Dom Peña Parra: o sal da terra, sabor de fraternidade

“A fé cristã e a abertura ao diálogo caminharam de mãos dadas, de modo que a restauração da sua independência e a obtenção da sua soberania nacional não se revelaram fatos excludentes, mas inclusivos”. Palavras de Dom Edgar Peña Parra, Substituto dos Assuntos Gerais da Secretaria de Estado na abertura do Centro pela Fraternidade Humana Timor-Leste em prol da Paz Mundial

Vatican News

Na segunda-feira (19/09) iniciou a visita de Dom Edgar Peña Parra, Substituto para os Assuntos Gerais da Secretaria de Estado do Vaticano ao Timor Leste. Depois do encontro com o Presidente da República, José Ramos-Horta, Dom Peña Parra participou da Abertura do Centro da Fraternidade Humana Timor-Leste em prol da Paz Mundial. Nesta terça-feira (20) Dom Peña Parra participou da abertura da Conferência sobre a Declaração de Abu Dhabi junto à Universidade Católica Timorense. Em seu longo discurso o Bispo da Secretaria de Estado aprofundou o “Documento sobre a Fraternidade humana em prol da paz e da convivência comum” assinado em Abu Dhabi por Sua Santidade Papa Francisco e pelo Grão-Imame de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb no dia 4 de fevereiro de 2019. Acrescentando no início que não iria se deter na sua exegese, mas fornecer algumas reflexões sobre a sua importância no contexto do diálogo inter-religioso e na vida deste país. Propomos seu discurso na íntegra:

Sua Excelência, o Presidente da República,
[Eminentíssimo Grão-Chanceler,
Ilustres Autoridades políticas e religiosas,]
Magnífico Reitor,
Insignes professores e benemérito pessoal técnico-administrativo,
Queridos jovens universitários,
Senhoras e Senhores!

Saúdo-vos cordialmente, feliz por me encontrar aqui convosco neste lugar de cultura e de formação das gerações futuras, dotando-as de recursos capazes de contribuir para a elaboração duma visão cristã da sociedade onde, em prol da paz mundial e da convivência comum, sobressaia a Fraternidade humana como reza o Documento assim intitulado e assinado em Abu Dhabi por Sua Santidade Papa Franciso e pelo Grande Imã de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb no dia 4 de fevereiro de 2019. Pedistes-me para vos falar dele. Sabendo que já o estudastes cuidadosamente, não me vou deter na sua exegese propondo-me, antes, fornecer qualquer reflexão sobre a sua importância no contexto do diálogo inter-religioso e na vida deste país.

Pensei articular a conferência a partir duma imagem que vos é familiar e talvez possa ajudar, melhor do que os conceitos, a focar visualmente o meu pensamento. A imagem é a do sal, a primeira que Jesus utiliza nos Evangelhos, aplicando-a aos seus discípulos que designa como «o sal da terra» (Mt 5, 13). Mas é também a imagem dirigida aos timorenses por São João Paulo II na inesquecível Celebração Eucarística que teve lugar há trinta e três anos na esplanada de Tasi-Tolu. O Pontífice falou da vossa familiaridade com o sal, que é extraído «ao longo das planícies costeiras de Cassaid, Tibar, Manatuto e Sical e do Lago salgado em Laga».[1] Ora, no tempo de Cristo, as funções do sal eram substancialmente duas: dar sabor e conservar os alimentos.

1. O sal, sabor de fraternidade

O primeiro aspeto – dar sabor aos alimentos – é evocado no Evangelho. Ora o sal, para temperar pratos, deve dissolver-se nelas, ou seja, entrar em contacto com os alimentos, unir-se-lhes, por assim dizer «casar-se» com eles. Deixando a metáfora, digamos que ser sal da terra põe em destaque, não a preocupação por aparecer e pela própria relevância, mas o empenho por dar sabor ao conjunto, por preservar o vínculo comum. Visto neste sentido, o sal é símbolo de fraternidade. Gostaria de acrescentar que, olhando para as últimas décadas, o povo timorense merece plenamente a profética qualificação pontifícia de sal da terra. Sim, o vosso povo não está apenas reconciliado, mas é reconciliador: soube dar o gosto evangélico da fraternidade à terra que habita, representando um modelo de convivência pacífica. Verdadeiramente pode-se afirmar que esta terra, beijada pela Providência ainda antes de o ser pelo Papa, traz em si o sabor da fraternidade.

Assim, não foi por acaso que a República Democrática de Timor-Leste tenha sido o primeiro país do mundo a adotar, oficialmente, como «documento nacional» o Documento sobre a Fraternidade Humana. Trata-se duma decisão intrínseca ao espírito deste povo, em sintonia com a sua história e identidade. Não está impregnada de fraternidade duma forma abstrata, como sucedeu, por exemplo e com resultados trágicos, nas ideologias nacionalistas do século passado. Aqui, não! Aqui a fraternidade nasce e cresce através de histórias reais de encontro e reconciliação, pois aquela exige proximidade e concretização. O próprio Documento em questão não nasceu «sobre a secretária», mas na sequência do encontro fraterno entre o Papa Francisco e o Grande Imã de Al-Azhar. E, por falar de concretização, surpreendeu-me saber que é habitual, na língua tetum, dirigir-se aos desconhecidos com as palavras «maum» e «mana», isto é, irmão e irmã. Igualmente significativo é o costume nacional de se designarem as principais autoridades políticas por «maum-boot – irmãos mais velhos».

Segundo o Documento assinado em Abu Dhabi, este espírito concreto de fraternidade é a condição indispensável para se alcançar a paz. Com efeito, não pode haver paz verdadeira e duradoura, se os ideais de convivência não estiverem sustentados pela convicção de que somos por natureza irmãos e irmãs, enquanto criaturas de igual dignidade, «filhos e filhas do mesmo Céu» que caminham sobre a mesma terra, como sublinhou o Santo Padre há alguns dias no Cazaquistão.[2] Por isso é que o Documento sobre a fraternidade humana começa falando do ato próprio do crente, que aparece designado em sentido genérico como «fé». Crer no divino

«leva a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar. Da fé em Deus, que criou o universo, as criaturas e todos os seres humanos – iguais pela Sua Misericórdia –, o crente é chamado a expressar esta fraternidade humana, salvaguardando a criação e todo o universo e apoiando cada pessoa, especialmente as mais necessitadas e pobres».[3]

O sal, primeira metáfora de Jesus e símbolo profético deste país, levou-nos assim a refletir sobre a fraternidade como fundamento da paz. Sabe-se, porém, que, em alguns ambientes, o Documento sobre a Fraternidade não foi acolhido como sal saboroso, mas de gosto desagradável (poder-se-ia dizer: como «sal nas feridas»). Apraz-me apresentar-vos duas propostas criativas perante os desafios da nossa sociedade multicultural.

Perante o desafio da fraqueza ingénua

Segundo alguns, esta visão universal de fraternidade apareceria fraca e ingénua face aos desafios do mundo; este prevê que, para se obter resultados, seja preciso aumentar a própria relevância, sob pena de se mostrar indefesos perante a agressividade alheia. Se pensarmos um pouco, porem, veremos que tal crítica toca não apenas o método, mas também a natureza da fé. E, quanto a esta, não se pode negar que muitas vezes, na história, foi anunciada ou se permitiu que fosse anunciada valendo-se de meios nem sempre evangélicos, incluindo a força. Todavia, deste modo, foi desmentida não só a forma cristã, mas também o próprio conteúdo do Evangelho: aquelas bem-aventuranças que precedem imediatamente a afirmação «vós sois o sal da terra». Além disso, a imposição da fé, mesmo considerando apenas os efeitos alcançados, parece nunca ter trazido os resultados esperados.

Pelo contrário, a paixão pelo Evangelho requer que se assimile o estilo de Deus: aquele estilo, sobre o qual muito insiste o Papa, feito de proximidade, compaixão e ternura para com todos. Precisamos gastarmos pelo bem de todos, e isso quer dizer capacidade de falar com todos, assim como o sal, se derrete pelos outros em vez de se conservar para si próprio. E o Santo Padre, por sua vez, sublinhou já várias vezes como isto não seja perdedor, mas vencedor enquanto claramente cristão. A propósito, eis algumas das suas palavras, muito diretas:

«Poderíeis dizer-me: doar-se, viver para Deus e para os outros é uma grande canseira por nada; a realidade do mundo é outra: para ir em frente serve (…) dinheiro e poder. Mas isto é uma grande ilusão: o dinheiro e o poder não libertam o homem, escravizam-no. Vede! Deus não exerce o poder para resolver os nossos males nem os do mundo. O seu caminho é sempre o do amor humilde: só o amor liberta dentro, dá paz e alegria. Por isso o verdadeiro poder, o poder segundo Deus, é o serviço».[4]

Este fundamento espiritual ajuda-nos a compreender o motivo por que missão e diálogo, para os cristãos, andam de mãos dadas. Não se opõem, antes apoiam-se: se a missão anuncia o Deus de Jesus que, a todos, deseja salvar através do amor humilde e do serviço nenhuma atitude é mais adequada do que a abertura, o encontro, o diálogo com todos; a atitude que dá testemunho de Cristo com a vida. Disto é mais uma vez exemplo este país: a fé cristã e a abertura ao diálogo caminharam de mãos dadas, de modo que a restauração da sua independência e a obtenção da sua soberania nacional não se revelaram factos excludentes, mas inclusivos; fundados na saborosa terra da fraternidade evangélica, conseguiram ver como próximo e companheiro o país antes hostilizado como ocupante, e chamar irmãos e amigos aqueles que antes eram considerados inimigos. Eis as vitórias do Evangelho: alcançam-se a partir da fé que professa vitorioso o espírito das bem-aventuranças.

Do sincretismo conciliador ao proselitismo

O segundo aspeto positivo do Documento sobre a fraternidade e tem a ver com um aspeto ainda mais delicado do ponto de vista da teologia sistemática. A finalidade do cristianismo é a difusão da fé e não é possível o reduzir a uma espécie de conciliação universal das religiões que, segundo o relativismo generalizado de pensamento, seriam em última analise «todas iguais» ou pelo contrario o alvo do cristianismo seria de converter o maior numero de pessoas possível para acrescentar os cristãos. Na realidade, o Papa tem estado muito atento a este aspeto, pondo em evidência a natureza do diálogo inter-religioso. Fê-lo na universidade de Al-Azhar, deixando claro que o diálogo não deve de forma alguma comportar a perda das convicções próprias, mas a predisposição para se confrontar em nome das mesmas sem cair num proselitismo falaz. E enunciou três diretrizes fundamentais:

«O dever da identidade, a coragem da alteridade e a sinceridade das intenções. O dever de identidade, porque não se pode construir um verdadeiro diálogo sobre a ambiguidade nem sobre o sacrifício do bem para agradar ao outro; a coragem da alteridade, porque, quem é cultural ou religiosamente diferente de mim, não deve ser visto e tratado como um inimigo, mas recebido como um companheiro de viagem, na genuína convicção de que o bem de cada um reside no bem de todos; a sinceridade das intenções, porque o diálogo, enquanto expressão autêntica do humano, não é uma estratégia para se conseguir segundos fins, mas um caminho de verdade, que merece ser pacientemente empreendido para transformar a competição em colaboração».

E acrescentou: «Sem ceder a sincretismos conciliadores, a nossa tarefa é rezar uns pelos outros pedindo a Deus o dom da paz, encontrar-nos, dialogar e promover a concórdia em espírito de colaboração e amizade».[5] Conceito reafirmado também em Abu Dhabi no Discurso que acompanhou o nosso Documento: «a atitude correta não é a uniformidade forçada nem o sincretismo conciliador: o que estamos chamados a fazer como crentes é trabalhar pela igual dignidade de todos em nome do Misericordioso, que nos criou e em cujo Nome se deve buscar a composição dos contrastes e a fraternidade na diversidade».[6]

O «sal da religião»

Chegamos assim a um aspeto fundamental do diálogo inter-religioso, do qual o Documento de Abu Dhabi representa um momento significativo. De facto, lá destaca-se, sem ambiguidade, não só o empenho pela paz que deve caraterizar a religião, mas também a essência autêntica do ato religioso. O essencial, o «sal da religião», reside – segundo o Papa – em dois pontos firmes, já sublinhados em 2016 no Azerbaijão, um país de maioria islâmica: «As religiões são chamadas a fazer-nos compreender que o centro do homem está fora dele, que tendemos para o Outro infinito e para o outro que está próximo de nós. Aí o homem é chamado a encaminhar a vida rumo ao amor mais sublime e, simultaneamente, mais concreto: este não pode deixar de estar no cume de toda a aspiração autenticamente religiosa».[7] Em Abu Dhabi, o Santo Padre reiterou o mesmo conceito:

«A verdadeira religiosidade consiste em amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmo. Por isso, a conduta religiosa precisa de ser continuamente purificada duma tentação frequente: considerar os outros como inimigos e adversários. Cada credo é chamado a superar o desnível entre amigos e inimigos, assumindo a perspetiva do Céu que abraça os homens sem privilégios nem discriminações».[8]

Como uma espécie de leitmotiv no diálogo inter-religioso, a ideia foi retomada pelo Santo Padre no Iraque[9] e, com extrema clareza, há pouco no Cazaquistão:

«As grandes sabedorias e religiões são chamadas a testemunhar, a todos os seres humanos, a existência dum património espiritual e moral comum, que assenta sobre dois pilares: a transcendência e a fraternidade. A transcendência, o Além, a adoração. (…) E, depois, a fraternidade, o outro, a proximidade: pois não pode professar verdadeira adesão ao Criador quem não ama as suas criaturas.[10]

Consequência de tudo isto é que «a violência constitui a negação de toda a religiosidade autêntica»;[11] por isso, «religiosamente, não há violência que se possa justificar».[12] Isto comporta a exigência de cada religião se «purificar» e empenhar ativamente em desmascarar qualquer violência que tenda a revestir-se de presumível sacralidade, se não incitando pelo menos justificando violações contra a dignidade humana e os legítimos direitos humanos.[13]

2. O sal, conservante da convivência

O pensamento desenvolvido até aqui girou em torno do sal, sabor de fraternidade. Vejamos agora a segunda utilização do sal no tempo de Cristo: conservar os alimentos de maior valor, como a carne e o peixe, para não se deteriorarem. O Documento sobre a fraternidade propõe diversos temas, visando favorecer não só a paz, mas a conservação e o desenvolvimento do segundo aspeto mencionado no título, a convivência comum. Quase no final do referido Documento lê-se:

«Al-Azhar e a Igreja Católica pedem que este Documento se torne objeto de pesquisa e reflexão em todas as escolas, nas universidades e nos institutos de educação e formação, a fim de contribuir para criar novas gerações que levem o bem e a paz e defendam por todo o lado o direito dos oprimidos e dos marginalizados».

Vemos assim o primeiro aspeto, que está relacionado com a educação das novas gerações.

A importância da instrução

Para conservar é preciso educar. O tema apresenta-se de forma perentória tanto no discurso que Sua Santidade pronunciou em Al-Azhar como no de Abu Dhabi. O Papa sublinhou a imprescindibilidade duma instrução que se dedique não apenas a argumentos técnicos orientados para o lucro, mas também a temáticas humanistas; e ainda duma educação voltada não apenas para as potencialidades do indivíduo, mas também para o cuidado do conjunto. Eis uma passagem do discurso pronunciado no Egito:

«Não haverá uma educação adequada para os jovens de hoje, se a formação que lhes for dada não corresponder bem à natureza do homem, ser aberto e relacional. Com efeito, a educação torna-se sabedoria de vida quando é capaz de tirar do homem, em contacto com Aquele que o transcende e com aquilo que o rodeia, o melhor de si, formando identidades não fechadas em si mesmas. A sabedoria procura o outro, superando a tentação da rigidez e fechamento; aberta e em movimento, humilde e ao mesmo tempo indagadora, sabe valorizar o passado e pô-lo em diálogo com o presente, sem renunciar a uma hermenêutica adequada. Esta sabedoria prepara um futuro em que se visa fazer prevalecer, não a própria parte, mas o outro como parte integrante de si mesmo; aquela não se cansa de individuar, no presente, ocasiões de encontro e partilha; do passado, aprende que do mal brota unicamente mal, e da violência só violência, numa espiral que acaba por nos fazer prisioneiros. Esta sabedoria, rejeitando a avidez de prevaricação, coloca no centro a dignidade do homem, precioso aos olhos de Deus, e uma ética que seja digna do homem, rejeitando o medo do outro e o temor de conhecer mediante os meios de que o dotou o Criador».

E motivadores são também alguns trechos do discurso de Abu Dhabi:

«A educação tem lugar na relação, na reciprocidade. À famosa máxima antiga «conhece-te a ti mesmo», devemos juntar «conhece o irmão»: a sua história, a sua cultura e a sua fé, porque, sem o outro, não há verdadeiro conhecimento de si mesmo».

«Investir na cultura favorece a diminuição do ódio e o crescimento da civilidade e prosperidade. Educação e violência são inversamente proporcionais».

«Cercados frequentemente por mensagens negativas e notícias falsas, os jovens precisam de aprender a não ceder às seduções do materialismo, do ódio e dos preconceitos, a reagir à injustiça e também às experiências dolorosas do passado e a defender os direitos dos outros com o mesmo vigor com que defendem os próprios. Um dia, serão eles a julgar-nos: bem, se lhes tivermos dado bases sólidas para criar novos encontros de civilidade; mal, se lhes tivermos deixado apenas miragens e a desoladora perspetiva de nefastos conflitos de incivilidade».

À luz disto, reveste-se ainda de maior importância histórica a decisão, tomada pelo Parlamento e pelo Estado no seu conjunto, de assumir o que está contido no Documento de Abu Dhabi e adotá-lo nos currículos de formação das escolas de primeiro e segundo grau, e nas universidades. De facto, não é possível adquirir duma vez por todas aquilo que se aprendeu; requer-se uma elaboração paciente e continuada que saiba, à semelhança do que faz o sal com os alimentos, conservar por muito tempo a sua qualidade a fim de se formarem consciências sempre mais amadurecidas. Deste ponto de vista, acolher o critério da fraternidade como caminho fundamental de relação humana, social, política e religiosa constitui uma decisão verdadeiramente perspicaz; e testemunha também o empenho de abraçar o desafio educacional, envolvendo os jovens nos temas que dizem respeito à convivência quotidiana, tornando-os assim protagonistas da vida do seu país, para nela se realizarem, com criatividade e empenho, os sonhos que trazem no coração.

Ingredientes para manter a paz

Sem a pretensão de ser completo, menciono outros três ingredientes, presentes no Documento de Abu Dhabi e solicitados pelo Papa Francisco, como indispensáveis no caminho tendente à paz e à convivência fraterna:

1. «A justiça baseada na misericórdia», que, segundo o nosso Documento, é «o caminho a percorrer para se alcançar uma vida digna, a que tem direito todo o ser humano». No seu discurso em Abu Dhabi, o Papa defendeu que a justiça (depois da educação) é «a segunda asa da paz; com frequência, esta não é comprometida por episódios individuais, mas é lentamente devorada pelo câncer da injustiça». De facto, «paz e justiça, são inseparáveis (…). A paz morre, quando se divorcia da justiça, mas a justiça revela-se falsa se não for universal. Uma justiça circunscrita apenas aos familiares, aos compatriotas, aos crentes da mesma fé é uma justiça claudicante, é uma injustiça disfarçada». Por sua vez, «as religiões têm também a tarefa de lembrar que a ganância do lucro torna néscio o coração e que as leis do mercado atual, ao exigir tudo e súbito, não ajudam o encontro, o diálogo, a família: dimensões essenciais da vida que precisam de tempo e paciência». Tudo isto comporta não uma solidariedade apenas genérica, mas, segundo Papa Francisco, uma tomada de posição: «As religiões sejam voz dos últimos – estes não são meros números de estatística, mas irmãos – e estejam da parte dos pobres; velem como sentinelas de fraternidade na noite dos conflitos, sejam apelos diligentes à humanidade para que não feche os olhos perante as injustiças e nunca se resigne com os dramas sem conta no mundo».

2. A promoção e a tutela da liberdade, em particular da liberdade religiosa, direito inalienável e imprescindível de todo o grupo e ser humano;

3. A oração, a qual, «ao mesmo tempo que encarna a coragem da alteridade em relação a Deus, na sinceridade da intenção purifica o coração de fechar-se em si mesmo» e é «um reconstituinte de fraternidade».[14]

Guardar o espírito do caminho

Concluindo, o diálogo inter-religioso é um sal precioso para dar sabor e conservar a fraternidade. Há poucos dias, o Papa reiterou que aquele «já não é apenas uma oportunidade, mas um serviço urgente e insubstituível à humanidade».[15] É possível ver como o caminho de tal diálogo tenha já um percurso bastante consolidado, a começar dos históricos encontros promovidos por João Paulo II em Assis, donde havia de surgir, juntamente com outros Encontros, também o Congresso Mundial recém-celebrado na capital cazaque. Além disso, cingindo-nos aos últimos anos, o Santo Padre dedicou uma parte saliente de muitas viagens aos encontros e ao diálogo inter-religioso, em particular com o Islã. A este respeito, menciono o do Azerbaijão em 2016, do Egito em 2017, dos Emirados Árabes Unidos em 2019, do Iraque em 2021, até este último, alguns dias atrás, no Cazaquistão.

E assim chegamos, nos dias de hoje, aos quatro desafios que em Nur-Sultan apresentou aos representantes religiosos. Em primeiro lugar, lembrou a importância de as religiões recordarem aos seres humanos a sua vulnerabilidade de criaturas e a obrigação de cuidar no contexto pandémico. Em segundo lugar, fez um forte apelo para que nos comprometamos pela paz. Em seguida, destacou dois outros desafios: o acolhimento fraterno e a preservação da casa comum.[16]

E confiando ao vosso estudo estas fronteiras do compromisso comum face às emergências globais que dizem respeito a todos e, em primeiro lugar, às religiões, termino com um voto que, estou certo, partilhais e que formulo com as palavras do Pontífice: «Na noite dos conflitos que estamos a atravessar, as religiões sejam alvoradas de paz, sementes de renascimento por entre devastações de morte, ecos de diálogo que ressoam incansavelmente, caminhos de encontro e reconciliação para se chegar mesmo lá onde as tentativas das mediações oficiais parecem não ter êxito».[17] Obrigado.

Notas:

[1] Homilia, 12 de outubro de 1989, n. 2.

[2] Cf. Discurso na Abertura do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, Nur-Sultan, 14 de setembro de 2022.

[3] Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum, Prefácio, Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019. Vejam-se as palavras do Santo Padre no seu discurso sucessivo à apresentação do Documento: «O ponto de partida é reconhecer que Deus está na origem da única família humana. Criador de tudo e de todos, quer que vivamos como irmãos e irmãs, morando nesta casa comum da criação que Ele nos deu. Funda-se aqui, nas raízes da nossa humanidade comum, a fraternidade como vocação contida no desígnio criador de Deus. Esta fraternidade diz-nos que todos temos igual dignidade, pelo que ninguém pode ser dono ou escravo dos outros» (Discurso no Encontro Inter-religioso, Founder’s Memorial em Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019).

[4] Homilia proferida em Palermo, 15 de setembro de 2018.

[5] Discurso aos participantes na Conferência Internacional sobre a Paz, Al-Azhar, Cairo, 28 de abril de 2017.

[6] Discurso no Encontro Inter-religioso, Founder’s Memorial em Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019.

[7] Discurso no Encontro inter-religioso, Baku, 2 de outubro de 2016.

[8] Discurso no Encontro Inter-religioso, Founder’s Memorial em Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019.

[9] Cf. Discurso no Encontro Inter-religioso, Planície de Ur, 6 de março de 2021.

[10] Discurso no encerramento do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, Nur-Sultan, 15 de setembro de 2022.

[11] Discurso aos participantes na Conferência Internacional sobre a Paz, Al-Azhar, Cairo, 28 de abril de 2017.

[12] Discurso no Encontro Inter-religioso, Founder’s Memorial em Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019.

[13] Cf Discurso na Abertura do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, Nur-Sultan, 14 de setembro de 2022; Discurso aos participantes na Conferência Internacional sobre a Paz, Al-Azhar, Cairo, 28 de abril de 2017.

[14] Discurso no Encontro Inter-religioso, Founder’s Memorial em Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019.

[15] Discurso no encerramento do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, Nur-Sultan, 15 de setembro de 2022.

[16] Cf. Discurso na Abertura do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, Nur-Sultan, 14 de setembro de 2022.

[17] Discurso no Encontro Inter-religioso, Baku, 2 de outubro de 2016.

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20 setembro 2022, 09:29