O gosto vivo e saboroso da Palavra proclamada na Liturgia
Jackson Erpen - Cidade do Vaticano
Na Carta Apostólica Desiderio Desideravi, o Papa Francisco explica no n. 53 que "cada gesto e cada palavra contém uma ação precisa, que é sempre nova porque encontra um instante sempre novo da nossa vida". Com o ajoelhar, por exemplo, pedimos perdão, dobramos o nosso orgulho, entregamos a Deus o nosso pranto, suplicamos uma intervenção sua, lhe agradecemos um dom recebido; gesto esse, o ajoelhar, que "deve ser feito com arte, quer dizer, com uma plena consciência do seu sentido simbólico e da necessidade que nós temos de exprimir com este gesto o nosso modo de estar na presença do Senhor."
E "se tudo isto é verdade para um simples gesto - pergunta o Santo Padre - quanto mais não o será para a celebração da Palavra? Que arte somos chamados a apreender ao proclamar a Palavra, ao escutá-la, ao fazê-la inspiração da nossa oração, ao fazê-la tornar-se vida?"
Pe. Gerson Schmidt* nos propõe no programa de hoje a reflexão "O gosto vivo e saboroso da Palavra proclamada na Liturgia":
"Há na liturgia, quando a Palavra de Deus é proclamada um “gosto vivo” e “gosto saboroso", subtítulos usados pelo biblista italiano, Pe. Maurizio Compiani, autor do sétimo volume da Coleção Cadernos do Concílio, que trata da “Sagrada Escritura na Liturgia”. A mesa da Palavra tem um sabor especial, um gosto maravilhoso como alimento salutar para nosso sustento. A Palavra proclamada na liturgia é um manjar. O termo usado é próprio do campo gastronômico, sobretudo quando usamos a expressão “mesa” da Palavra. Quando nos sentamos à mesa, existe um alimento para degustar e saborear. Não o desprezamos. Tal como o fruto proibido, nos parece apetitoso ao paladar. Importa nos fascinar e encantar pelo alimento especial da Palavra oferecida na liturgia.
Num dos últimos aprofundamentos, falávamos da “A Palavra que na liturgia arde o coração”, aprofundando a narrativa bíblica dos discípulos de Emaús. Dizíamos que tal como os discípulos de Emaús, é na Liturgia celebrativa e na Leitura orante que nosso coração necessita arder ao ouvir as Escrituras, reconhecendo o Ressuscitado na fração do pão e, como consequência disso, partir para a missão, anunciando a notícia fantástica de que o Ressuscitado vive em sua Igreja, seja no caminhar, seja na celebração, seja na fração cotidiana do pão de cada dia, em cada momento de nossa história. Uma vez reanimados, os discípulos de Emaús não poderiam guardar para si essa Boa Notícia, que lhes ardia a alma, impulsionando para proclamar aos outros a bombástica novidade. Acentuamos que eles viveram os dois grandes momentos da celebração eucarística atual: a Liturgia da Palavra (no caminho em direção à Emaús) e a Liturgia Eucarística (a fração do Pão à noite). Foi de fato uma Liturgia da Palavra intensa, que durou o tempo do percurso de 11 estádios de Jerusalém a Emaús, que poderíamos traduzir atualmente por 11 km de decurso no caminho feito com Jesus.
Pe. Maurizio Compiani, nesse caderno do Concílio de número 7, comenta esse ‘gosto saboroso’ em Emaús com o Ressuscitado: “O encontro do Ressuscitado com os dois discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) é um relato de conversão no qual a experiência de percepção sensorial ocupa um lugar de destaque. O misterioso peregrino que se aproxima dos dois é portador de uma visão diferente das palavras cheias de tristeza com que os discípulos contam o ocorrido. O que eles perceberam não é o que Ele percebe. O que eles sabem não é o que Ele sabe. Dois níveis se opõe. Embora seja uma questão de tolice e de sabedoria, o encontro não se deu em torno de uma discussão ou de uma polêmica a ser resolvida, como se fosse uma questão acadêmica. A transformação dos dois discípulos ‘sem inteligência e lentos para crer’(v.25), segue um processo que, partindo da inteligência, percorre o mundo perceptivo deles, até chegar ao coração lento, mas depois ardente; antes, os olhos estavam “impedidos de reconhecê-lo", mas depois, eles “abriram-se ao partir o pão”, para chegar finalmente a uma mudança de direção do caminho: antes, se afasta de Jerusalém, depois os leva à Cidade Santa, reunindo os Onze e toda a comunidade fiel para que anunciem que “Realmente, o Senhor ressuscitou”(v.34). É uma mudança total: de inteligência, de sentimentos, de visões, de coração. Toda a estrutura da vida deles passa por uma revolução”[1]. Se o Ressuscitado passa pela nossa vida cristã, acontece uma revolução, uma mudança de rota, tal como a dos discípulos de Emaús. De abatidos e tristonhos, passam a proclamar com alegria a vitória do Ressuscitado. Cristo, de fato, explica-lhes as Escrituras, vinculando os acontecimentos de acordo com o ponto de vista de Deus. Os discípulos recebem uma nova percepção dos fatos ocorridos, um novo olhar da história salvífica, uma nova sabedoria, um olhar diferente e especial da morte de Cristo na cruz. “Ao mudar os parâmetros, eles descobrem uma nova narração da própria experiência, cuja trama é dada pela Palavra de Cristo”. A nova narrativa da própria existência é dada pela interpretação de Cristo dos fatos de nossa vida, que por vezes interpretamos mal, mas Cristo nos aponta uma nova realidade. E conclui Pe. Maurizio assim: “Em Emaús, o encontro com o Ressuscitado termina à mesa, onde os dois descobrem o reativar-se também do gosto vivo e saboroso do partir o pão. Mediante esse gesto familiar, o forasteiro (ou seja, que vinha de fora) entra em comunhão com eles, fala à memória deles, toca o coração deles e é reconhecido por eles. Todos os sentidos agora mudados, voltam a trabalhar e finalmente celebram a Páscoa, voltam à Igreja e o Ressuscitado fica com eles de uma forma nova”."
*Padre Gerson Schmidt foi ordenado em 2 de janeiro de 1993, em Estrela (RS). Além da Filosofia e Teologia, também é graduado em Jornalismo e é Mestre em Comunicação pela FAMECOS/PUCRS.
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[1] CAMPIANI, Maurízio. A Sagrada Escritura na Liturgia – Cadernos do concílio 7, Ed. CNBB, p. 25-26.
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