acrescentou: «Sem ceder a sincretismos conciliadores, a nossa tarefa é rezar uns pelos outros pedindo a Deus o dom da paz, encontrar-nos, dialogar e promover a concórdia em espírito de colaboração e amizade».[5] Conceito reafirmado também em Abu Dhabi no Discurso que acompanhou o nosso Documento: «a atitude correta não é a uniformidade forçada nem o sincretismo conciliador: o que estamos chamados a fazer como crentes é trabalhar pela igual dignidade de todos em nome do Misericordioso, que nos criou e em cujo Nome se deve buscar a composição dos contrastes e a fraternidade na diversidade».[6]
O «sal da religião»
Chegamos assim a um aspeto fundamental do diálogo inter-religioso, do qual o Documento de Abu Dhabi representa um momento significativo. De facto, lá destaca-se, sem ambiguidade, não só o empenho pela paz que deve caraterizar a religião, mas também a essência autêntica do ato religioso. O essencial, o «sal da religião», reside – segundo o Papa – em dois pontos firmes, já sublinhados em 2016 no Azerbaijão, um país de maioria islâmica: «As religiões são chamadas a fazer-nos compreender que o centro do homem está fora dele, que tendemos para o Outro infinito e para o outro que está próximo de nós. Aí o homem é chamado a encaminhar a vida rumo ao amor mais sublime e, simultaneamente, mais concreto: este não pode deixar de estar no cume de toda a aspiração autenticamente religiosa».[7] Em Abu Dhabi, o Santo Padre reiterou o mesmo conceito:
«A verdadeira religiosidade consiste em amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmo. Por isso, a conduta religiosa precisa de ser continuamente purificada duma tentação frequente: considerar os outros como inimigos e adversários. Cada credo é chamado a superar o desnível entre amigos e inimigos, assumindo a perspetiva do Céu que abraça os homens sem privilégios nem discriminações».[8]
Como uma espécie de leitmotiv no diálogo inter-religioso, a ideia foi retomada pelo Santo Padre no Iraque[9] e, com extrema clareza, há pouco no Cazaquistão:
«As grandes sabedorias e religiões são chamadas a testemunhar, a todos os seres humanos, a existência dum património espiritual e moral comum, que assenta sobre dois pilares: a transcendência e a fraternidade. A transcendência, o Além, a adoração. (…) E, depois, a fraternidade, o outro, a proximidade: pois não pode professar verdadeira adesão ao Criador quem não ama as suas criaturas.[10]
Consequência de tudo isto é que «a violência constitui a negação de toda a religiosidade autêntica»;[11] por isso, «religiosamente, não há violência que se possa justificar».[12] Isto comporta a exigência de cada religião se «purificar» e empenhar ativamente em desmascarar qualquer violência que tenda a revestir-se de presumível sacralidade, se não incitando pelo menos justificando violações contra a dignidade humana e os legítimos direitos humanos.[13]
2. O sal, conservante da convivência
O pensamento desenvolvido até aqui girou em torno do sal, sabor de fraternidade. Vejamos agora a segunda utilização do sal no tempo de Cristo: conservar os alimentos de maior valor, como a carne e o peixe, para não se deteriorarem. O Documento sobre a fraternidade propõe diversos temas, visando favorecer não só a paz, mas a conservação e o desenvolvimento do segundo aspeto mencionado no título, a convivência comum. Quase no final do referido Documento lê-se:
«Al-Azhar e a Igreja Católica pedem que este Documento se torne objeto de pesquisa e reflexão em todas as escolas, nas universidades e nos institutos de educação e formação, a fim de contribuir para criar novas gerações que levem o bem e a paz e defendam por todo o lado o direito dos oprimidos e dos marginalizados».
Vemos assim o primeiro aspeto, que está relacionado com a educação das novas gerações.
A importância da instrução
Para conservar é preciso educar. O tema apresenta-se de forma perentória tanto no discurso que Sua Santidade pronunciou em Al-Azhar como no de Abu Dhabi. O Papa sublinhou a imprescindibilidade duma instrução que se dedique não apenas a argumentos técnicos orientados para o lucro, mas também a temáticas humanistas; e ainda duma educação voltada não apenas para as potencialidades do indivíduo, mas também para o cuidado do conjunto. Eis uma passagem do discurso pronunciado no Egito:
«Não haverá uma educação adequada para os jovens de hoje, se a formação que lhes for dada não corresponder bem à natureza do homem, ser aberto e relacional. Com efeito, a educação torna-se sabedoria de vida quando é capaz de tirar do homem, em contacto com Aquele que o transcende e com aquilo que o rodeia, o melhor de si, formando identidades não fechadas em si mesmas. A sabedoria procura o outro, superando a tentação da rigidez e fechamento; aberta e em movimento, humilde e ao mesmo tempo indagadora, sabe valorizar o passado e pô-lo em diálogo com o presente, sem renunciar a uma hermenêutica adequada. Esta sabedoria prepara um futuro em que se visa fazer prevalecer, não a própria parte, mas o outro como parte integrante de si mesmo; aquela não se cansa de individuar, no presente, ocasiões de encontro e partilha; do passado, aprende que do mal brota unicamente mal, e da violência só violência, numa espiral que acaba por nos fazer prisioneiros. Esta sabedoria, rejeitando a avidez de prevaricação, coloca no centro a dignidade do homem, precioso aos olhos de Deus, e uma ética que seja digna do homem, rejeitando o medo do outro e o temor de conhecer mediante os meios de que o dotou o Criador».
E motivadores são também alguns trechos do discurso de Abu Dhabi:
«A educação tem lugar na relação, na reciprocidade. À famosa máxima antiga «conhece-te a ti mesmo», devemos juntar «conhece o irmão»: a sua história, a sua cultura e a sua fé, porque, sem o outro, não há verdadeiro conhecimento de si mesmo».
«Investir na cultura favorece a diminuição do ódio e o crescimento da civilidade e prosperidade. Educação e violência são inversamente proporcionais».
«Cercados frequentemente por mensagens negativas e notícias falsas, os jovens precisam de aprender a não ceder às seduções do materialismo, do ódio e dos preconceitos, a reagir à injustiça e também às experiências dolorosas do passado e a defender os direitos dos outros com o mesmo vigor com que defendem os próprios. Um dia, serão eles a julgar-nos: bem, se lhes tivermos dado bases sólidas para criar novos encontros de civilidade; mal, se lhes tivermos deixado apenas miragens e a desoladora perspetiva de nefastos conflitos de incivilidade».
À luz disto, reveste-se ainda de maior importância histórica a decisão, tomada pelo Parlamento e pelo Estado no seu conjunto, de assumir o que está contido no Documento de Abu Dhabi e adotá-lo nos currículos de formação das escolas de primeiro e segundo grau, e nas universidades. De facto, não é possível adquirir duma vez por todas aquilo que se aprendeu; requer-se uma elaboração paciente e continuada que saiba, à semelhança do que faz o sal com os alimentos, conservar por muito tempo a sua qualidade a fim de se formarem consciências sempre mais amadurecidas. Deste ponto de vista, acolher o critério da fraternidade como caminho fundamental de relação humana, social, política e religiosa constitui uma decisão verdadeiramente perspicaz; e testemunha também o empenho de abraçar o desafio educacional, envolvendo os jovens nos temas que dizem respeito à convivência quotidiana, tornando-os assim protagonistas da vida do seu país, para nela se realizarem, com criatividade e empenho, os sonhos que trazem no coração.
Ingredientes para manter a paz
Sem a pretensão de ser completo, menciono outros três ingredientes, presentes no Documento de Abu Dhabi e solicitados pelo Papa Francisco, como indispensáveis no caminho tendente à paz e à convivência fraterna:
1. «A justiça baseada na misericórdia», que, segundo o nosso Documento, é «o caminho a percorrer para se alcançar uma vida digna, a que tem direito todo o ser humano». No seu discurso em Abu Dhabi, o Papa defendeu que a justiça (depois da educação) é «a segunda asa da paz; com frequência, esta não é comprometida por episódios individuais, mas é lentamente devorada pelo câncer da injustiça». De facto, «paz e justiça, são inseparáveis (…). A paz morre, quando se divorcia da justiça, mas a justiça revela-se falsa se não for universal. Uma justiça circunscrita apenas aos familiares, aos compatriotas, aos crentes da mesma fé é uma justiça claudicante, é uma injustiça disfarçada». Por sua vez, «as religiões têm também a tarefa de lembrar que a ganância do lucro torna néscio o coração e que as leis do mercado atual, ao exigir tudo e súbito, não ajudam o encontro, o diálogo, a família: dimensões essenciais da vida que precisam de tempo e paciência». Tudo isto comporta não uma solidariedade apenas genérica, mas, segundo Papa Francisco, uma tomada de posição: «As religiões sejam voz dos últimos – estes não são meros números de estatística, mas irmãos – e estejam da parte dos pobres; velem como sentinelas de fraternidade na noite dos conflitos, sejam apelos diligentes à humanidade para que não feche os olhos perante as injustiças e nunca se resigne com os dramas sem conta no mundo».
2. A promoção e a tutela da liberdade, em particular da liberdade religiosa, direito inalienável e imprescindível de todo o grupo e ser humano;
3. A oração, a qual, «ao mesmo tempo que encarna a coragem da alteridade em relação a Deus, na sinceridade da intenção purifica o coração de fechar-se em si mesmo» e é «um reconstituinte de fraternidade».[14]
Guardar o espírito do caminho
Concluindo, o diálogo inter-religioso é um sal precioso para dar sabor e conservar a fraternidade. Há poucos dias, o Papa reiterou que aquele «já não é apenas uma oportunidade, mas um serviço urgente e insubstituível à humanidade».[15] É possível ver como o caminho de tal diálogo tenha já um percurso bastante consolidado, a começar dos históricos encontros promovidos por João Paulo II em Assis, donde havia de surgir, juntamente com outros Encontros, também o Congresso Mundial recém-celebrado na capital cazaque. Além disso, cingindo-nos aos últimos anos, o Santo Padre dedicou uma parte saliente de muitas viagens aos encontros e ao diálogo inter-religioso, em particular com o Islã. A este respeito, menciono o do Azerbaijão em 2016, do Egito em 2017, dos Emirados Árabes Unidos em 2019, do Iraque em 2021, até este último, alguns dias atrás, no Cazaquistão.
E assim chegamos, nos dias de hoje, aos quatro desafios que em Nur-Sultan apresentou aos representantes religiosos. Em primeiro lugar, lembrou a importância de as religiões recordarem aos seres humanos a sua vulnerabilidade de criaturas e a obrigação de cuidar no contexto pandémico. Em segundo lugar, fez um forte apelo para que nos comprometamos pela paz. Em seguida, destacou dois outros desafios: o acolhimento fraterno e a preservação da casa comum.[16]
E confiando ao vosso estudo estas fronteiras do compromisso comum face às emergências globais que dizem respeito a todos e, em primeiro lugar, às religiões, termino com um voto que, estou certo, partilhais e que formulo com as palavras do Pontífice: «Na noite dos conflitos que estamos a atravessar, as religiões sejam alvoradas de paz, sementes de renascimento por entre devastações de morte, ecos de diálogo que ressoam incansavelmente, caminhos de encontro e reconciliação para se chegar mesmo lá onde as tentativas das mediações oficiais parecem não ter êxito».[17] Obrigado.
Notas:
[1] Homilia, 12 de outubro de 1989, n. 2.
[2] Cf. Discurso na Abertura do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, Nur-Sultan, 14 de setembro de 2022.
[3] Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum, Prefácio, Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019. Vejam-se as palavras do Santo Padre no seu discurso sucessivo à apresentação do Documento: «O ponto de partida é reconhecer que Deus está na origem da única família humana. Criador de tudo e de todos, quer que vivamos como irmãos e irmãs, morando nesta casa comum da criação que Ele nos deu. Funda-se aqui, nas raízes da nossa humanidade comum, a fraternidade como vocação contida no desígnio criador de Deus. Esta fraternidade diz-nos que todos temos igual dignidade, pelo que ninguém pode ser dono ou escravo dos outros» (Discurso no Encontro Inter-religioso, Founder’s Memorial em Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019).
[4] Homilia proferida em Palermo, 15 de setembro de 2018.
[5] Discurso aos participantes na Conferência Internacional sobre a Paz, Al-Azhar, Cairo, 28 de abril de 2017.
[6] Discurso no Encontro Inter-religioso, Founder’s Memorial em Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019.
[7] Discurso no Encontro inter-religioso, Baku, 2 de outubro de 2016.
[8] Discurso no Encontro Inter-religioso, Founder’s Memorial em Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019.
[9] Cf. Discurso no Encontro Inter-religioso, Planície de Ur, 6 de março de 2021.
[10] Discurso no encerramento do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, Nur-Sultan, 15 de setembro de 2022.
[11] Discurso aos participantes na Conferência Internacional sobre a Paz, Al-Azhar, Cairo, 28 de abril de 2017.
[12] Discurso no Encontro Inter-religioso, Founder’s Memorial em Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019.
[13] Cf Discurso na Abertura do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, Nur-Sultan, 14 de setembro de 2022; Discurso aos participantes na Conferência Internacional sobre a Paz, Al-Azhar, Cairo, 28 de abril de 2017.
[14] Discurso no Encontro Inter-religioso, Founder’s Memorial em Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019.
[15] Discurso no encerramento do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, Nur-Sultan, 15 de setembro de 2022.
[16] Cf. Discurso na Abertura do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, Nur-Sultan, 14 de setembro de 2022.
[17] Discurso no Encontro Inter-religioso, Baku, 2 de outubro de 2016.
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