Apartamento em Kharkiv atingido por míssil russo. (Photo by Sergey Bobok) Apartamento em Kharkiv atingido por míssil russo. (Photo by Sergey Bobok)  (AFP or licensors)

Núncio na Ucrânia: "A luz de Jesus brilha mesmo na escuridão da guerra"

Natal sob as bombas em Kiev. e Kharkiv. O testemunho do núncio apostólico, Visvaldas Kulbokas: "O Natal continua alegre mesmo nestas condições, porque Jesus é o nosso Redentor que nasce, porém esta alegria está associada a uma grande seriedade. Então até mesmo pude me dar conta que neste período dificilmente poderia celebrar o Natal em um local onde as pessoas estariam muito tranquilas, porque me sentiria mal e portanto para mim também era a única forma possível de celebrar o Natal."

por Svitlana Dukhovych

Segundo Natal de guerra para a Ucrânia, devastada há quase dois anos por um conflito trágico que não dá sinais de diminuir. Há poucos dias, as forças russas lançaram o ataque mais massivo desde 24 de fevereiro de 2022. A capital ucraniana, Kiev, em particular, pagou as consequências em termos de vítimas civis.

"Mesmo durante o período do Natal a guerra não desapareceu, a guerra continua – diz o núncio apostólico no país, o arcebispo lituano Visvaldas Kulbokas, em entrevista ao Vatican News":

Também foi significativo, por exemplo, que na noite da véspera de Natal, durante a concelebração na Catedral católica romana de Kiev, ou no dia 1º de janeiro, no Dia Mundial da Paz, notamos com os bispos que os alertas aéreos soaram precisamente nos momentos de pico da as celebrações, quando estávamos diante de Jesus. Portanto, o Natal é celebrado concomitantemente com o risco que a guerra acarreta. Mas neste sentido o Natal se destaca ainda mais porque a luz de Jesus brilha nas trevas, brilha nas dificuldades. Por exemplo, nos últimos dias até os nossos colaboradores na nunciatura ou todas as pessoas com quem tive contato - cada um vivenciou a guerra em primeira mão porque, por exemplo, em Kiev não há nenhum bairro que não tenha visto as explosões, que não senti uas casas tremerem, as janelas tremerem — cada um “recebeu a sua parte”, por assim dizer, cada um recebeu “a sua porção” de mísseis em cada bairro. Então toda a cidade foi atingida: tanto quem mora no centro quanto na periferia. Porém, desta forma o Natal torna-se ainda mais claro porque, como diz Jesus: “Não procureis a paz no mundo porque o mundo é incapaz de dá-la a vós. Então, procure-a em meus braços." Portanto, um significado ainda mais claro."

 

Uma das cidades mais afetadas por estes novos ataques foi Kharkiv. O senhor visitou Kharkiv pouco antes do início desses ataques. Qual foi a sua experiência desta visita e o que ficou em seu coração ao deixar cidade?

Fui a Kharkiv no dia de Natal e fui por mim mesmo – para rezar melhor – e para estar com aqueles que mais sofrem. Porque quando depois eu disse, escrevi aos meus amigos que estava em Kharkiv, vocês não sabem quantos responderam: “Quanto gostaríamos de ter estado também nós ali!” Há muitas pessoas que gostariam de visitar esta cidade não para ver a destruição, mas para rezar juntos em situações tão difíceis. Porque para mim o Natal mais profundo é precisamente este: rezar junto com os fiéis reunidos na catedral - celebramos na Catedral católica romana, depois se uniu também o bispo greco-católico,  e continuamos com a comunidade greco-católica na sua catedral - ver os olhos das pessoas, dos sacerdotes, dos fiéis, os olhos recolhidos porque eles sabem que não têm nada, ninguém os protegerá, absolutamente ninguém, não existe nenhum organismo mundial, não existe nenhum exército capaz de protegê-los: só Deus permanece e portanto, celebrar o Natal com eles é a experiência mais profunda que pode existir. E era precisamente isso que eu procurava: rezar com quem vive o Natal com seriedade. O Natal continua alegre mesmo nestas condições, porque Jesus é o nosso Redentor que nasce, porém esta alegria está associada a uma grande seriedade. Então até mesmo pude me dar conta que neste período dificilmente poderia celebrar o Natal em um local onde as pessoas estariam muito tranquilas, porque me sentiria mal e portanto para mim também era a única forma possível de celebrar o Natal.

Passageiros ouvem canções de natal dentro de uma estação de metrô enquanto os ucranianos comemoram seu primeiro Natal de acordo com um calendário ocidental, em meio ao ataque da Rússia à Ucrânia, em Kiev, Ucrânia, 25 de dezembro de 2023. REUTERS/Valentyn Ogirenko
Passageiros ouvem canções de natal dentro de uma estação de metrô enquanto os ucranianos comemoram seu primeiro Natal de acordo com um calendário ocidental, em meio ao ataque da Rússia à Ucrânia, em Kiev, Ucrânia, 25 de dezembro de 2023. REUTERS/Valentyn Ogirenko

Recentemente, a administração de Kharkiv anunciou que as escolas infantis serão transferidas para subterrãneos, ou seja, para o metrô da cidade, para permitir que as crianças fiquem com os seus professores, para ficarem juntas durante algum tempo. Como o senhor recebeu essa notícia e o que pode dizer sobre as crianças que viu lá em Kharkiv?

As crianças estão sempre presentes na minha mente quando rezo: todas as manhãs, mas especialmente durante as festividades de Natal, começo a minha oração unindo a minha mente com a das crianças, unindo também muitos prisioneiros de guerra, mas também civis. Vocês não imaginam quantos eu conheço pessoalmente, quantas famílias que têm seus entes queridos em algum lugar da Rússia, não sabemos onde, mas nem são militares: são médicos, são civis, ou temos dois nossos sacerdotes católicos redentoristas, padre Ivan Levytskyi e padre Bohdan Heleta… Eu começo a oração por eles em minha mente. E depois por ocasião do Natal também tive a oportunidade de encontrar também o prefeitode Kharkiv e uma das coisas que falamos foram as crianças e o prefeito estava parcialmente satisfeito, no sentido de que a cidade está ultimando os preparativos para abrir a primeira creche subterrânea e depois, em março, se tudo correr bem, também uma primeira escola elementar subterrânea. Portanto, é realmente desconcertante que no nosso tempo, nesta civilização muito avançada, tenhamos alcançado, por assim dizer, “um tal nível de desenvolvimento” que começamos a criar escolas subterrâneas porque, caso contrário, em Kharkiv não há forma de os jovens irem à escola. E, por exemplo, também a nível estatístico: em Kharkiv, como disse o prefeito, antes havia 715 escolas e durante estes quase dois anos de bombardeamento mais de 300 escolas foram seriamente danificadas, quase metade das escolas. E além dos danos da destruição, não há nem condições de ir à escola. Assim, durante quase dois anos, as crianças de lá só puderam estudar on-line e, portanto, é um grande objetivo criar escolas subterrâneas. É impressionante, mas sem esta solução tão difícil não podemos avançar.

 

Excelência, falaste da importância quer para si mesmo bem como para outras pessoas, de estar perto dos que se encontram em condições muito difíceis como a população de Kharkiv: é uma bênção, um dom, que acredito, também experimentaram as pessoas que foram do exterior para estarem próximas das pessoas na Ucrânia. Pessoalmente, para o senhor, quão importante foi sentir esse apoio por meio da presença das pessoas que foram visitá-lo?

Sim, como bem foi dito, a presença, a ajuda é importante em três aspectos: espiritual, isto é, oração, a oração do mundo inteiro; a segunda é a ajuda humanitária porque, na realidade, muitas regiões como Kharkiv vivem quase exclusivamente da ajuda humanitária; e depois também o psicológico: de não estar sozinhos. Isto é importante: não estar sozinhos, mas também ver o outro que chegou e que é capaz de compreender a dificuldade, porque senão corre-se um grande risco de que evidentemente a guerra não seja mais notícia porque está sempre distante de muitos, ao invés disso, esta proximidade física, pessoal, pelo menos nos consola. Para dar também um exemplo: em Kharkiv encontrei brevemente também a Irmã Daria Panast, uma freira greco-católica da Congregação de São José que, há alguns meses, ao levar ajuda humanitária, foi ferida durante um bombardeio, juntamente com outras três pessoas. Esta também é uma missão das religiosas de hoje: levar ajuda onde ninguém pode levá-la. Quando perguntei à Irmã Daria: “Mas depois de ter sido ferida, alguém foi capaz de  ajudá-la?” Ela respondeu: “Não, porque não havia ninguém por perto”, porque o carro dela com ajuda humanitária era o único em toda aquela zona. Somente os soldados ucranianos viram e perceberam que algo havia acontecido, chegaram até lá para salvá-los. Portanto esta proximidade física é importante sob todos os pontos de vista: como ajuda pessoal, ajuda humanitária ou ajuda psicológica e espiritual. E depois foi impressionante ver a própria Irmã Daria que, recuperada, voltou mais uma vez à catequese com as crianças, aos serviços da Caritas e aos serviços da paróquia. Então se vai em frente, se é bombardeado, se fica ferido e então se recupera e se continua. Então eu diria que mesmo para quem vem, quem vem do exterior, é importante também como um presente ver que tipo de vocação cristã vivemos hoje.

Cantores do Ukrainian Radio Choir buscam refúgio durante bombardeio em Kiev, em 22 de dezembro. (Photo by Florent Vergnes)
Cantores do Ukrainian Radio Choir buscam refúgio durante bombardeio em Kiev, em 22 de dezembro. (Photo by Florent Vergnes)

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04 janeiro 2024, 13:49